O logótipo da República Portuguesa e a denominação oficial do Estado

 O logótipo da República Portuguesa e a denominação oficial do Estado

A primeira medida do XXIV Governo Constitucional para “transformar o país em quatro anos e meio” foi a de repor o logótipo anterior da República. (cnnportugal.iol.pt)

A recente polémica dos símbolos nacionais parece-me ocupação de quem pouco mais tem a discutir do que posições ideológicas ou de postura política pouco pragmática.

Não sou tão velho como a Sé de Braga, mas penso que a memória não me atraiçoa, se discorrer como segue, sem me estender muito nas questões simbólicas e históricas.

(supercasa.pt)

A revolução republicana, em 5 de outubro de 1910, criou ruturas, obviamente, mas manteve o essencial do que se pode chamar o devir natural da nação. Assim, suprimiu a coroa; criou o escudo como moeda nacional, em sucessão do real; substituiu o adjetivo “real” das instituições, em cuja designação ele figurava, pelos adjetivos nacional, português/a, republicano/a; substituiu a bandeira da monarquia pela bandeira da República que designou de Bandeira Nacional; instituiu “A Portuguesa”, como Hino Nacional (a 1.ª estrofe e o coro), em vez do Hino da Carta; criou o Congresso da República bicamaral (Senado e Câmara dos Deputados), em vez das Cortes; e a personalidade de topo da nação passou a ser o Presidente da República, em vez do Rei.

(cm-tarouca.pt)

A Bandeira Nacional de base bicolor – verde e rubro – tem no centro o escudo nacional (castelos, não pagodes, e quinas) incrustado na esfera armilar (armilas em amarelo-dourado), parecendo conjugar-se o passado com a inovação. Enfim, a esfera armilar substitui bem a coroa. Esta pode colocar-se na cabeça; aquela, quando muito, coloca-se sob os pés do “Cristo Pantocrator”.

Rodeado de correligionários, José Relvas proclama a República da varanda da Câmara Municipal de Lisboa, a 5 de Outubro de 1910. Fotografia de Joshua Benoliel. (Créditos fotográficos: Domínio Público – nationalgeographic.pt)

A Constituição da República Portuguesa (CRP), de 1976, estabelece, no artigo 11.º, cuja epígrafe é “Símbolos nacionais e língua oficial”: “1. A Bandeira Nacional, símbolo da independência da República, unidade e integridade de Portugal, é a adotada pela República instaurada pela Revolução de 5 de outubro de 1910. 2. O Hino Nacional é A Portuguesa. 3. A língua oficial é o Português.”

É certo que também se consideram línguas oficiais, em Portugal, o Mirandês e a Língua Gestual Portuguesa. Porém, a Lei n.º 7/99, de 29 de janeiro, não usa a expressão “língua oficial” para o Mirandês, mas “reconhece o direito a cultivar e promover a língua mirandesa, enquanto património cultural, instrumento de comunicação e de reforço de identidade da terra de Miranda” (artigo 2.º). E o artigo 74.º da CRP, n.º 1, alínea b), considera que, na realização da política de ensino, incumbe ao Estado “proteger e valorizar a língua gestual portuguesa, enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e à igualdade de oportunidades”.

Miranda do Douro (cm-mdouro.pt)

De qualquer modo, não são símbolos propriamente nacionais, porquanto a primeira se confina a uma microrregião e a segunda abrange a comunidade surda (embora considerável) e as pessoas relacionadas com ela, como os familiares, os professores e os empregadores.      

Juntamente com os dados simbólicos, temos as questões atinentes à nomenclatura oficial e aos mecanismos instrumentais do quotidiano.

Por exemplo, a nível desses instrumentos, temos o euro, a moeda oficial, na sucessão do escudo, depois que Portugal passou a integrar a Zona Euro.

A nível da nomenclatura, para lá do que já foi dito, temos, por exemplo, o Diário da República e o Diário das Sessões da Assembleia da República.

