O direito à desinformação e a declaração de guerra à democracia

 O direito à desinformação e a declaração de guerra à democracia

(Créditos de imagem. Elimende Inagella – Unsplash)

“Trump vai em frente, tens aqui a tua gente”: Elon Musk, Mark Zuckerberg, Jeff Bezos. (Há mais, mas estes são suficientes por agora). Une-os uma ideia forte e inabalável de poder, expansionismo e desprezo pelo Outro. E quando o poder que se possui, como é o caso, é desmesurado, os perigos e ameaças vêm na mesma proporção.

Toda a ideia expansionista, pelo menos desde Napoleão, esteve baseada na comunicação e na propaganda. As redes sociais contemporâneas são o cinema e a rádio da ascensão nazista, com a vantagem de terem uma ação mais sofisticada e eficaz, pelo uso do algoritmo, da fragmentação e da personalização das mensagens, enfim, por toda uma tecnologia sem precedentes.

(seguranet.pt)

Daí, que a recente decisão de Mark Zuckerberg considerar o fact-checking uma forma de censura e, por isso, as redes sociais de que é dono (Facebook/Meta, WhatsApp, Instagram) deixarem de o praticar, para passarem a ser autoestradas livres para a mentira e a desinformação, constitui mais um passo no duro cerrar de fileiras da atual tropa de choque muito tecnológica e empreendedora disposta a tudo, em nome de um totalitarismo indiferente aos mais básicos valores do Humanismo.

(© Ann Telnaes x.com/michael1952)

Uns dias antes de Zuckerberg ter anunciado essa decisão, a ilustradora Ann Telnaes, vencedora do Prémio Pulitzer, demitiu-se do The Washington Post, propriedade de Jeff Bezos, que é também dono da Amazon, acusando o jornal de censurar um cartoon em que ela criticava a subserviência dos multimilionários norte-americanos a Donald Trump. Nesse desenho, é possível reconhecer, entre os magnatas que se dobram e prestam vassalagem ao novo presidente dos Estados Unidos, a cara assustadiça de Bezos. 

Em 2020, o vencedor do Grande Prémio do World Press Cartoon, o alemão Frank Hoppmanjá alertava: “É realmente um problema, o facto de os jornais imprimirem cada vez menos sátiras, cartoons e caricaturas. É uma questão de liberdade de expressão e, se os jornais ignoram isso – porque nalguns países é completamente ignorada e mesmo censurada –, então temos um problema muito grande”.

Em março do ano passado, no site A Terra é redonda – espaço de encontro e de intervenção pública de académicos, intelectuais e ativistas de movimentos sociais –, o professor da Universidade de São Paulo, Eugênio Bucci, terminava o seu artigo com a pergunta: “Diante de multidões irreconciliáveis, o que a imprensa ainda pode fazer?”

Times Square, em Nova Iorque. (Créditos fotográficos: Miguel Bautista – Unsplash)

Podemos alargar o sentido da pergunta à luz dos mais recentes acontecimentos, questionando-nos: qual o poder e função do jornalismo em contextos comunicacionais adversos e perante ameaças que nunca defrontou?

Na verdade, ao poder político e comunicacional junta-se, agora, também o poder militar. Nas mesmas mãos e nas mesmas pessoas. A par do poder de fogo da rede social X (antigo Twitter), o seu proprietário, Elon Musk, junta o Starlink (plataforma de satélites de baixo custo e possuidores de um sistema de comunicação baseado na Internet), o qual passa a determinar o destino de conflitos militares.

Um extenso e detalhado artigo do Washington Post, de 12 de outubro de 2024, dava conta da utilização ilegal dos terminais Starlink pelas forças armadas russas na guerra da Ucrânia, explicitando que “o exército ucraniano, desarmado e sem efetivos, tinha uma grande vantagem sobre o seu inimigo: a Internet através dos terminais Starlink”. Acrescentando: “Agora, os russos também a têm.”

