O quarto (ou o ano) ao lado

Martha (Tilda Swinton), uma ex-repórter de guerra com cancro terminal, e Ingrid (Julianne Moore), uma escritora de autoficção temerosa da morte. (Direitos reservados)
Na minha rotina de assistência de filmes, não esperava encontrar um exemplar que fosse tão representativo de uma mudança de ano quanto “O Quarto ao Lado”, do grande diretor espanhol Pedro Almodóvar. Tal qual a relação entre Martha (Tilda Swinton), uma ex-repórter de guerra com cancro terminal, e Ingrid (Julianne Moore), uma escritora de autoficção temerosa da morte, sinto que há características semelhantes entre o já findado ano de 2024 e o cintilante 2025, que aparentemente chega com vitalidade.

A primeira razão deste insight se vincula à forma em que Almodóvar representa a morte e o pesar, numa relação de integração com as nossas vidas. Isto significa que ele consegue capturar as “nuances” de uma nova perspectiva sobre o luto, muito vinculada às nossas vivências dos últimos anos. Ele admite que os nossos sentidos foram e ainda estão sendo alterados por um mundo em ebulição política, social e ambiental. Nitidamente, os nossos conceitos de luto, de preservação e de segurança já não são mais os mesmos de algumas décadas atrás, visto que a pandemia de coronavírus, os desastres ambientais e as guerras fizeram com que o globo inteiro passasse por desafios de ordem emocional e psicológica.
A meu ver, este filme retrata muito do que é a perspectiva deste período de troca de 2024 para 2025, uma época em que nos acostumamos a conviver com a banalidade da morte, em que estamos constantemente em risco, calculando racionalmente as nossas perdas, sem deveras conseguir absorver plenamente estas partidas. É nesse ponto que o realizador nos chama a atenção para a necessidade de reflexão e de homenagem, pois ele identifica o nosso luto silencioso coletivo e escolhe falar dele abertamente, tentando inspirar-nos a fazer uma vida melhor, com o tempo que temos – assim como Martha tenta fazer, antes da sua despedida.

De qualquer maneira, o luto ainda é a temática principal do filme, ou mais especificamente, o luto antecipatório, no qual tanto os familiares e os amigos quanto a própria pessoa desenganada passam por uma espécie de preparação para a eventual morte. Esse processo pode resultar em algo saudável, se o processo for conduzido com certa tranquilidade. Mas também pode trazer dificuldades aos que ficam. No caso de Martha, a sua doença traz a certeza da morte e ela adquire uma postura afrontosa.

personagem que remonta à história verídica de Martha
Gellhorn, a famosa correspondente de guerra que lutou contra
o cancro até à sua morte (por meios semelhantes) e que
também é referenciada no filme. (Direitos reservados)
Rapidamente, ela acaba por compreender, com muita clareza e realismo, que a sua hora chegou – com a crueza de uma correspondente de guerra. “A morte não vai me levar, se eu sair antes”, diz Martha, ao decidir tomar as medidas drásticas para a eutanásia. Mas, essa postura visceral gera muitos conflitos para Ingrid, que possui um posicionamento contrastante ao tomado por Martha.
Ingrid acaba de lançar um livro sobre a temática, abordando sua inabilidade em aceitar que “algo vivo precise de morrer”. Então, com todo este contexto de enlutamento prévio, Ingrid passa por um arco narrativo de evolução que, com duros custos, a faz amadurecer de uma mulher temente da morte, tornando-se uma mulher que a aceita, após as vivências intensas com Martha.

À medida em que as duas antigas amigas se reaproximam, podemos notar a dificuldade de Ingrid em digerir a postura urgente de Martha. “Cuidado com a morbidez, não precisa de falar assim, sem sensibilidade”, solicita Ingrid à Martha, para que ela não extrapole os limites do decoro social. Dessa maneira, Ingrid é iniciada por Martha nas suas experiências de luto. Mais adiante, a relação entre as amigas faz-nos crer que as pessoas mais vivas são aquelas que sabem que vão morrer, em contraposição àquelas que preferem não pensar nisso – ou que pensam que são imortais. Ter a consciência da nossa finitude torna-se um requisito básico para a arte de viver melhor.
Em outros momentos, a temática ambientalista surge aqui e acolá com Damian (John Turturro), da mesma forma que a oposição às guerras e aos movimentos antivacina. “Depois da pandemia, todos começaram a ficar mais mortos”, comenta ele, sinalizando que o mundo pós-pandêmico de 2024 herdou as dores e um espírito melancólico ainda em processo de cicatrização. Essas críticas surgem também na breve história de Fred, o ex-marido de Martha. Fred era um soldado que retornou da Guerra do Vietname e ficou psicologicamente instável por conta dos traumas vividos – tal qual ocorre com muitas pessoas, atualmente. Ele teve a sua morte ao tentar salvar pessoas que estavam dentro de uma casa a arder. Mas, a casa estava vazia. Os gritos que ele escutava vinham da sua mente, os gritos da guerra, os fantasmas do seu luto.

