Os professores não perdem a aura por se manifestarem

 Os professores não perdem a aura por se manifestarem

(Créditos fotográficos: mauriciodonascimento – Pixabay)

Para o ministro da Educação, Ciência e Inovação, os professores que se manifestam, nas ruas, por melhores condições de trabalho, embora tenham razões para isso, perdem “toda a aura” da profissão, a autoridade na sala de aula e o respeito de gerações de alunos. E diz não “perceber como é que se desvalorizou tanto, socialmente, os professores”.

O governante, que também é professor – mas, pelos vistos, não teve necessidade de se manifestar ou não o fez para não perder toda a aura – reconhece o direito de manifestação, mas julga que os professores não devem exercê-lo, para serem respeitados.

Fernando Alexandre, ministro da Educação, Ciência e
Inovação. (portugal.gov.pt)

Fernando Alexandre admite que os professores tiveram razões para estarem a manifestar-se nas ruas, por terem sido “muito maltratados em Portugal, durante demasiado tempo”. Porém, resta saber quem os tem maltratado. Desde logo, este ónus impende sobre os sucessivos governos, que lhes desvalorizaram a carreira, desde 2002, que os sobrecarregaram com trabalhos (muitos destes, burocráticos, sem interesse ou feitos em duplicado). Impende sobre a sociedade, nomeadamente, os encarregados de educação, que, à conta da participação no processo educativo, vêm condicionando a vida da escola, bem como as autarquias, que mandam, em demasia, nas escolas, muitas vezes, servindo interesses partidários, clientelares, familiares ou amicais.

Além disso, obrigar a manterem-se na escola professores cansados, marcados pela doença ou envelhecidos não significa valorizar a profissão, tal como pactuar com dirigentes que se vingam de alguns docentes fragilizados ou contestatários, entregando-lhes a lecionação de turmas mais problemáticas.

(Créditos de imagem: Alexa por Pixabay)

Devemos lembrar como se processou a campanha difamatória da avaliação de desempenho do pessoal docente, com cotas de menções elevadas, sustentando que os professores andaram mais de 30 anos sem qualquer avaliação. Mais foi dito por um primeiro-ministro que o diretor de escola podia não ser um professor, até porque há professores que têm competência para lecionar, mas não para dirigir. E, ainda, professores acabados de formar em instituições do ensino superior chegaram a ter de se sujeitar a uma prova da avaliação de conhecimentos e de competências.

Não podemos esquecer também que, embora o Estatuto da Carreira Docente (ECD) reconheça ao professor autonomia profissional, o seu trabalho é sujeito a um rol de determinações e de interferências de nível superior ou de caprichos dos órgãos colegiais da escola. 

É tudo isto que fez entrar em declínio a aura docente e incrementou o desrespeito pelos professores e a sua desvalorização social. Quem se sente deveras atraído pela docência?

(Créditos de imagem: Miroslavik – Pixabay)

O ministro da Educação sabe que, durante muitos anos, os professores andaram em manifestações, com razões para isso, mas sustenta que o professor é alguém que é respeitado na sociedade por ser alguém que sabe, que tem autoridade, que é respeitado por gerações e gerações de alunos.

Nisso, estamos de acordo. Porém, a perda da aura não se deve às manifestações. Depois, as suas asserções, que parecem acusações, são descabidas, quando propaladas perante mais de duas centenas de alunos da escola secundária Dr. Joaquim de Carvalho, na Figueira da Foz, aquela que ele frequentou entre 1984 e 1990.

Não se acredita que o titular das pastas da Educação, Ciência e Inovação não tenha estado a criticar os professores que participaram em manifestações. Então, estaria a fazer o quê?

Escola Secundária Dr. Joaquim de Carvalho, na Figueira da Foz. (esjcff.pt)

Em vez de falar da perda da aura docente e de a atribuir às manifestações legítimas (as petições e as manifestações surgem quando algo está mal e não é mudado porque os responsáveis não querem), devia esclarecer os estudantes sobre a nobreza da função docente e do respeito que merecem os professores, embora possam ter defeitos e o seu trabalho nem sempre corra bem. E, sobretudo, devia ter respondido ao aluno do 11.º ano da área de Ciências, que quer ser médico e que o questionou sobre como pode o governo tornar a carreira docente mais atrativa.

De facto, como frisou o ministro da Educação, começa-se pela valorização social dos professores, pois, “o professor é uma pessoa que marca gerações”. Todavia, o governo tem de fazer a sua parte: evitar denegrir, pelo discurso, a imagem dos professores e valorizar a carreira docente, desde logo com melhoria salarial (fundamentalmente, no início) e com as melhores condições de trabalho e de autonomia profissional. 

