O primeiro 1.º de Maio

Mário Soares e Álvaro Cunhal no primeiro 1.º de Maio, em Lisboa. (rtp.pt)
Seis dias antes, Portugal inteiro saíra à rua. Conhecidos e desconhecidos abraçavam-se, nos olhos havia sorrisos e lágrimas da alegria. Vitoriava-se os militares que haviam posto fim a meio século de estúpido sufoco. Foram sete dias e sete noites de festa espontânea e verdadeira. “O povo está com o MFA” e “O povo unido jamais será vencido” ouviam-se por todo o lado.


Os homens e as mulheres da minha idade (eu tinha, então, 43 anos) estávamos na fase mais pujante das nossas vidas quando fomos apanhados por este extraordinário e feliz acontecimento. Ninguém revelou o mais pequeno apego ao regime acabado de cair, no qual era suposto terem sido moldados. Não se viu um gesto nem se ouviu uma palavra em sua defesa.
A injecção de ideologia salazarista que, como eu, receberam na Mocidade Portuguesa, não surtiu qualquer efeito. O ditador falecera quatro anos antes e, com ele, a filiação obrigatória na já, nessa altura, defunta organização da juventude do Estado Novo. Em termos que se visse, a Mocidade Portuguesa não fez nem os homens nem as mulheres que Salazar sonhou. Sentia-se que o país era nosso.

A fraternidade e a solidariedade pareciam ir desabrochar como os cravos de Abril. Mas foi sol de pouca dura. Já disse – e direi tantas vezes quantas as necessárias – que a classe política, no seu todo, a quem os “capitães de Abril”, há 51 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada”, entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se sistematicamente de uma numerosa parcela deste povo, a raiar a miséria ou a viver dentro dela; a comer, cada vez em maior número, do Banco Alimentar Contra a Fome e de outras organizações de solidariedade social; sem habitações condignas para viver e a desanimar de esperas ao frio e à chuva, noites a fio, nas filas dos centros de saúde ou a morrer nas urgências dos hospitais ou à porta delas, nas ambulâncias. Classe política que tem vindo a perder preocupações pela ciência e pela cultura, que mantém uma justiça para ricos, à margem de outra para pobres e um sistema de educação que falhou redondamente.

Verdadeiros défices na educação, na formação e na preparação para uma cidadania plena abriram as portas a um populismo a que a democracia deu voz e que, usufruindo da liberdade dessa mesma democracia, nos procura arrastar para um modelo de sociedade que a História já mostrou que sempre nos amordaçou, com consequências funestas. Estes, que não fizeram um gesto nem proferiram uma palavra em defesa do regime que caiu de podre, disfarçaram-se e abrigaram-se, depois, à sombra dos partidos de direita, legalizados, e esperaram, calados, até ao momento em que os sucessivos erros dos políticos que nos têm governado e a Liberdade lhes abriram portas e janelas e ei-los a somar os votos de uma população que se sente traída face às promessas daqueles dias radiosos.

Há 51 anos, vivi intensamente esse dia, no trajecto do Martim Moniz à Alameda Dom Afonso Henriques e no estádio da então FNAT (Federação Nacional para a Alegria no Trabalho), onde Mário Soares e Álvaro Cunhal, lado a lado, falaram para mais de cem mil manifestantes e helicópteros militares despejaram sobre eles braçadas de cravos.

Quem viu a manifestação do passado dia 25, na Avenida da Liberdade diz-me que há uma passagem de testemunho em curso, estampada nos rostos e cartazes de muitos jovens que estão a tomar a Liberdade nas suas mãos. Quero acreditar que assim seja e isso deixa-me feliz. Diz-me, ainda, que eles eram a maioria dos presentes, e que os presentes eram muitíssimos.
Vamos, pois, acreditar que “o povo unido nunca mais será vencido”.

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Nota do Director:
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05/05/2025