Muitos não querem aceitar a dignidade de todas as pessoas
Tem corrido muita tinta e têm soado aos ouvidos muitas vozes sobre a escravatura, o racismo e a xenofobia no país. Conhecem-se esforços no sentido do acolhimento e da inclusão, mas também abundam ditos, gestos e atitudes de exclusão e, sobretudo, de indiferença, que não é atitude menos censurável. Com efeito, virar as costas ao semelhante é análogo ao discurso do ódio, ao espezinhamento e à exploração. E só não entramos na espiral da repressão, porque não temos força nem meios, mas queremos que as autoridades atuem com poder.
É temática inerente ao nosso quotidiano e à nossa História de luzes e de sombras, de exploração e de diálogo, em nome da civilização cristã de que nos considerávamos arautos e portadores, mas que tanto incluía como colonizava e escravizava. É realidade do passado que não se pode esconder, mas cujos tentáculos perduram no presente, travestidos de cooperação.
Não assumir esta dupla realidade significa esconder importantes partes da nossa identidade como europeus e como povo. Falamos de igualdade de direitos e de oportunidades, mas os outros que sofram. Enfatizamos o diálogo e a liberdade de opinião e de expressão, mas impomos a nossa opinião e recusamos as ideias de outrem, ainda que suportadas por sólidas epistemologias.
Praticámos a escravatura, ao longo de séculos, e continuamos a fechar os olhos à exploração de pessoas imigradas, a lembrar tempos e métodos de servidão. Chocam as numerosas tendas de imigrantes implantadas no país, arrepiam as agressões racistas a casas onde residem imigrantes sem condições e causam asco os excessos de alguns agentes policiais contra pessoas como nós.
Mais situações como estas poderíamos acrescentar, como as dos trabalhadores sazonais que, sem eira nem beira, se acumulam em algumas cidades, quando o trabalho escasseia. Seria cómodo negar que há racismo – e racismo estrutural –, formas de escravatura moderna e xenofobia, no território nacional. Assim, esconderíamos alguns sentimentos de culpa moral. Reza a História do nosso sistema de ensino que Portugal se distinguia dos outros colonizadores, porque o nosso império foi mais humanista do que os outros. A mestiçagem comprova que fomos diferentes deles. Porém, o povo racista e esclavagista que fomos deixou raízes que vêm aflorando.
É de recordar o caso de uma professora que respondeu em tribunal às acusações de maus-tratos a criança de seis anos, de naturalidade estrangeira, a quem humilhou por falar mal o Português. Não é a única pessoa que pensa que os imigrantes devem ser recambiados para os países de origem.
De Lisboa, chegou a notícia, pela Rádio Renascença, de uma criança supostamente nepalesa, de nove anos, que foi violentamente agredida por colegas, tendo ficado gravemente ferida no corpo, com hematomas e com feridas abertas. Estas agressões foram acompanhadas por frases racistas e xenófobas. A ministra da Administração Interna prometeu mais polícias, em resposta às agressões infligidas ao menino nepalês e a mãe do menino procurou outra escola para o filho.
São já mais de 50 mil os imigrantes nepaleses que vivem no nosso país. Segundo a Associação do Nepal, aqui instalada, a integração destas e das demais crianças do Sudeste Asiático tem revelado graves problemas de integração no sistema de ensino, principalmente devido à dificuldade da aprendizagem da língua.
Embora não possamos estender estes atos agressivos e racistas cometidos em Lisboa, estes exemplos poderão repetir-se noutras zonas do país, caso não se proceda à devida prevenção, através de uma educação que ensine a tolerância e a solidariedade que nos merecem os imigrantes que procuram o país. Foi uma situação análoga que atingiu muitos dos numerosos emigrantes portugueses, sobretudo nos anos 60 do século XX.
Recentemente, um grupo de encapuzados, no Porto, arrombou uma moradia habitada por imigrantes a quem agrediram com bastões de basebol. Os dados avançados por estudos recentes, mostram que o crescimento do número de crimes de ódio, em Portugal, aumentou em 38%, de 2022 para 2023.