Nunca percebi a razão pela qual o jornal oficial do Estado se denominava Diário do Governo (até 10 de abril de 1976), e não Diário da República, quando este instrumento publica não só os atos do governo, mas também do Presidente da República (PR), da Assembleia da República (AR), dos tribunais superiores, das regiões autónomas, das autarquias e das diversas entidades da administração direta e indireta do Estado. Pode dizer-se que, ao invés do Diário das Sessões da Assembleia da República, que recolhe os diplomas em discussão e aprovados, mas ainda sem força de lei, o Diário do Governo, ora Diário da República (DR), publica as leis e os decretos do PR e as leis da AR promulgadas pelo PR, ou seja, já são atos do governo, por via da referenda ministerial e para execução. É certo, mas o DR também publica atos de outras entidades que não precisam de promulgação, nem de homologação ou de ratificação, por exemplo, resoluções da AR, instrumentos das autarquias, decretos legislativos regionais e decretos dos governos regionais, acórdãos e assentos dos tribunais superiores, mapas de resultados eleitorais, etc. 

Por isso, a designação que melhor lhe quadra é Diário da República, já que o nome oficial do Estado Português é República Portuguesa (ver artigo 1.º da CRP). Podia ser também Diário Nacional, Diário de Portugal, Diário da Governação, desde que abranja toda a República.

(imprensanacional.pt)

Já, para órgão de soberania legislativo por excelência, convivo bem com as designações de “Assembleia Nacional”, “Parlamento”, “Congresso” ou “Assembleia da República”.

Achei disparatada a designação de “Presidente do Conselho” ou de “Presidente do Conselho de Ministros”, para os chefes de governo do Estado Novo. Com efeito, a função de presidente do Conselho de Ministros é apenas uma das funções do primeiro-ministro (PM) ou chefe do governo. Aliás, tanto antes como agora, também há ou pode haver o ministro da Presidência. 

Antigo símbolo (agora reposto) e recente símbolo da República
Portuguesa. (capeiaarraiana.pt)

A meu ver, a descabida polémica dos símbolos nacionais não é de símbolos, mas de logótipos. Os símbolos nacionais não podem ser alterados pelos governos, pois estão constitucionalmente protegidos. O logótipo – as pessoas estranham porque se exige a pronúncia “logótipo” (do Grego: lógos + týpos) e não “logotipo”, quando todos pronunciamos protótipo (do Grego: prôtos + týpos) e não “prototipo” (a composição é análoga) – é uma marca que enquadra o timbre de um papel oficial, tal como há um formulário para o início de discurso, de carta ou de outro documento, ou para o seu remate.

Escrevi ofícios cuja despedida era “Deus guarde Vossa Excelência”; outras terminavam “A Bem da Nação”. Depois da Revolução dos Cravos, passámos a rematar os ofícios com “A Bem da República”; a partir de outubro de 1976, passámos a despedir-nos “Com os melhores cumprimentos”; e, ainda hoje rematamos um requerimento com “Pede deferimento”. 

Armas em grafismo digital, usadas pela Presidência da
República, desde 2008. (pt.wikipedia.org)

O timbre dos papéis oficiais era encimado pela esfera armilar a ostentar o escudo nacional, com ou sem palmas, ladeada pelas letras S R, uma de cada lado (em alguns casos, por baixo da esfera armilar, lia-se Serviço da República). Se a folha não fosse polivalente, depois da esfera armilar, vinha a designação do organismo respetivo. Com o evoluir dos acontecimentos, a esfera armilar, com as letras S R, eclipsou-se, em muitos casos e passou a constar, no timbre, apenas a designação do respetivo serviço (ou serviços devidamente hierarquizados, como, por exemplo, “Ministério da Educação – Direção Regional da Educação do Centro – Escola Secundária de Castro Daire”).

Entretanto, com o governo de Passos Coelho, os diversos serviços ostentavam, no frontispício, a bandeira bicolor semienrolada ostentando o escudo nacional acompanhada a designação Governo de Portugal. Não gostei, porque me lembrei do caso de um professor, colocado num dos serviços regionais do Ministério da Educação, que, tendo sido objeto de processo disciplinar por alegados insultos ao primeiro-ministro do XVII Governo Constitucional, não sofreu penalização, porque a ministra da Educação, ao tempo, considerou que o PM não era seu superior hierárquico. E eu vi, nesse logótipo do XIX Governo Constitucional, a ideia de que os servidores do Estado eram funcionários do governo, o que não é verdade. O governo é o órgão que superintende na Administração Pública, mas os organismos da administração Pública são autónomos.

Assim, pareceu-me bem o facto de os governos de António Costa haverem mantido o logótipo, mas substituindo a designação de Governo de Portugal pela de República Portuguesa. Os trabalhadores em funções públicas são, efetivamente, servidores do Estado ou da República, mas não necessariamente do governo. Os funcionários do governo são relativamente poucos.

