Nova Comissão Europeia tem luz verde no Parlamento Europeu
A 27 de novembro, como era esperado, o Plenário do Parlamento Europeu (PE) procedeu, em Estrasburgo, à aprovação final da nova Comissão Europeia (doravante Comissão), permitindo que o executivo entre em funções a 1 de dezembro e inicie o novo ciclo de cinco anos.
O colégio proposto obteve 370 votos a favor, 282 contra e 36 abstenções dos legisladores, o suficiente para ser aprovado. Porém, o resultado foi visivelmente inferior aos 401 votos de Ursula von der Leyen no PE, quando se candidatou à reeleição em julho, refletindo uma maioria cada vez mais reduzida, apoiada por menos progressistas e por mais forças de direita. Tal mudança aritmética dever-se-á às disputas partidárias que assolaram as audiências de confirmação dos novos comissários.
O Partido Popular Europeu (PPE), apoiado pelo Partido Popular (PP) de Espanha, lançou feroz campanha contra Teresa Ribera (Transição Limpa, Justa e Competitiva), vendo-a como responsável pela falta de resposta às inundações de Valência, pois, integrando o gabinete do primeiro-ministro, Pedro Sánchez, aduzia que a gestão das catástrofes naturais é, antes de mais, tarefa do governo regional, que está, em Valência, sob o controlo do PP.
Os Socialistas e Democratas (S&D) e os liberais do Renew Europe (RE) criticaram a nomeação de Raffaele Fitto (Coesão e Reformas) como um dos vice-presidentes executivos, alertando para a equivalência dos seus laços com a italiana Giorgia Meloni e com o grupo Conservadores e Reformistas Europeus (CRE) a perigosa normalização da política de extrema-direita. E opuseram-se, vigorosamente, a Olivér Várhelyi (Saúde e Bem-Estar Animal), devido à ligação com o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán e ao longo historial de controvérsias, incluindo o infame episódio em que foi apanhado em microfone aberto a referir os eurodeputados como “idiotas”.
O confronto desencadeou intensos dias de negociações à porta fechada que culminaram com um acordo para desbloquear as candidaturas pendentes. As pastas de Ribera e Fitto permaneceram inalteradas, enquanto Várhelyi foi destituído das suas responsabilidades conexas com os direitos reprodutivos e a preparação para a saúde. O PPE, o S&D e o RE tentaram colmatar as suas diferenças com a declaração de nove pontos para reforçar a coligação centrista. Os S&D e os RE estão preocupados com a chamada “maioria venezuelana”, que reúne o PPE e todos os deputados à direita, incluindo os associados a Giorgia Meloni, a Marine Le Pen e a Viktor Orbán.
As consequências destas negociações difíceis eram ainda visíveis no dia 27. Os principais grupos não garantiram a disciplina de voto, pois as delegações nacionais romperam as fileiras e votaram contra a Comissão. “Não aceitamos que joguem dos dois lados”, disse Iratxe García, líder dos S&D, ao PPE, frisando que “é imoral construir a Europa” com os que “tentam suprimir os direitos fundamentais”, os que “negam as alterações climáticas” e os que “recuam na justiça social”.
Valérie Hayer, líder dos liberais, denunciou a “maioria venezuelana” por ser “contra a Europa” e disse que a “única maioria viável”, no PE, era a coligação pró-europeia composta pelo PPE, pelo S&D e pelo RE. Tanto García como Hayer se dirigiram, diretamente, a Manfred Weber, líder do PPE, que muitos consideram o cérebro por detrás das duas maiorias, mas que tentou recuperar as credenciais centristas e acusou Le Pen, Orbán e a Alternativa para a Alemanha (AfD) de serem os seus “inimigos políticos”, o que suscitou vaias das fileiras da extrema-direita. “Temos ideias diferentes, lutamos pelas nossas convicções, mas todos queremos encontrar compromissos e servir todos os europeus”, disse aos socialistas e liberais.
Os Verdes, excluídos do acordo, apesar de terem apoiado a reeleição de Ursula von der Leyen, em julho, e de partilharem muitas das suas orientações políticas, dividiram-se, agora, com alguns a votarem contra, devido à inclusão de Fitto e de Várhelyi. Contudo, o grupo estendeu o ramo de oliveira à nova Comissão: “Seremos, simultaneamente, críticos e construtivos”, afirmou a colíder dos Verdes, Terry Reintke.
No seu discurso de apresentação, a presidente da Comissão reconheceu as tensões no hemiciclo e encorajou os partidos pró-europeus a avançar e a trabalhar em conjunto. “Ultrapassar as divisões e chegar a compromissos é a marca de qualquer democracia viva. E a minha mensagem de hoje é que queremos trabalhar convosco nesse espírito”, afirmou, assegurando: “Trabalharemos com todas as forças democráticas pró-europeias nesta Assembleia. E, tal como fiz no meu primeiro mandato, trabalharei sempre a partir do centro. Porque todos nós queremos o melhor para a Europa e o melhor para os Europeus. Por isso, agora, é altura de nos unirmos.”
