Ouro de Nader, derrota de Portugal

 Ouro de Nader, derrota de Portugal

Isaac Nader (fpatletismo.pt)

Isaac Nader venceu a medalha de ouro nos 1500 metros do Campeonato do Mundo de Atletismo – uma das distâncias mais exigentes e prestigiadas da modalidade; o palco onde só os melhores resistem à afinação milimétrica do tempo. Fê-lo contra expectativas sensatas: chegava com um recorde pessoal que o colocava entre os candidatos, mas sem o peso histórico de grandes pódios internacionais. E alcançou-o num momento em que muitos supunham que a forma lhe começava a faltar. Mas nada lhe faltou: nem a forma nem o caráter, nem a resiliência nem a capacidade raríssima de, no dia certo, transcender limites.

Perante o fenómeno, a Sport TV fez o que se impunha: sentou-o para uma grande entrevista, daquelas que ficam na memória. Recomendo vivamente que a vejam.

A este propósito, e por ser um dos temas sublinhados no trailer, falemos dele sem rodeios: o racismo. Basta que se pronuncie o nome de Isaac Nader para que, entre alguns portugueses, se dispense o mérito e se convoque o preconceito. Ainda que o atleta tenha crescido em Faro, aqui se tenha formado e vivido até há poucos anos – quando saiu para aperfeiçoar um talento que já prometia ser excecional.

“Era melhor que corresse pelo país dele”; “Só pelo nome vê-se logo que não é português”; “A nacionalidade não está à venda, herda-se”; “E portugueses, não há?” Eis alguns dos comentários destacados pela Sport TV – suficientes para nausear qualquer cidadão que não abdique da decência intelectual, virtude cada vez mais rara nas caixas de comentários das redes sociais.

(racismoambiental.net.br)

É evidente que os algoritmos cumprem o seu papel tóxico: amplificam insultos, promovem interações negativas e transformam o feed numa torrente de fel. Mas convém não cair na cómoda abstração tecnológica. Quem escreve estes comentários são pessoas – pessoas que, desde a ascensão do Chega e de André Ventura, encontraram uma espécie de autorização moral para dizer em voz alta o que antes talvez cochichassem, mas dificilmente bradavam com tanta confiança. O discurso não nasceu aí, mas foi aí que ganhou alicerces confortáveis.

Cas Mudde num debate, em março de 2018.
(pt.wikipedia.org)

No dia 6 de março do ano passado, Cas Mudde, um das vozes mais influentes nos estudos sobre a direita radical e o populismo, disse, numa entrevista ao Público, algo que hoje soa quase banal pela força da evidência: muitos governos europeus não incluem partidos radicais, mas já incorporaram parte significativa do seu enquadramento ideológico.

Segundo Mudde, os partidos do mainstream têm absorvido não apenas temas da direita radical, como sobretudo as molduras discursivas com que essa direita enquadra questões como imigração, criminalidade ou integração. Não se tornaram iguais – não ainda, pelo menos – porque, no plano das políticas concretas, não deram o salto completo. Mas legitimaram a extrema-direita, colocaram-na no centro da arena pública e, inevitavelmente, prepararam o terreno para que, a prazo, as suas políticas também possam ser adotadas.

Bangladesh (Créditos fotográficos: eyevine – economist.com)

A extrema-direita, por isso, já venceu – mesmo sem vencer. Não governa o país, mas venceu ao dominar e moldar o clima discursivo. Venceu porque é ao seu compasso que se alinham agendas, manchetes e indignações. Venceu porque tornou possível, aceitável e até normal um tipo de linguagem que, há poucos anos, seria unanimemente repudiado. Venceu porque transformou a esfera pública num lugar mais estreito, mais agressivo e menos compatível com os Direitos Humanos.

(Créditos fotográficos: Liga Portugal – bragatv.pt)

É por isso que o ouro de Isaac Nader – o ouro de um português – é forçado a conviver com a derrota moral de muitos. Enquanto Nader sobe ao topo do mundo, nós, enquanto comunidade, falhamos em alcançar o mínimo dos mínimos. Um país que recebe um campeão com dúvidas identitárias, insinuações raciais e patrulhas de pureza nacional não está apenas a ser injusto – está a ser pequeno, minúsculo, indigno.

O ouro está entregue. Mas a vergonha também: permanece nas mãos de quem a produz e de quem, podendo combatê-la, opta pelo silêncio.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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20/11/2025

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Lourenço Ferreira

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Lourenço Ferreira é mestrando em Comunicação Social, investigador na área da Comunicação Política e colaborador em projetos de Educação para a Cidadania. Interessa-se por temas como a opinião pública, o discurso político e o impacto das novas formas de mediação na cultura contemporânea. Escreve com regularidade sobre política, sociedade e “media”, procurando sempre um olhar crítico e fundamentado sobre os fenómenos do seu tempo.

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