Sabe-se, através do último Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), que é entre os mais novos que se têm espalhado, mais abundantemente, as ideias e as atitudes racistas, xenófobas, homofóbicas e misóginas, que levam a comportamentos agressivos e condenáveis que atingem, especialmente, o grupo social dos imigrantes. Perante esta realidade, têm os governantes de definir e de executar uma política humanista de integração dos imigrantes e dos seus filhos no sistema de ensino, bem como de facultar condições de trabalho digno para os pais.
O que se vem passando às portas da Agência para a Integração, Migração e Asilo (AIMA), que sucedeu, em parte, ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), pejada de centenas de imigrantes que querem regularizar a sua situação, para viverem e trabalharem no país, tornou evidente a forma como Portugal tem tratado os imigrantes que nos procuram. A AIMA só veio mostrar a pobreza de meios e a arrogância que existia no SEF. O policiamento nas escolas, por maior que seja, não resolve os problemas racistas e xenófobos que têm aumentado. Os problemas da escravatura, da xenofobia e do racismo não se resolvem só com repressão, mas pela formação que leve à mudança de mentalidade, a partir da família, da escola, das comunidades religiosas e dos meios de comunicação social.
A noção interiorizada (nem sempre expressa) de que somos melhores, os mais capazes e os mais dotados leva à hostilização ou à ostracização dos outros. Eles farão o trabalho que não nos apraz fazer, pelo preço que estabelecermos e nas condições que ditarmos.
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Estas ideias malucas de que os outros são menos pessoas e de que há povos menores, sem direito a organizarem-se em termos de estado independente e soberano, geram guerras, exploração de recursos naturais alheios e tudo o que daí deriva. É denso e extenso o historial das guerras, dos massacres, dos latrocínios, das migrações forçadas, da exploração do tráfico humano.
O 20 de junho foi dia de homenagem a todos aqueles e aquelas – tantos idosos e idosas, tantos jovens e crianças – que, pelo Mundo, se obrigam a fugir do lar, a suspender a vida e a interromper os seus sonhos no lugar que é o seu. Para escaparem aos conflitos, à perseguição, à revolta da Natureza que nós causamos, arriscam a vida, na procura de um lugar que os acolha. Urge levar a sério os seus direitos, necessidades e sonhos, tal como dar vez e voz ao seu grito de desespero.
“Por um Mundo que acolha as pessoas refugiadas” foi o tema escolhido para este ano, o que exige a solidariedade e a capacidade de manter as portas abertas, sabendo acolher e, sobretudo, sabendo dar esperança aos desesperados. Construir essa esperança é, antes de qualquer discurso, procurar soluções para a sua situação e não as adiar, deixando-nos seduzir por políticas migratórias que se têm por sólidas, mas cujo escopo é selecionar aqueles e aquelas que nos interessam, suprindo as nossas falhas de natalidade, de mão-de-obra e de quadros, bem como aqueles e aquelas cuja presença “prestigie” o país, incremente a sua economia ou reforce as relações com os países mais amigos. Ao mesmo tempo, condenamos um invasor e colonizador e toleramos (contra correntes de opinião sensatas) outro tipo de invasor, de colonizador e de genocida.
A Agência das Nações Unidas para os Refugiados (UNHCR), no relatório “Projected Clobal Resettlement Needs 2025”, publicado a 5 de junho, estima que mais de 2,9 milhões de refugiados no Mundo precisarão de ser reinstalados em 2025. Estas estimativas preveem um aumento de 20% (meio milhão de refugiados), face a 2024, devido, nomeadamente ao prolongamento de situações de deslocações massivas por força de conflitos e de efeitos de alterações climáticas.
Entre os refugiados que continuam a necessitar de apoio na reinstalação, temos os Sírios (933 mil), seguidos dos Afegãos (558 mil), de refugiados do Sudão do Sul (242 mil), dos Rohingyas de Myanmar (226 mil), de refugiados do Sudão (172 mil) e de refugiados da República Democrática do Congo (158 mil). Também no continente americano, devido ao forte aumento de deslocações forçadas, as necessidades de reinstalação sofreram considerável aumento.