Outro ponto que me despertou interesse é o quanto há, no guião, uma estrutura cíclica de constante renovação, algo que parece tentar remeter ao próprio movimento entre vida e morte – e, inclusive, cogitar a possibilidade da ressurreição. A Martha de “O Quarto ao Lado” é, notoriamente, uma personagem que remonta à história verídica de Martha Gellhorn, a famosa correspondente de guerra que lutou contra o cancro até à sua morte (por meios semelhantes) e que também é referenciada no filme. A Martha, de Tilda Swinton, passa pelas mesmas problemáticas. Além do mais, tenho a nítida impressão de que a construção da sua personagem também tenha sido amplamente inspirada pela postura forte de Gellhorn.
Após anos sendo a espectadora presencial de guerras entre diferentes exércitos – a guerra dos outros –, agora, Martha passa pela sua própria batalha pessoal, contra o cancro em estágio avançado. Numa primeira parte do filme, luta pela sua vida. Mas, com a notícia de que os tratamentos experimentais não haviam surtido efeito, ela aceita o seu destino. Nesse ponto, acredito que a Martha, de Swinton, renova o espírito da sua fonte inspiradora, ao trazer um olhar moderno e pragmático sobre o que queremos fazer das nossas vidas antes de efetuarmos a passagem e também pela sua relação com a personagem Michelle – sobre a qual não entrarei em maiores detalhes, para evitar spoilers.

Mas, ao fim de contas, Martha não consegue ser a correspondente das suas próprias batalhas. É Ingrid quem acaba por fazer esse papel. Quem trava o combate, dificilmente consegue registrá-lo. “Nessa guerra, eu não consigo escrever[…], estou muito reduzida ao meu próprio corpo”, diz Martha, em algumas partes do filme. E é interessante o quanto a função se converte numa iniciação de Ingrid a este universo, pois, é fundamentalmente a primeira “guerra” que ela acompanha – e ela está sendo iniciada pela melhor profissional nisto. Por não aceitar a morte, ela não quer que Martha desista da sua vida. Deste modo, entre conflitos externos e internos, dividindo as habitações de uma casa, juntas, elas vão progredindo no processo de aceitação da morte de Martha, alternando entre a depressão e a euforia, tal qual acontece nos processos reais de luto.

Sinto que este é um filme em que temos Almodóvar na sua forma mais pura, com a sua construção melodramática e universo colorido, com fotografia de encher os olhos. Além disso, não é um cinema espalhafatoso, de grandes espectáculos. Concentra-se nos detalhes, de atuações minuciosas e “migalhas” narrativas que vão traçando um caminho de sentido muito coerente com a proposta, uma trama complexa. Certamente, o olhar do cineasta desconstrói a ideia monocromática da morte e trabalha a temática do luto antecipatório com delicada sensibilidade.

Apesar de ter perdido o prémio de melhor atriz no Globo de Ouro, para Fernanda Torres (minha conterrânea, acerca da qual tenho muito orgulho), é preciso valorizar a bela atuação de Tilda Swinton, que move o filme dramaticamente. Ela consegue atingir uma alternância elogiável na sua interpretação, entre os momentos de entusiasmo e os de prostração e de fraqueza. Em alguns pontos do filme, além de interpretar a personagem Martha, ela parece ser a própria morte encarnada – uma morte ressignificada, trajando um cobertor colorido e carregando o suporte para soro em vez da foice, decerto obra de Almodóvar. Da mesma forma, consegue trazer ânimo e energia para o papel, nos momentos em que Martha tem pressa de viver tudo o que puder viver. Certamente, o seu nome será indicado para o prémio de melhor atriz dos Óscares, evento que acontece hoje.

O filme está fazendo um grande sucesso nas salas de cinema e nos festivais por onde passa, por conta da atuação impecável de Tilda Swinton, pelo trabalho de realização sensível de Almodóvar e, justamente, pela abordagem de temáticas densas, que são representativas do nosso tempo – o luto, a morte, as problemáticas ambientais e o mundo pós-pandêmico. Assistir a “O Quarto ao Lado” inspira-me a investigar e a ressignificar ainda mais a temática do luto da nossa contemporaneidade, o nosso novo luto. Tal como Martha e Ingrid enfrentaram os seus medos e cresceram com a ampliação das suas consciências sobre a morte, tenho a certeza de que assistir a esta linda produção lhe trará inspiração para fazer o mesmo. Assim, podemos começar o ano de 2025 com um espírito revigorado, pois, perceberemos que o nosso passado difícil nada mais foi do que um grande impulso para desfrutarmos melhor o caminho nas nossas jornadas e para vivermos melhor, atingindo uma “Ars Moriendi”.
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23/01/2025