E, em termos programáticos, prometeu um executivo centrado no relançamento da economia estagnada da UE, no aumento da competitividade, na redução da burocracia, no desbloqueamento do investimento e na redução do fosso em matéria de inovação, relativamente aos Estados Unidos da América (EUA) e à China, bem como no apoio à Ucrânia, na defesa, na gestão dos fluxos migratórios, no alargamento, na ação climática, na reforma orçamental e no Estado de direito. “A nossa luta pela liberdade pode ser diferente da das gerações passadas. Mas o que está em jogo é igualmente elevado”, disse, vincando: “Estas liberdades não virão de graça. Significa fazer escolhas difíceis. Significará um investimento maciço na nossa segurança e prosperidade. E, acima de tudo, significa mantermo-nos unidos e fiéis aos nossos valores.”
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No primeiro mandato de Ursula von der Leyen, a União Europeia (UE) sofreu crises dolorosas de dimensão sem precedentes, que obrigaram o executivo a apresentar, muitas vezes, à pressa, propostas transformadoras que, de outro modo, seriam impensáveis. A abordagem prática da presidente da Comissão melhorou-lhe, consideravelmente, o perfil político, granjeando-lhe admiradores e detratores. Desta vez, a sua direção na Comissão está preparada para lidar com as ondas de choque das mesmas crises e para enfrentar os novos desafios.
A guerra definiu a primeira presidência de Ursula von der Leyen e definirá segunda. Este mandato inicia-se num momento crítico para a Ucrânia, com a Rússia a obter ganhos substanciais no terreno e com cerca de 11 mil soldados norte-coreanos a juntarem-se à luta em Kursk, região que Kiev ocupou parcialmente. Entretanto, a China, continuando a ignorar os apelos da UE, fornece a Moscovo a tecnologia avançada que as sanções ocidentais restringiram fortemente.
Ursula von der Leyen, que prometeu estar ao lado da Ucrânia, “durante o tempo que for preciso”, tem de garantir que a ajuda militar, financeira e humanitária ao país continue a fluir ininterrupta, após o regresso de Donald Trump. E o endurecimento das sanções contra o Kremlin e o colmatar de lacunas estarão no topo da sua lista de tarefas.
No início do ano, os estados-membros adotaram a proposta da Comissão para estabelecer um plano de 50 mil milhões de euros, para assistência financeira à Ucrânia, até 2027. Em outubro, aprovaram um plano inovador que permite aos aliados do G7 conceder um empréstimo de 45 mil milhões de euros, utilizando os ativos congelados da Rússia como garantia.
Tais meios podem revelar-se insuficientes, se a guerra piorar e os problemas orçamentais da Ucrânia se agravarem. A destruição de centrais elétricas e de infraestruturas civis por parte da Rússia está a aumentar a fatura. O presidente Volodymyr Zelensky manifestou a esperança de que a guerra termine em 2025, “através de meios diplomáticos”, processo em que Ursula von der Leyen desempenhará papel proeminente, dado o estatuto da Ucrânia de candidato à UE. Porém, as conversações de adesão entrarão em território desconhecido, se a Rússia mantiver os territórios ocupados no Leste.
Um dos princípios ideológicos de Ursula von der Leyen é a crença na aliança transatlântica. Os laços estreitos com o presidente dos EUA, Joe Biden, são testemunho disso. Porém, tal crença ficará sob pressão, quando Donald Trump, com ardente aversão ao sistema multilateral, regressar à Casa Branca e concretizar a ameaça de impor tarifas a todos os produtos estrangeiros. Os EUA são o maior parceiro comercial da UE: em 2023, a UE exportou bens no valor de 502 mil milhões de euros e importou 344 mil milhões de euros – um excedente de 158 mil milhões de euros. Trump ressente-se do desequilíbrio e diz que a UE deve pagar um grande preço.
Para a UE, os direitos aduaneiros viriam na pior altura: fraca procura, elevados preços da energia, política monetária restritiva, escassez de mão-de-obra e investimento insuficiente em novas tecnologias – o que leva o bloco para uma espiral de declínio industrial. As exportações são uma das poucas opções das empresas para amortecerem o golpe e para manterem as suas operações à tona. Se o mercado americano for subitamente afetado por restrições comerciais, o impacto será devastador. Os líderes da UE lançaram a ideia de um acordo com Donald Trump, apelando ao seu instinto de homem de negócios.
Os direitos aduaneiros de Trump coincidiriam com o agravamento das tensões comerciais com Pequim, que reagiu duro aos direitos adicionais da UE sobre os veículos elétricos chineses. As exportações europeias, por isso, estão no fogo cruzado da China.
No primeiro mandato de Ursula von der Leyen, a Comissão muniu-se de novos instrumentos jurídicos para proteger os seus interesses económicos, que serão úteis no segundo mandato. E há que lidar com dois parceiros comerciais, os EUA e a China, que estão a praticar os seus métodos. Donald Trump vai impor algumas tarifas. E, na China, vê-se uma certa hegemonia no atinente à política industrial, com muitos subsídios ilegais.