Este aumento deve-se, em parte, ao contexto económico difícil no Mundo, resultando no aumento do custo de vida e na diminuição da ajuda humanitária disponível. O crescimento da xenofobia e da discriminação expõe os refugiados a riscos acrescidos, nomeadamente de expulsão, de violência, de exploração e de outras violações dos direitos humanos. Além disso, os efeitos das mudanças climáticas e dos desastres ambientais aumentaram as vulnerabilidades dos refugiados.
Os dados estatísticos impressionam. No final de 2023, a perseguição, o conflito, a violência, as violações dos direitos humanos ou eventos seriamente perturbadores da ordem pública, redundaram em 117,3 milhões de pessoas deslocadas à força, em todo o Mundo, estimando-se que 47 milhões (40%) sejam crianças com menos de 18 anos. Entre 2018 e 2023, a média de nascimentos de crianças, por ano, como refugiados foi de 339 mil, dois milhões, ao todo.
São originários de cinco países 73% dos refugiados: do Afeganistão (6,4 milhões), da Síria (6,4 milhões), da Venezuela (6,1 milhões), da Ucrânia (6,0 milhões) e do Sudão do Sul (2,3 milhões). Apenas cinco países acolhem 39% dos refugiados: a Colômbia (2,9 milhões), a Alemanha (2,6 milhões), a República Islâmica do Irão (3,8 milhões), o Paquistão (2,0 milhões) e a Turquia (3,3 milhões) receberam quase dois em cada cinco refugiados do Mundo e outras pessoas que necessitam de proteção internacional.
A Amnistia Internacional (AI) publicou, a 19 de junho, o relatório “Handcuffed like dangerous criminals: Arbitrary detention and forced returns of Sudanese refugees in Egypt” (“Algemados como verdadeiros criminosos: Detenção arbitrária e devoluções forçadas de refugiados sudaneses no Egito”), apelando às autoridades egípcias que terminem com as detenções arbitrárias em massa e as deportações ilegais de refugiados sudaneses que procuram o Egito para refúgio.
O relatório mostra como os refugiados são reunidos e deportados ilegalmente para o Sudão – zona de conflito ativa – sem direito a processo justo ou sem oportunidade de pedir asilo, o que viola o direito internacional. A AI revela que milhares de Sudaneses foram detidos de forma arbitrária e expulsos em grupo. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) estima que três mil pessoas foram deportadas do Egito para o Sudão em setembro de 2023.
O aumento das detenções e dos retornos em massa deu-se após um decreto de agosto de 2023, que exige aos estrangeiros no Egito a regularização do seu estatuto, o que aumentou os sentimentos xenófobos e racistas. A Internet, os meios de comunicação social e funcionários governamentais criticam o fardo económico de acolher milhões de refugiados.
Também a União Europeia (UE) não está isenta de responsabilidades, pois este crescimento ocorreu no contexto de uma maior cooperação da UE com o Egito nas vertentes de migração e de controlo das fronteiras, apesar do sombrio historial do país em matéria de direitos humanos e dos abusos bem documentados contra migrantes e refugiados.
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Segundo o último Relatório Mundial sobre Deslocações Internas, as catástrofes naturais por alterações climáticas causaram, em 2022, cerca de 32,6 milhões de deslocados internos, número que ultrapassa o dos deslocados por conflitos armados (28,3 milhões).
Algumas causas são as secas, a desertificação, as colheitas escassas, as chuvas torrenciais, os deslocamentos de terra, a alteração das estações e as temperaturas extremas. Embora as consequências das mudanças climáticas afetem muitas regiões, há cinco especialmente castigadas, onde milhões de pessoas se obrigam a deslocar-se: o Paquistão (8,168 milhões), as Filipinas (5,455 milhões), a China (3,632 milhões), a Índia (2,507 milhões) e a Nigéria (2,437 milhões).
A luta pelo clima exige o compromisso de todos. O movimento migratório devido às alterações climáticas é inevitável. É, pois, de relevar o objetivo 13.º (Ação pelo clima) dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Urge tomar medidas de combate às mudanças climáticas e ao seu impacto, fortalecer a resiliência e a capacidade de adaptação, integrar soluções de mudança e melhorar a educação em mudanças climáticas, em redução de impacto e em alerta precoce.
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24/06/2024