Os nossos queridos actores: “E o som da água canta-nos ao ouvido”

 Os nossos queridos actores: “E o som da água canta-nos ao ouvido”

(Créditos fotográficos: jTUNA – tnsj.pt)

Hamlet (a Polónio): “Caro senhor, quereis incumbir-vos da hospedagem dos actores? Mas tomai nota: que sejam bem tratados porque são o espelho e as breves crónicas do tempo. Antes tenhas um mau epitáfio depois de morto do que seres acusado por eles enquanto vives.” (Hamlet, II, 2) 

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Mais de uma vez, socorri-me da fala agora transcrita da peça “Hamlet”, de William Shakespeare.

Durante muito tempo, este foi considerado o único retrato de William
Shakespeare que tinha qualquer pretensão de ter sido pintado de vida, até
que outro possível retrato de vida, o retrato de Cobbe, foi revelado em
2009. O retrato é conhecido como o “retrato de Chandos” em homenagem
a um proprietário anterior, James Brydges, 1.º Duque de Chandos. Foi o
primeiro retrato a ser adquirido pela National Portrait Gallery, em 1856. O
artista pode ser de um pintor chamado John Taylor, que foi um membro
importante da Painter-Stainers’ Company. (pt.wikipedia.org)

Quem tenha lido com atenção aquela magnífica obra descobrirá o amor, o afecto e o carinho que a personagem de Hamlet nutre pelos actores. Basta ler atentamente o monólogo do acto III – cena 2, no qual, na forma mais pedagogicamente possível, o príncipe ensina os actores a não serem exagerados, mas também não demasiado insípidos, afeiçoando o gesto à palavra, a palavra ao gesto, sem ultrapassar a sobriedade da Natureza, pois todo o exagero é contrário ao objectivo da arte dramática, cujo fim é ser como o espelho da Natureza…

Neste belo monólogo, Shakespeare é Hamlet e será este um dos momentos nos quais o bardo está tão próximo da personagem, na juventude como, mais tarde, nas suas obras finais, estará da personagem de Próspero na “Tempestade”, ou de Leontes no “Conto de Inverno”, respectivamente.

“Hamlet” – Acto III, Cena II. (fragmentoliterario.blogspot.com)

Assisti ao encontro, no Teatro Nacional São João (TNSJ), do lançamento do CD da versão de “Ode Marítima”, na voz de João Grosso, metade consistiu na apresentação ou lançamento do aludido CD, seguindo-se-lhe um recital lírico. Nas palavras da própria organização, era um apelo a um reencontro com um imenso poeta e um grande actor: “E o som da água canta-nos ao ouvido!”, escreveu Fernando Pessoa/Álvaro de Campos na Ode Marítima (1915), como anota o TNSJ, adiantando tratar-se de um poema que Eduardo Lourenço considerou “um dos mais grandiosos e profundos de que pode orgulhar-se a língua portuguesa”.

Informa ainda o TNSJ: “Há mais de 35 anos que João Grosso nos canta ao ouvido este poema, em espe[c]táculos e recitais, a solo ou com acompanhamento musical, em teatros, escolas, bares, prisões, ruas. O a[c]tor e encenador propõe-nos agora, a meias com o sonoplasta Francisco Leal, a edição em CD da sua versão de Ode Marítima, combinando o valor plástico da palavra dita com as possibilidades abertas pelas novas tecnologias de produção áudio.” O resultado é – segundo a mesma nota informativa do TNSJ – uma espécie de “filme sonoro” ou “um modo de encenar o som”, de que se fez “prova no recital integral da obra, em versão acústica”. Antes disso, João Grosso e Francisco Leal conversaram “sobre o processo de criação desta singular Ode Marítima, com a moderação da escritora, crítica literária e jornalista Filipa Melo”.

Na plateia do TNSJ, também encontrámos actores contemplando actores – Jorge Pinto e Emília Silvestre (da companhia portuense Ensemble – Sociedade de Actores), amigos desde sempre, amizade com quase 50 anos, bem como João Cardoso (fundador, director artístico, encenador e actor da companhia de teatro ASSéDIO), entre outros. 

O actor Jorge Mota, em ensaios, neste momento, no TNSJ, faz-me lembrar a fidelidade de João Grosso à “Ode Marítima”, já apresentada num longínquo FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica), na sala do Ateneu Comercial do Porto. Hoje, parece que essa inicial aventura alcança uma outra etapa, a edição sonora para a posteridade.

Salvador Santos, em 2021 no TNSJ, e capa do livro da sua autoria. (Direitos reservados)

Ainda no final do ano passado, o amigo, cronista e homem de teatro Salvador Santos1 edita o seu livro “Os Meus Queridos Actores – Volume I”. Há uma amizade que me liga ao Salvador desde os seus tempos de administrador, director e produtor no TNSJ, com ele fizemos possível, na direcção artística de Nuno Carinhas, consolidar o Ciclo das Escolas de Teatro no TNSJ. Isto é, a apresentação pública dos espectáculos dos finalistas das escolas de teatro do Porto.

