Os bosques de névoa de Castañar de Ibor

 Os bosques de névoa de Castañar de Ibor

Créditos: Paul Earle (Unsplash)

O convite foi feito para passear e descansar, mas haveria surpresas.

Eram vários grupos e Nicolás Flores, o anfitrião, sugeriu que rumassem a Castañar de Ibor, perto de Cáceres. As estalactites das cuevas indicariam o caminho até à finca. Não confundir com os mármores antigos de Bohonal de Ibor. Poderiam ter que medir forças com castanheiros, carvalhos, sobreiros, chaparros e medronheiros.

E também com veados, gamos, corças e javalis. Parece que a última loba da Serra de San Pedro foi atropelada em 1989, na estrada de Cáceres, mas poderiam ter que taurear um estranho javali albino se não desligassem os faróis. Cautela com os sabres.

E poderiam ser absorvidos por improváveis bosques de Loro Prunus lusitanica, carinhosamente conhecidos por loros, as laurissilvas locais que nos fazem recuar três milhões de anos, pondo-nos no Terciário. Cuidado com as chuvas horizontais dos bosques de névoa. Poderiam ser engolidos pelo tempo. Não esquecer bússola, ampulheta e impermeável. O GPS e o relógio seriam inúteis.

Os grupos chegaram à finca e reuniram-se na adega. Estava quente e sorveram os gazpachos. O professor e a mulher atiraram-se ao jamón serrano. Adrián, um jovem com cara de medusa e olhos azuis líquidos, cor de mar em dias calmos, começou pela tortilla de patatas. Não parecia gostar de carne. Havia também pulpitos e pescaditos.

Nicolás Flores, engenheiro mecânico, curioso do mundo e das coisas boas, servia galicias e riojas dos barris. Todos quiseram. As íris de Nicolás eram verde-garrafa e interrogavam, mesmo que não olhassem. Tinha reunido aquele grupo, não porque fossem todos amigos, mas porque gostava de saber sempre mais. Havia uma certa plenitude cosmopolita em Nicolás que atraía. Joana, a portuguesa de Setúbal, pediu um copo.

O pequeno-almoço foi servido às seis horas em ponto. Ainda estava escuro e a neblina era espessa. Ficaram então a saber que haveria uma monteria perto de San Pedro e que teriam armas, coletes, botas, roupa espessa e capuzes à disposição. E cães. Correu um sussurro de espanto. Não sei caçar. Não quero caçar. Caçar o quê? Parece que havia javalis como mosquitos, e que assaltavam as colheitas. Nicolás sondou-os em ângulo. Vamos ver quem resiste à ideia.

Créditos: Víctor Manuel Pizarro.

Somos caçadores-recolectores, prática embutida nos genes. Sabemos isso, mas também sabemos que somos 7,8 biliões de almas e que não haveria caça que chegasse. Além disso aproximámo-nos tanto dos animais que já dormimos com eles. Um porco selvagem não é diferente de um gato. Os lobos foram domesticados em cães. Miguel Cedro, o companheiro de Joana, dono de uma empresa turística de observação de golfinhos na Arrábida, pensou que não seria capaz de matar um irmão, os seus irmãos da vida. Nicolás observava. Apertou involuntariamente os maxilares e devolveu o olhar.

Foram levados numa pick-up de caixa aberta. Passaram-lhe uma arma e apontou o cano para cima, para o céu, perplexo. Deslizaram carvalhos, casinhas agrícolas e eiras em cadência lenta. Um judas de palha espantava os pardais. Parecia cansado. O vale lá em baixo, verde e húmido, desfilava lentamente, fitando atentamente as suas absurdas fardas.

Parecia medir os movimentos com uma ampulheta avariada. O tempo ficou suspenso e preso num elástico. Poderia quebrar-se em qualquer momento.

Algo se mexeu lá em baixo e um funcionário gritou. Agora. Excitados, ordenaram-lhe que fizesse mira. Apontou e pareceu-lhe ver duas hastes, duas hastes-ramo, a caminhar como uma, em ondas lentas. A excitação de Joana. A intensidade de Nicolás Flores. A sombra de Adrián. Agora. Desviou grosseiramente a mira para cima e atirou. O funcionário correu mas não deu sinal. Parece que está ferido. Joana falava muito alto mas não sabia o que dizia. Adrián murmurou qualquer coisa. Não o encontro, deve ter fugido. Soube mais tarde que Adrián fez serviço militar especial e que era um atirador exímio. Nicolás disfarçou.

Ocuparam os seus lugares e alguém abriu as portas da monteria. O ruído de fundo da matilha a aproximar-se. Miguel, que tinha deixado a arma na pick-up, observava. Vários javalis em tropel rápido. Não olharam para eles e seguiram em frente, aturdidos. Soaram tiros e alguns caíram.

Também ele caiu, perplexo. Foi uma queda que durou séculos. Teve tempo para se ver a nascer, a sentir o sorriso da mãe, a correr feliz com uma bola, a falar com o seu melhor amigo, a amar a sua mulher, a beijar o seu filho, a ler a Desgraça de Coetzee, a ouvir You Want it Darker, a fechar os olhos do seu pai e a cheirar uma rosa.

Também teve tempo para olhar em volta. Adrián parecia não ter notado e limpava o cano. Nicolás levantou-se como uma mola e começou a correr para ele. Não viu a companheira e o casal de professores. Os cães já estavam longe e o silêncio era espesso. Ainda pensou no veado e nas suas crias.

Viu, quando acordou no hospital, que tinha sido atingido na coxa. Não parecia ser muito grave. Parecia estar vivo.

Recordava-se de ter sonhado com os bosques de névoa milenares de Las Valluercas, que planeava visitar mas que já conhecia de fotos. Eram percorridos por veados e pelas suas crias, que passavam muito tempo a pastar em silêncio.

Miguel Cedro concluiu que tinha ficado ao cuidado dos bosques de névoa e das suas criaturas, provavelmente a três milhões de anos de distância.

Pode contactar o autor do texto, através do e-mail: pratas-young@theyeofhorus.net.

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José Pratas-Young

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