Um funcionário público é um funcionário do Estado. (conceitosde.com)

Quando, em junho de 2023, vi o logótipo simplificado, fazendo ressaltar uma tripla coloração, não fiquei chocado. Era a coisa mais normal em termos de design em tom modernizado. Só não gostei de, mais tarde, ver a desnecessária explicação de republicidade, de laicidade e de inclusão.

Manual de aplicação da identidade visual do DGEstE. (capeiaarraiana.pt)

A reversão operada pelo XXIV Governo Constitucional, na sequência de promessa eleitoral, mostrou que o governo tinha poucas tarefas importantes a fazer. E as razões invocadas sabem a passado e a revanchismo. O outro governo gastou uns euros para fazer obra de arte, este gasta um pouco menos para anular a obra de arte e para marcar ostensivamente a sua posição. Não era preciso. Salve-se o facto de ter mantido a expressão República Portuguesa.

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Entretanto, a 9 de abril, no Diário de Notícias (DN), Ricardo Simões Ferreira não comenta a mudança do logótipo para um modelo “mais moderno”, criado por Eduardo Aires, mas a mudança da designação que acompanha toda a comunicação oficial emitida pelo Executivo: de “Governo de Portugal” passou a “República Portuguesa”. Não é verdade, como expliquei.

Diz que a mudança se prende com o hábito de confundir o poder executivo com a República ou com o Estado, o que “põe em causa a própria democracia”. De facto, constitucional e democraticamente, o governo não pode assumir a designação de “República Portuguesa”, pois “a República é toda a organização política do Estado, que ultrapassa, em muito, o governo, limitado por normas constitucionais e equivalentes, até porque, não é eleito diretamente, emana da AR.

Óbidos foi o local escolhido para acolher o primeiro Conselho de Ministros informal do XXIV Governo Constitucional, no dia 6 de abril de 2024. (cm-obidos.pt)

Todavia, embora o Estado seja representado, a nível supremo pelo PR, a representação normal do Estado compete ao governo, que dirige a política interna e externa da República. É um serviço da República e é um dos seus órgãos de soberania. 

Simões Ferreira até pensa que, apesar de a receita do Estado provir dos impostos de todos os cidadãos, que formam o Estado, quem gere esse dinheiro e faz a sua aplicação é o governo, pelo que, em vez de “orçamento do Estado”, deveríamos ter “orçamento do governo”. Não é correto, pois o órgão de soberania que decide em matéria de impostos é a AR, outro órgão de soberania da República. Também os tribunais, que são órgãos de soberania, e as regiões autónomas e as autarquias locais, que também são serviços da República, arrecadam receita e assumem despesas.  

A este respeito, o constitucionalista Vital Moreira contrapõe a Simões Ferreira que, tal como os demais “órgãos de soberania”, o governo é órgão da República Portuguesa, o nome oficial do País. Ora, “se o chefe do Estado se designa como Presidente da República e o parlamento como Assembleia da República, torna-se pertinente falar também em Governo da República, até para o distinguir dos governos regionais dos Açores e da Madeira. Se resultar claro dos documentos que se trata do governo, assiste-lhe a legitimidade de “invocar a entidade política em nome da qual atua” (tal como o governo regional invoca a sua região, ou a câmara municipal o seu município). E, incumbindo ao governo conduzir “a política europeia e a política externa do País”, deve “assumir-se como governo da República Portuguesa nas relações com outros Estados e com as organizações transnacionais”.

O constitucionalista Vital Moreira. (pt.wikipedia.org)

Quanto ao orçamento do Estado, o professor Vital Moreira sustenta que a expressão “orçamento do Estado” é a designação constitucional (CRP, artigo 105.º) e está correta, pois o documento prevê as receitas e as despesas de todo o Estado, incluindo as privativas do PR, da AR e dos tribunais, e não apenas do governo e da Administração dele dependente. Por outro lado, “não é o governo que ‘decide onde aplicar o dinheiro’, pois só lhe cabe elaborar a proposta de orçamento, cabendo a sua aprovação à AR (e a promulgação ao PR)”.

Ricardo Simões Ferreira entra em contradição, a menos que haja lapso: por um lado diz que este governo substituiu a designação “Governo de Portugal” (do anterior) por “República Portuguesa”; por outro, diz que António Costa não tinha o direito de usar a expressão “República Portuguesa”.

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Enfim, formas estranhas de entender a democracia e o peso dos órgãos de soberania! Ainda bem que o renomado constitucionalista Vital Moreira está atento.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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15/04/2024

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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