Assim, os finalistas de estudos superiores e profissionais podem representar, nas três salas do TNSJ, os seus exercícios de graduação final. Este ciclo foi iniciado há mais de uma década e afirma-se como uma das programações fixas da nossa primeira casa de teatro da cidade do Porto.

No âmbito do IV Festival de Teatro José Guimarães, foi realizado o espectáculo “Terror e Miséria do Terceiro Reich”, que constituiu um exercício dos alunos finalistas da licenciatura em Teatro da Escola Superior Artística do Porto (ESAP), sob minha orientação. (aviagemdosargonautas.net)

Com as seguintes notas, Salvador Santos1 abre o prefácio do seu livro “Os Meus Queridos Actores – volume I”: “Já lá vão mais de cinquenta anos desde o dia em que me iniciei como fazedor de teatro, primeiro como amador e depois como profissional. […] em todas as funções que exerci dispensei sempre uma preocupação maior e cuidados muito especiais por aqueles que são de facto, para mim, o elo principal de toda a cadeia de valores da a[c]ção teatral, desde a pré-produção à última exibição dos espe[c]táculos: o a[c]tor.” 

Durante alguns anos, partilhei com o Salvador uma coluna, numa mesma página do jornal Audiência, de Gaia. As minhas crónicas inseriam-se na rubrica “Palco”. Ele integrava as suas crónicas na rubrica intitulada “No Palco da Saudade”, talvez um esboço embrionário do seu livro. Esses artigos baseavam-se nas suas memórias dos actores que marcaram a sua vida profissional, enquanto colegas, e também na qualidade de espectador.

Hoje, essas memórias compõem o primeiro volume deste livro, que inclui 143 nomes, de épocas e de movimentos artísticos passados e contemporâneos. Ao ler esta obra, reencontro-me com alguns deles, que tive a sorte de conhecer e com os quais partilhei emoções. A sempre boa recordação de Eunice Muñoz, de Paulo Renato (numa noite em Lisboa, no Teatro Aberto), de António Rama (no Porto), bem como dos actores, prematuramente idos, Carlos Daniel e António Assunção.

Carlos Manuel Wallenstein dos Santos Teixeira
(04.11.1926, em São Miguel, Ponta Delgada –
16.10.1990, Lisboa). (geneall.net)

Esperamos que o segundo volume deste livro inclua uma nota biográfica do dramaturgo e actor açoriano Carlos Wallenstein, o meu sempre querido anjo da guarda na Fundação Calouste Gulbenkian, que sempre apoiou os meus projetos. E há mais, claro, tantos outros que tive a fortuna de os ver no palco representando as vidas de outras personas.

Sem dúvida, este livro será material excelente para um historiador de teatro, para um jovem em formação superior, para um estudante de literatura ou, enfim, para qualquer um que se deixe levar pela Arte de Talma.

O nosso amor aos actores manifesta-se nos aplausos, na nossa presença nos espectáculos, no respeito e na fidelidade ao seu trabalho no palco, desejando a continuação dos seus percursos artísticos e guardando, para sempre na memória, os momentos inesquecíveis que vivemos enquanto espectadores. Obrigado ao Salvador Santos e um bem-haja por esta generosa oferta!

Antonino Solmer
(facebook.com/escoladeactores)

E porque de actores de teatro se trata neste artigo, não posso deixar de comentar a partida de Antonino Solmer (1950-2024). Conheci-o como actor na companhia teatral “Os Cómicos”, de Lisboa. Era um jovem actor e, mais tarde, pedagogo. Deixou-nos um belo manual sobre teatro2, para o estudo teórico e prático das matérias relacionadas com a nossa bonita profissão.

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Notas:

1 – Alguns dados biográficos sobre Salvador Santos (1949, Lisboa): produtor e gestor cultural. Tem o Curso Avançado de Gestão Pública. Foi animador cultural na segunda metade anos 60, em Lisboa. Iniciou a sua actividade profissional no teatro, em finais de 1973, tendo desempenhado, até ao início da década de oitenta, funções de actor, ponto teatral, técnico de som, técnico de luz e director de cena em diversas companhias e grupos de teatro. Em 1981, ingressou no Teatro Nacional Dona Maria II.

Teatro Nacional Dona Maria II, em Lisboa. (© VJS – sinalAberto)
(Direitos reservados)

Em Setembro de 1997, foi nomeado subdirector do Teatro Nacional São João (TNSJ), responsável pelo pelouro da produção e da técnica, cargo que exerceu até Setembro de 2000. Em 2021, a então ministra da Cultura, Graça Fonseca, atribuiu a Medalha de Mérito Cultural a Salvador Santos, pelo seu percurso profissional exemplar e pelos seus contributos para as artes cénicas em Portugal.

Salvador Santos é o mentor intelectual e programador do Festival de Teatro José Guimarães da Tuna Musical de Santa Marinha, em Vila Nova de Gaia, iniciativa que homenageia o escritor José Guimarães e que já vai na 5.ª edição.  

2 – “Manual de Teatro – Cadernos ContraCena”, de Antonino Solmer, Edições Afrontamento (1.ª edição, 1999 – 5.ª edição, 2022).

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01/02/2024

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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