O preço da borrega

 O preço da borrega

(memoriasdejoanapoesia.blogspot.com)

Dito assim, cruamente, o “preço da borrega” era o custo da virgindade de uma adolescente, pago geralmente à mãe da jovem, pelo dono da herdade, pelos favores sexuais que ele esperava que ela lhe prestasse.

Contava a minha mãe que um dado lavrador, bem conhecido na cidade, senhor de muitas terras, viúvo, mas ainda com forças para se mexer, combinara, com a mãe de uma jovem trabalhadora, levá-la para casa, a pretexto de ela ali trabalhar como criada de servir, como então se dizia. A velha criada, ainda do tempo da falecida, dizia ele, já só tinha forças para tratar da cozinha.

(Créditos fotográficos: João Reguengos – Unsplash) 

A mãe da rapariga não desconhecia os propósitos do lavrador, mas a tradicional pobreza que então ainda se vivia nos campos do Alentejo era muita e jogava a favor do patrão. Uma dúzia de contos de réis foi quanto a mãe da rapariga terá recebido pela “honra” da filha, contava a minha mãe. Meses a fio sem trabalho, vivendo do que a terra lhes oferecia e da generosidade da venda, na aldeia, onde os fiados não paravam de crescer (só amortizados depois da ceifa, da apanha da azeitona ou da tiragem da cortiça, quando tal tinha lugar), ter menos uma boca a comer em casa e contar, todos os meses, com o ordenado daquela filha, já era uma ajuda a não desperdiçar.

(Direitos reservados)

Com a jovem em casa, o lavrador tinha artes de a seduzir e, num caso ou noutro em que a jovem engravidasse, havia de encontrar, entre os seus trabalhadores, um homem que a quisesse por mulher. Por essa aceitação, o “felizardo” recebia, do patrão, uma casa para morar, entre as muitas que havia no monte, mais um pedaço de terra para cultivar, uma parelha de mulas, uns dinheiritos para começar a vida e a promessa de apadrinhar a criança.

Afilhados dos grandes senhores da terra, nesses anos, dizia a minha mãe, tinham atrás de si uma história deste tipo, vinda de tempos antigos e continuada por alguns terratenentes sobre as suas criadas, uma realidade que se reporta até aos primeiros anos do século que passou.

Ficcionei este drama em “O Preço da Borrega”, na antiga Editorial Notícias, em 1995, com duas reedições na Âncora Editora. Agostinho da Silva, meu amigo, nos últimos anos da sua vida, e Vergílio Ferreira, que conheci enquanto professor no Liceu de Évora, encorajaram-me a publicá-lo. Natália Correia leu-o, gostou, classificou-o de “etnografia ficcional” e estava a tentar que alguém dos seus conhecimentos o aceitasse para passar ao cinema, quando a morte a surpreendeu. Foi pena, porque o tema merecia a divulgação que o cinema dá.

Enviei, então, um exemplar ao cineasta António-Pedro Vasconcelos, que me escreveu a agradecer, sem, contudo, me dizer se o leu ou não.

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Nota:

“O Preço da Borrega” é uma ficção que junta numa só personagem, Catarina, o drama de muitas adolescentes, nas herdades alentejanas, no tempo dos terratenentes. Estou a falar dos anos 30 e 40 do século passado. Este drama é uma reminiscência do chamado “direito de pernada”, na época dos senhores feudais e sei, hoje, que não foi exclusivo do Alentejo, percorreu Portugal de Norte a Sul.

“Le droit du seigneur”, pintura de Vasily Polenov, que recria de forma idealizada a cena de um velho entregando as suas filhas ao senhor feudal. (vsdn.ru)

12/09/2024

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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