O primeiro 1.º de Maio

 O primeiro 1.º de Maio

Mário Soares e Álvaro Cunhal no primeiro 1.º de Maio, em Lisboa. (rtp.pt)

Seis dias antes, Portugal inteiro saíra à rua. Conhecidos e desconhecidos abraçavam-se, nos olhos havia sorrisos e lágrimas da alegria. Vitoriava-se os militares que haviam posto fim a meio século de estúpido sufoco. Foram sete dias e sete noites de festa espontânea e verdadeira. “O povo está com o MFA” e “O povo unido jamais será vencido” ouviam-se por todo o lado.

António Galopim de Carvalho e a sua mulher, Isabel, celebram o 1.º de Maio de 1974, junto de um soldado. (DR)
Cartaz da autoria de João Abel Manta. (arquipelagos.pt)

Os homens e as mulheres da minha idade (eu tinha, então, 43 anos) estávamos na fase mais pujante das nossas vidas quando fomos apanhados por este extraordinário e feliz acontecimento. Ninguém revelou o mais pequeno apego ao regime acabado de cair, no qual era suposto terem sido moldados. Não se viu um gesto nem se ouviu uma palavra em sua defesa.

A injecção de ideologia salazarista que, como eu, receberam na Mocidade Portuguesa, não surtiu qualquer efeito. O ditador falecera quatro anos antes e, com ele, a filiação obrigatória na já, nessa altura, defunta organização da juventude do Estado Novo. Em termos que se visse, a Mocidade Portuguesa não fez nem os homens nem as mulheres que Salazar sonhou. Sentia-se que o país era nosso.

A ALA 7 da Mocidade Portuguesa Feminina (da qual faziam parte os concelhos de Penafiel, Lousada e Paços de Ferreira), nos Paços do Concelho da Vila de Lousada, em 20 de Dezembro de 1953. (Fotografia com negativo a preto e branco 6×9 cm, colorida com Python Gans. generative adversarial networks – facebook.com/FotogBorges)

A fraternidade e a solidariedade pareciam ir desabrochar como os cravos de Abril. Mas foi sol de pouca dura. Já disse – e direi tantas vezes quantas as necessárias – que a classe política, no seu todo, a quem os “capitães de Abril”, há 51 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada”, entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se sistematicamente de uma numerosa parcela deste povo, a raiar a miséria ou a viver dentro dela; a comer, cada vez em maior número, do Banco Alimentar Contra a Fome e de outras organizações de solidariedade social; sem habitações condignas para viver e a desanimar de esperas ao frio e à chuva, noites a fio, nas filas dos centros de saúde ou a morrer nas urgências dos hospitais ou à porta delas, nas ambulâncias. Classe política que tem vindo a perder preocupações pela ciência e pela cultura, que mantém uma justiça para ricos, à margem de outra para pobres e um sistema de educação que falhou redondamente.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, participas em acção de voluntariado no Banco Alimentar Contra a Fome do Porto durante a campanha de recolhas de alimentos, em 25 de Maio de 2019. (Créditos fotográficos: Rui Ochoa / Presidência da República – presidencia.pt)

Verdadeiros défices na educação, na formação e na preparação para uma cidadania plena abriram as portas a um populismo a que a democracia deu voz e que, usufruindo da liberdade dessa mesma democracia, nos procura arrastar para um modelo de sociedade que a História já mostrou que sempre nos amordaçou, com consequências funestas. Estes, que não fizeram um gesto nem proferiram uma palavra em defesa do regime que caiu de podre, disfarçaram-se e abrigaram-se, depois, à sombra dos partidos de direita, legalizados, e esperaram, calados, até ao momento em que os sucessivos erros dos políticos que nos têm governado e a Liberdade lhes abriram portas e janelas e ei-los a somar os votos de uma população que se sente traída face às promessas daqueles dias radiosos.

Milhares de pessoas juntaram-se no antigo estádio da FNAT para celebrar, em 1974, o primeiro 1.º de Maio em democracia. (Créditos fotográficos: Arquivo DN – dn.pt)

Há 51 anos, vivi intensamente esse dia, no trajecto do Martim Moniz à Alameda Dom Afonso Henriques e no estádio da então FNAT (Federação Nacional para a Alegria no Trabalho), onde Mário Soares e Álvaro Cunhal, lado a lado, falaram para mais de cem mil manifestantes e helicópteros militares despejaram sobre eles braçadas de cravos.

Na fotografia, observamos Mário Soares, entretanto regressados do exílio. (rtp.pt)

Quem viu a manifestação do passado dia 25, na Avenida da Liberdade diz-me que há uma passagem de testemunho em curso, estampada nos rostos e cartazes de muitos jovens que estão a tomar a Liberdade nas suas mãos. Quero acreditar que assim seja e isso deixa-me feliz. Diz-me, ainda, que eles eram a maioria dos presentes, e que os presentes eram muitíssimos.

Vamos, pois, acreditar que “o povo unido nunca mais será vencido”.

(facebook.com/cgtp.portugal)

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Nota do Director:

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05/05/2025

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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