Primeiro postal: o fascismo já está dentro de nós

 Primeiro postal: o fascismo já está dentro de nós

(Créditos de imagem: Harry Sternberg (1942) – outraspalavras.net)

Vivemos tempos disruptivos e de concretização de distopias que julgáramos apenas ficcionais. O fascismo não está a crescer. O fascismo está instalado e o único sítio onde ainda não chegou foi ao controlo absoluto do sistema político. Dentro de nós, dos nossos medos, das nossas frustrações, das nossas indignações – o mais das vezes justas – o fascismo encontrou o corpo ideal para se instalar, como uma ténia que emagrece a nossa capacidade crítica, a nossa compaixão, o nosso altruísmo, a nossa esperança.

Benito Mussolini, líder do fascismo italiano, entre membros dos Camisas-Negras, espécie de milícia fascista. (historiadomundo.com.br)

Mas o pior é que fora dele, fora de nós mesmos, também não há esperança, não há compaixão, não há altruísmo, não há capacidade crítica para o combater com eficácia. Há somente a repetição dos mesmos erros, do mesmo discurso que o alimenta, que o fertiliza, que nos convida a interiorizá-lo. Que nos emagrece mais e mais. O fascismo não vem de fora para dentro do sistema político, económico, social. O fascismo é uma resultante de uma sociedade injusta, desajustada, ela mesma disruptiva, falida. E que exclui, cria massas de excluídos, em que líderes (políticos, de opinião, económicos, culturais ou o que seja) entraram em pleno autismo social e temático.

(brasildefato.com.br)

Combater o fascismo não é repetir fórmulas gastas, nem espalhar mais do mesmo como um remédio comprovadamente ineficaz. O fascismo não se combate com tiradas retóricas ou sequer éticas. É preciso ter a coragem de começar por reconhecer que a ténia existe e porque existe. Combater o mal, deixando de o alimentar com a deglutição de erros repetidos na nossa própria alimentação. Nesta situação, acho eu (e Deus permita eu estar enganado) que só vai ser possível extirpar o fascismo após ele dominar tudo e todos até nos darmos conta de como estamos minguados de Humanidade. Já não é para a minha geração, quase o posso jurar. Mas como diz o poeta Apolinário “que me fique ao menos a consciência de que tentei romper esta muralha”. E romper, hoje, a muralha é lançar a semente para a erva que nos pode curar e salvar os vindouros, quando colhida após amadurecer. Se, pelo caminho, a cegueira dos fascismos interiores não destruir, em holocausto nuclear ou ambiental, o que nos resta de Humano.

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02/12/2024

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Jorge Castro Guedes

Com a actividade profissional essencialmente centrada no teatro, ao longo de mais de 50 anos – tendo dirigido mais de mil intérpretes em mais de cem encenações –, repartiu a sua intervenção, profissional e social, por outros mundos: da publicidade à escrita de artigos de opinião, curioso do Ser(-se) Humano com a capacidade de se espantar como em criança. Se, outrora, se deixou tentar pela miragem de indicar caminhos, na maturidade, que só se conquista em idade avançada, o seu desejo restringe-se a partilhar espírito, coração e palavras. Pessimista por cepticismo, cínico interior em relação às suas convicções, mesmo assim, esforça-se por acreditar que a Humanidade sobreviverá enquanto razão de encontro fraterno e bom. Mesmo que possa verificar que as distopias vencem as utopias, recusa-se a deixar que o matem por dentro e que o calem para fora; mesmo que dela só fique o imaginário. Os heróis que viu em menino, por mais longe que esteja desses ideais e ilusões que, noutras partes, se transformaram em pesadelos, impõem-lhe um dever ético, a que chama “serviços mínimos”. Nasceu no Porto em 1954, tem vivido espalhado pelo Mundo: umas vezes “residencialmente”, outras “em viagem”. Tem convicções arreigadas, mas não é dogmático. Porém, se tiver de escolher, no plano das ideias, recusa mais depressa os “pragma” de justificação para a amoralidade do egoísmo e da indiferença do que os “dogma” de bússola ética.

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