É natural que o governante mostre nostalgia do tempo em que frequentou uma determinada escola, mas não é isso o que se espera dele, enquanto governante.

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Fernando Alexandre referiu que, entre as medidas que o governo quer implementar e que serão alvo de negociações com as estruturas sindicais – interrompidas pela queda do anterior governo e que serão agora retomadas, salientou o fim das quotas nos 5.º e 7.º escalões, que “impedem o planeamento da carreira”, por parte dos docentes. Também referiu a necessidade de valorizar, em termos salariais, os escalões iniciais da carreira docente, que, tal “como acontece na generalidade da função pública, e até pela competição que existe do setor privado, são valores que são relativamente baixos”.

(Créditos de imagem:  Juan Ospina – Pixabay)

Resta saber se o titular da pasta da Educação já tem o aval do ministro das Finanças ou se já não depende dele, no planeamento orçamental da Educação.

Sobre a falta de professores em algumas regiões, o ministro da Educação disse que o governo está a colocar mais professores nas escolas, que estavam a fazer outras coisas, mas que estão a voltar, para preencher horários vagos. “Tínhamos mais de dois mil professores que estavam em câmaras municipais, em imensas entidades e que eram precisos nas escolas. A regra que assumimos foi ‘quem é preciso na escola, volta para a escola’. […] Se, depois, a pessoa, de facto, for precisa noutro serviço, a mobilidade é dada. Se não, a prioridade é dar aula, foi o critério que definimos.”

Considerou que não atingiremos “os nossos objetivos, enquanto país, se a educação não estiver estabilizada e não estivermos focados naquilo que importa, que é a qualidade da educação”, o que “não é possível, sem professores motivados e sem pessoal não docente”.

Sim, de questionar o que fazem professores nas câmaras municipais, mas também o que faz o governo para motivar os professores.

(Créditos de imagem:  Jerry Kimbrell – Pixabay)

Mais tarde, em resposta à Lusa, Fernando Alexandre frisou que o governo quer que os professores tenham “uma carreira mais justa, mais transparente e valorizada”, conforme acordado, no anterior governo, com sete sindicatos e cujos eventuais acordos deverão estar concluídos em 2026.

A este respeito, devo recordar que, no ano passado, aproveitando a circunstância de a Federação Nacional dos Professores (Fenprof) se ter recusado a assinar o referido acordo, o governante acusou esta estrutura sindical de nunca ter como objetivo a Educação, mas os interesses deste setor profissional. Porém, tanto quanto é sabido, em diversos momentos, a Fenprof, tem-se pronunciado sobre matéria estritamente educativa e feito inúmeras propostas de melhoria da ação educativa, mormente, na escola pública. Por outro lado, a missão principal de uma organização sindical não é a teorização, mas a defesa das condições de trabalho, da carreira e do salário dos seus associados, numa palavra, a defesa dos interesses coletivos destes trabalhadores, com foco específico na negociação de condições laborais e na representação legal e política dos mesmos.

E não digam que, no caso, esta luta não constitui uma mais-valia para a Educação.

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Em termos simplistas, Fernando Alexandre desvalorizou o direito à manifestação ante uma plateia de estudantes do ensino secundário, mas a Fenprof respondeu-lhe, lembrando que a luta dos professores “foi sempre determinante para a conquista de legítimos direitos, [para] a resolução de problemas e [para] a melhoria da condição docente”.

(Créditos fotográficos: Kenny Eliason – Unsplash)

O governante, a pretexto de uma “aula” sobre Literacia Financeira (que abordou temas díspares), decidiu explicar àquela plateia que “alguém que anda em manifestações perde a aura”. Porém, a mensagem deixada aos alunos, no modo como foi formulada, dificilmente lhes diria respeito, pois era endereçada aos professores, o que revela uma postura com pouca ética. 

Para o ilustre membro do governo, exercer o seu direito constitucional à expressão significa que o professor perde a aura do respeito “na sociedade, por ser alguém que sabe, que tem autoridade, que é respeitado por gerações e gerações de alunos”. Porém, com uma boa dose de hipocrisia, quis dizer que não estava a atacar a classe docente, antes sustentando que os professores “foram muito maltratados em Portugal, durante demasiado tempo”, e que tiveram “razões para isso”.

