Punida por mostrar a verdade
A jornalista Schirlei Alves foi condenada à prisão e ao pagamento de multa pelo poder judiciário catarinense. Ela foi acusada de “manchar a honra” de um juiz, de um advogado e de um promotor que atuaram num caso de estupro. Tudo isso porque ela noticiou a gravação da audiência de instrução, na qual a vítima do estupro, Mari Ferrer, é humilhada e constrangida, várias vezes, pelo advogado de defesa do acusado, Cláudio Gastão da Rosa Filho.
A gravação mostra que ela implora ao juiz por respeito, dizendo que nem assassinos eram tratados como ela estava sendo tratada, mas o juiz ignorou o seu apelo. Foram cinco horas de massacre contra a vítima e, por fim, o acusado do estupro foi inocentado. Seria mais um caso “comum”, no qual o agressor sai livre, a mulher depreciada e os operadores do direito incólumes.
Mas, ocorre que Schirlei Alves fez o que qualquer bom jornalista faria: descreveu as cenas, desvelou o cenário, expôs as chagas, tanto as da situação do estupro sofrido quanto as do judiciário. Uma reportagem que não encontrou abrigo nos meios comerciais catarinenses e acabou sendo veiculada na Intercept Brasil, uma agência de notícias. O texto explicita o que as imagens igualmente dizem. E o que se vê é uma garota sendo julgada pelas suas roupas, por ter bebido, por estar num bar. E, mais do que isso, sofrendo outra violência, praticamente sendo apontada como culpada de ter sido estuprada. Um balaio de horrores.
A reportagem de Schirlei Alves não se limita às imagens desveladas. Ela ouve a vítima, as pessoas próximas, a Ordem dos Advogados do Brasil, o Ministério da Mulher, assim como a delegada e a promotora do Núcleo de Gênero. Enfim, uma série de outras vozes que corroboram a tese de que a jovem vítima do estupro foi também humilhada e negligenciada no caso. O caso repercutiu em todo país e os envolvidos se viram expostos. O juiz Rudson Marcos recebeu uma advertência formal do Conselho Nacional de Juízes, por ter sido negligente. O promotor e o advogado foram repudiados pela opinião pública. E, por isso, decidiram acusar Schirlei Alves de lhes manchar a honra.
O processo foi julgado pela juíza Andrea Cristina Rodrigues Studer, que condenou a jornalista Schirlei Alves, aplicando uma sentença leonina. Segundo o texto da agência noticiosa Intercep, a “condenação de Schirlei proferida pela juíza lembra a época da ditadura e é totalmente infundada, repleta de falhas processuais e extremamente desproporcional. Studer foi a única juíza disposta a aceitar o caso apresentado por seus colegas na vara, depois que muitos outros se recusaram devido ao conflito aparente”.
A condenação da jornalista levantou a categoria que entende a decisão como uma sentença não apenas contra Schirlei Alves, mas contra todos os jornalistas, visto que, a ser mantida, significa claramente uma mordaça. É sabido que o poder judiciário brasileiro é uma instituição que representa a classe dominante e que se configura num guardião desta minúscula fatia da sociedade. Ficar contra os trabalhadores é pão comido, coisa cotidiana. Mas, ainda assim, a sentença chocou os jornalistas, por representar uma obstrução ao trabalho do profissional que é o de reportar os fatos. É importante ressaltar que a queixa se dá porque a jornalista expôs um juiz, um promotor e um advogado.
Ora, receber pena de prisão e multa de 400 mil reais por ter relatado fatos reais e comprovados tem algum sentido? Nenhum. Esta semana outro vídeo de uma audiência virtual em Santa Catarina mostra uma juíza igualmente sendo grossa e arrogante com uma testemunha. Será penalizada também a pessoa que divulgou mais essa cotidiana ação das cortes? Não se pode mostrar a realidade do mundo judiciário? Está vedado? Bom, isso tem nome. Censura.
Na quinta-feira (30 de Novembro de 2023), na Universidade Federal de Santa Catarina, foi organizado pelo Sindicato dos Jornalistas um ato de solidariedade à jornalista, que ainda está lutando na justiça, agora em segunda instância. Compareceram jornalistas, representantes de movimentos sociais, de sindicatos, estudantes, políticos e cidadãos da própria comunidade, todos dispostos a apoiar e a lutar, juntamente com Schirlei Alves, para que essa sentença seja anulada. Nenhum dia de prisão e nenhum centavo de multa. O judiciário catarinense terá de responder com justiça.
Sabe-se que o jornalismo brasileiro é, via de regra, um jornalismo declaratório, sem profundidade e, muitas vezes, cúmplice dos poderes dominantes. Mas, jornalistas há que fogem do lugar-comum e cumprem a função primeira da profissão que é a de desvelar o que se quer esconder. Schirlei Alves é uma dessas profissionais. Valente, responsável, ética. Ela está sofrendo, porque é repórter, e sabe que fez o certo. Vive uma tortura cotidiana por ter cumprido com seu compromisso profissional.
Cabe-nos enredá-la numa rede de afeto e de luta para que ela saiba que não está sozinha. E cabe a nós também divulgar ao máximo essa infâmia.
O jornalismo de verdade carrega essa marca, a da expor à luz o que se esconde. Não é sem razão que, na Inglaterra, o também jornalista Julian Assange sofre prisão e tortura por ter revelado os crimes dos Estados Unidos da América. Guardadas as proporções, assim tem sido com Schirlei Alves, por ter exposto algumas vísceras do judiciário.
Justiça para Schirlei. Suspensão da sentença já! Nada menos do que isso!
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04/12/2023