Pouco depois da sua chegada, em 2019, Ursula von der Leyen dirigiu-se à imprensa para apresentar a primeira proposta de referência: o Pacto Ecológico Europeu, que saudou como o momento do “Homem na Lua” da Europa. Seguiram-se propostas ambiciosas e de grande alcance para levar a UE à neutralidade climática, até 2050. Todavia, este impulso provocou forte reação da direita, de que os protestos dos agricultores foram a maior expressão. Desde então, a Comissão vem alterando a sua narrativa para se adaptar à nova corrente. As diretrizes para o segundo mandato eclipsam o Acordo Verde e privilegiam o “Acordo Industrial Limpo”. Além disso, ressalta o diálogo estratégico sobre o futuro da indústria automóvel europeia, que, estando em crise profunda, reduz milhares de postos de trabalho.
Nenhuma das pastas do novo colégio de comissários tem a palavra “verde” no título, apesar de a presidente da Comissão salientar que todos os compromissos climáticos têm de ser respeitados.
Outro instrumento a preparar pela Comissão é o Novo Acordo Europeu para a Competitividade, que os dirigentes aprovaram para curar a estagnação económica da UE, descrita por Mario Draghi como uma “lenta agonia”. O acordo inclui compromissos para libertar o “pleno potencial” dos mercados únicos, para desencadear a “revolução de simplificação”, para desenvolver “tecnologias disruptivas”, para promover a “soberania energética estratégica” e para construir uma economia “eficiente em termos de recursos”, entre outros.
Quando a UE concluiu, em maio, a reforma para gerir a chegada de requerentes de asilo, Bruxelas pensou, erradamente, que seria suficiente para baixar a tensão e concentrar-se na sua concretização. Pouco depois de a reforma ter sido aprovada, um grupo crescente de estados-membros exigiu soluções inovadoras para travar a migração irregular. As linhas convergem em planos não testados e não pormenorizados para transferir parte dos procedimentos de asilo de dentro para fora do território da UE (externalização). E Ursula von der Leyen, abriu a porta para – ao menos, explorar – a ideia de construir campos de detenção em países terceiros, para transferir os requerentes de asilo cujos pedidos sejam rejeitados. As organizações não-governamentais (ONG) criticaram o projeto, alertando que alimentaria violações desenfreadas dos direitos humanos.
Por seu turno, a presidente da Comissão prometeu legislação para acelerar as deportações, para rever o conceito de “países terceiros seguros”, para combater a migração instrumentalizada e para assinar mais acordos financiados pela UE com países vizinhos, seguindo o modelo da Tunísia. Contudo, nada na legislação da UE permite aos estados-membros externalizar a gestão das fronteiras da UE, quanto a fluxos migratórios ou a pedidos de asilo, antes, pelo contrário.
Apoiar a reconstrução da Ucrânia, reforçar as capacidades de defesa, substituir os combustíveis fósseis por energias renováveis, promover tecnologias de ponta, fazer face a retaliação comercial, construir campos de detenção em países longínquos – tudo isto custa muito dinheiro. Caberá a Ursula von der Leyen encontrá-lo, quando apresentar a sua proposta para o próximo orçamento de longo prazo (2028-2034), que deverá surgir antes das férias de verão. O orçamento terá de cobrir os envelopes tradicionais, como a Política Agrícola Comum (PAC) e os fundos de coesão; os investimentos estratégicos, como o clima, a inovação, a investigação e a defesa; e os fatores externos impossíveis de calcular, como a guerra na Ucrânia, as crises humanitárias, as catástrofes naturais, os fluxos migratórios e as alterações demográficas.
O longo rol de despesas ressuscitará o debate sobre a dívida conjunta, que Mario Draghi considera “indispensável”. Todavia, a presidente da Comissão, que aceitou a contração de empréstimos comuns para criar o fundo de recuperação da covid-19, no valor de 750 mil milhões de euros, tem sido cautelosa, temendo a repreensão de países frugais, como a Alemanha e os Países Baixos. Não obstante, se persistir o declínio industrial da UE e/ou o expansionismo russo e se a crise climática entrar em espiral, terá de entrar no debate e agir conforme os resultados.
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Não há bela sem senão. E à presidente da Comissão, a quem foram apontadas irregularidades na aquisição das vacinas contra a covid-19, é apontada, agora, com “falha estrutural nas regras de ética da UE, pela provedora de Justiça Europeia, Emily O’Reilly, por ter passado férias, em 2023, na casa do primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis, em Creta, matéria que a Comissão deverá tratar, pois o código de conduta da UE impede os comissários de aceitarem hospitalidade, exceto de acordo com o protocolo diplomático e de cortesia, mas esclarece como lidar com as áreas cinzentas da ética, quando a presidente, árbitro de tais questões, está na linha de fogo.
Enfim, espera-se que o caso – um segundo aviso – não condicione a gestão dos negócios da UE.
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28/11/2024