Esta “benévola” condescendência não foi suficiente para escapar às críticas de muitos professores e a maior estrutura sindical docente, a Fenprof, no dia 17 de setembro, dirigiu-lhe uma carta aberta em que o acusa de desvalorizar o direito à manifestação, diante de jovens “a quem deveria ser transmitido o valor da democracia e dos direitos que a sustentam”.

(Créditos fotográficos: Artem Maltsev – Unsplash)

Esta organização sindical lamenta que, no momento em que nos aproximamos do 50.º aniversário da aprovação da Constituição da República Portuguesa (CRP), o responsável pelo Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI) “desvalorize o direito à manifestação previsto no respetivo artigo 45.º” e desvalorize “a importância fundamental de que o exercício de tal direito se reveste para o progresso da sociedade, para a democracia e, no caso em apreço, para a defesa da condição docente, perante governos que a têm atacado”. E torna-se mais grave, “quando a desvalorização – que atinge diretamente os professores e educadores, a quem não têm faltado fortes razões para se manifestarem – acontece pela boca do ministro, perante uma plateia repleta de crianças e jovens, a quem deveria ser transmitido o valor da democracia e dos direitos que a sustentam.”

A Fenprof sustenta que as lutas dos professores sempre tiveram como objetivo o progresso: por melhores condições de vida e de trabalho, [por] valorização social e material da profissão, [por] estabilidade, [por] reforço do investimento na Educação e [por] concretização de uma escola pública democrática, de qualidade, inclusiva e para todos. Porém, “muitos têm sido os governos que se guiaram por outros objetivos e que, por certo, não apreciaram a contestação que isso provocou”, vinca a Fenprof.

(cgtp.pt)

Por outro lado, “não obstante isso não ter agradado ao poder, a luta dos professores, incluindo as manifestações que se tornaram direito e expressão da democracia, foi sempre determinante para a conquista de legítimos direitos, [para] a resolução de problemas e [para] a melhoria da condição docente.”

As declarações do ministro são feitas enquanto o governo insiste na “prolongada ausência de soluções estruturais”, trava a valorização da profissão e agrava a falta de professores nas escolas.

A carta lembra que, apesar de, durante a ditadura salazarista, ser “proibido e até muito perigoso fazê-lo”, houve muitos professores e educadores que continuaram a arriscar manifestar-se e a lutar em nome da dignidade da profissão e do ensino, sem nunca terem perdido a sua aura ou terem diminuído a sua “condição profissional e de cidadania”. Antes a reforçaram, através da coragem com que enfrentaram a precariedade, a ausência de direitos e as injustiças de um sistema que os explorava e desconsiderava. Recorde-se o exemplo dos Grupos de Estudo do Pessoal Docente, embrião dos sindicatos progressistas que nasceram com Abril.

A carta refere que as asserções que merecem crítica vêm de um membro de um governo que “já confirmou a intenção de atacar outros direitos fundamentais”, como o exercício do direito à greve, e reafirma que os “professores não abdicam da sua dignidade, da sua autoridade, nem do seu direito à luta”, mas que, ao invés, “continuarão a educar pelo exemplo, opondo-se a arbitrariedades e a injustiças, em defesa da profissão, dos alunos e da escola pública democrática que Abril conquistou.”

(rtp.pt)

Entende a Fenprof que, em vez de se deter em considerações sobre a “aura” dos professores, deveria antes reconhecer que a prolongada ausência de soluções estruturais, há muito exigidas, é que continua a impedir a valorização da profissão e da condição docente e a agravar problemas centrais que a educação enfrenta, como a crescente falta de professores.

Entenderá o senhor ministro e o seu governo que o silêncio, a mera aceitação e a submissão são a garantia de uma “aura” de virtudes? Os professores e educadores certamente não partilham dessa visão, não podem calar-se, nem serem silenciados, mas devem continuar a luta pela profissão, avessos ao amadorismo no ensino.  

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Enfim, a resposta da Fenprof é aquela que este governo merece, tal como a mereciam e a mereceram os sucessivos governos, desde 2002. Houve dinheiro para projetos megalómanos, para inúmeros estudos (alguns repetidos), para salvar a banca, para alimentar as pretensões dos ricos e influentes, para indemnizações por decisões erradas e até para alguns desmandos. Todavia, para valorizar, materialmente, as carreiras dos trabalhadores em funções públicas, não há. Aliás, não há dinheiro para temos pessoal suficiente nos diversos setores da administração pública. Contudo, o governo diz que tudo vai bem. 

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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22/09/2025

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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