O sistema de banda larga via satélite Starlink.(panoramaaudiovisual.com)

De recordar, que em junho de 2023, o Departamento de Defesa norte-americano oficializou um contrato com a SpaceX (propriedade de Musk) para comprar serviços de satélite Starlink para a Ucrânia. O acordo incluía a compra, pelo Pentágono, de 400 a 500 terminais Starlink para a Ucrânia, dando ao Pentágono o controlo de onde a Starlink funciona dentro do país, sem medo de interrupções.

O poder desta nova arma ainda vai no adro. Em julho de 2024, a agência de jornalismo investigativo, Pública, no Brasil, revelava que “90% das antenas de Starlink apreendidas em garimpos ilegais” vêm sendo usadas em ações relacionadas com crimes ambientais.

Em agosto de 2024, a plataforma BBC News Brasil dedica também a sua atenção ao tema, avançando que 90% dos municípios da Amazónia possuem antenas da Starlink.

Entretanto, Elon Musk usou a sua conta pessoal no Twitter para anunciar “o lançamento da Starlink em 19 mil escolas desconectadas” na Amazônia, em maio de 2022, meses antes do início das atividades da empresa na região Norte do país.

(Créditos de imagem: Aleksandr Kukharskiy/Shutterstock – olhardigital.com.br)

Mais de um ano depois, a BBC News Brasil consultou o Ministério da Educação e as secretarias de Educação de todos os Estados que formam a Amazónia sobre o andamento do programa. Todas as fontes oficiais contactadas negaram a existência da rede anunciada por Musk nas escolas dos estados de Roraima, do Pará, de Tocantins e do Maranhão.

“A loucura dos grandes deve ser vigiada”, diz personagem da peça
“Hamlet”. “Polónio por trás da cortina”, pintura de Jehan-Georges Vibert.
(es.wikipedia.org)

Tal como Donald Trump sempre manifestou uma relação inconciliável com a verdade e com os factos, aos seus tecnológicos e poderosos apoiantes (Musk doou 200 milhões e Zuckerberg 100 milhões à campanha de Trump) isso também pouco importa. A democracia, os valores democráticos, o respeito pela verdade e o combate à desinformação, como se comprova, se dúvidas ainda houvesse, nunca foram a sua praia. E agora, que a maré está de feição, é de aproveitar a onda e surfar à vontade, sem o mínimo controlo ou decoro: as ameaças territoriais sobre o Canal do Panamá, a Gronelândia, o Canadá e, até, sobre o México lembram o princípio das anexações expansionistas dos anos 30 do século passado, com a agravante, presentemente, de Trump começar a deitar o olhar guloso para territórios que pertencem aos seus aliados na Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).

A História ensina-nos que sempre que o poder está demasiado concentrado e que os seus detentores são pouco confiáveis, há todos os motivos para recear o pior. Talvez não seja mau lembrar, a este respeito, William Shakespeare e a sua peça “Hamlet”, quando Polónio, em diálogo com Cláudio, rei da Dinamarca, diz a certa altura: “A loucura dos grandes deve ser vigiada.” É esta quase tarefa impossível que se exige, hoje, ao jornalismo, que começa a ter contornos de atividade de resistência.

.

13/01/2025

Siga-nos:
fb-share-icon

João Figueira

João Figueira é doutorado em Ciências da Comunicação e professor de Jornalismo na Universidade de Coimbra. É autor de vasta bibliografia sobre jornalismo, editada em Portugal e no estrangeiro, e co-organizador da obra "As fake news e a nova ordem (des)informativa na era da pós-verdade". As questões ligadas com a História do Jornalismo e dos "media"; com a desinformação/manipulação; e com as relações entre Jornalismo e Democracia, constituem as suas principais fontes de interesse académico. Como jornalista, recebeu vários prémios e distinções, de que se destaca o Prémio de Reportagem/Jornalismo atribuído, em 1999, pelo Clube Português de Imprensa. É co-fundador do jornal "sinalAberto", tendo sido o seu primeiro diretor.

Outros artigos

Share
Instagram