Reabriu-se o debate sobre a dissuasão nuclear

 Reabriu-se o debate sobre a dissuasão nuclear

Mísseis nucleares (vaticannews.va)

Enquanto países da União Europeia (UE) enfrentam políticas internas, o presidente francês pôs dissuasores nucleares em cima da mesa, em entrevista publicada na noite de 27 de abril, por órgãos regionais do grupo de imprensa Ebra, e apelou ao debate aberto sobre os dissuasores nucleares que estão a ser utilizados para defender a UE. Esta é a marca do último de uma série de discursos em que vincou a necessidade de uma estratégia de defesa liderada pela Europa.

Alguns dias antes, em discurso na Universidade Sorbonne, em Paris, Emmanuel Macron alertou que a Europa poderia “morrer”, se não construísse uma defesa robusta, pois foi confrontada por uma ameaça existencial representada pela agressão russa, e sentenciou: “Ser credível, também envolve possuir mísseis de longo alcance para dissuadir os Russos”.

Já não está em causa só a dependência dos produtos energéticos russos ou a necessidade de se prescindir dos recursos de origem fóssil. Está em causa a preparação da defesa da Europa, face à ameaça russa, que pode exigir equipamento nuclear, ao arrepio da tendência para o desarmamento nuclear, que estava em marcha em alguns países. 

Emmanuel Macron (facebook.com)

Emmanuel Macron vem defendendo o renascimento do programa nuclear da França como foco central do segundo mandato presidencial, na sequência do compromisso assumido na campanha de recandidatura, em maio de 2022 (tinha começado a invasão da Ucrânia). Meses antes, em visita ao local de fabrico de turbinas Arabelle, em Belfort, revelara um ambicioso programa nuclear. Com a ênfase na criação de emprego, nos investimentos ecológicos e avanços nos minirreatores, os desafios que acompanham este ressurgimento nuclear são múltiplos.

Segundo o presidente francês, esta é a principal solução para responder à crescente procura de eletricidade impulsionada pelo aumento da eletrificação, para obter a neutralidade carbónica até 2050, e para sustentar preços competitivos da eletricidade no apoio às empresas francesas.

A fusão é o processo pelo qual dois núcleos leves se combinam para formar um único núcleo mais pesado, libertando uma grande quantidade de energia. (Créditos fotográficos: Divulgação LLNL – unicamp.br)

Macron tem saudado a energia nuclear como “tecnologia do futuro”. A frota francesa de reatores de produção de eletricidade compreende 56 reatores de água pressurizada (PWR), classificados como “geração II”, juntamente com um reator EPR (European Pressurized Water Reactor) atualmente em construção em Flamanville, Manche, designado como “geração III”.

Em janeiro, Macron declarou a intenção de delinear “as direções primárias para os próximos 8” reatores EPR, a partir do verão, como parte do renascimento da energia nuclear, na sequência do lançamento de seis novos reatores EPR, numa conferência de imprensa.

***

Portugal não tem centrais nucleares e o seu único reator estava na Universidade de Lisboa, mas parado desde 2016. Em 2019, o país deu significativo passo no desmantelamento desse reator nuclear de longa data, que tinha sido fundamental na investigação científica e no ensino, há mais de cinco décadas, o que marcou, em definitivo, o plano de uma era que vislumbrava múltiplas centrais nucleares em Portugal, para gerar eletricidade. Contudo, era na Espanha que o país se abastecia desse tipo de energia. E, em 2021, Portugal assinou uma declaração conjunta com a Alemanha, o Luxemburgo, a Áustria e a Dinamarca, a excluir a energia nuclear do financiamento europeu. E assumiu firme posição contra a energia nuclear, com o ex-ministro do Ambiente e da Ação Climática, João Pedro Matos Fernandes, a destacar as suas deficiências percebidas na 26.ª conferência das Nações Unidas sobre o clima (COP26), em Glasgow. Matos Fernandes sublinhou, então, que a energia nuclear é insegura, insustentável e economicamente onerosa.

Em 2021, Portugal assinou uma declaração conjunta com a Alemanha, o Luxemburgo, a Áustria e a Dinamarca, a excluir a energia nuclear do financiamento europeu. (revistacomunidades.pt)

Enquanto 65% a 70% da eletricidade, em França, é gerada por energia nuclear, o número da Alemanha era de 1,4%, em 2023, o que denota relação complicada entre os partidos políticos da Alemanha e a energia nuclear.

Nas preocupações com o fornecimento de gás após a invasão da Ucrânia pela Rússia, o governo alemão considerou três opções políticas: estender o uso do combustível nuclear existente, comprar novos elementos de combustível ou reabrir as centrais acabadas de encerrar. O Partido Verde opôs-se veementemente ao reinício das centrais nucleares.

O tratamento da eliminação nuclear da Alemanha na crise energética de 2022 atraiu escrutínio aos ministérios da Economia e do Ambiente, ambos sob a liderança do Partido Verde, pela sua abordagem ao encerramento das três últimas centrais nucleares. O ministro federal alemão dos Assuntos Económicos e da Ação Climática, Robert Habeck, viu-se redirecionado para o comité de energia do Bundestag, para defender a sua polémica política na crise energética.

O ministro federal alemão dos Assuntos Económicos e da Ação
Climática, Robert Habeck. (Créditos fotográficos: picture
alliance/dpa – deutschland.de)

Apesar das discussões internas e das avaliações que sustentam a viabilidade de prolongar a vida útil das centrais nucleares, houve mudança de rumo no Ministério do Ambiente, citando “razões de segurança nuclear”. Robert Habeck defendeu as ações do seu ministério, enfatizando a necessidade de se concentrar na substituição do gás natural russo, em vez de depender da energia nuclear para a eletricidade. A decisão de prolongar a vida útil das últimas três centrais nucleares foi alcançada vários meses depois, refletindo um compromisso empurrado pelo liberal Partido Democrático Livre (FDP). Porém, o tratamento desta matéria tem enfrentado críticas da oposição conservadora da Alemanha, que defende que o processo careceu de transparência e abertura.

A estratégia energética de Espanha é objeto de debate, com diferentes pontos de vista sobre o papel das energias nucleares e renováveis na consecução da sustentabilidade e da independência energética. O governo espanhol anunciou, em dezembro, planos para a eliminação gradual dos reatores nucleares do país, estando previsto o primeiro desligamento da central para 2027.

O panorama energético é influenciado pela alavancagem estratégica da Rússia da sua capacidade de produção de gás e pela perturbação causada por disputas como o recente corte do fornecimento de gás pela Argélia a Marrocos, afetando uma das rotas de fornecimento de gás da Espanha.

O governo espanhol anunciou, em dezembro, planos para a eliminação gradual dos reatores nucleares do país. Assim, os reatores de Almaraz vão encerrar de forma faseada. (tempo.pt)

A Greenpeace Espanha apela à transição acelerada para longe da energia nuclear, criticando o plano energético de Espanha por não dar priorizar uma mudança rápida para 100% de energia renovável. José Luis García, responsável pelo programa de Emergência Climática da Greenpeace, desafia a classificação da energia nuclear como ‘verde’, enfatizando a necessidade de abordar riscos ambientais mais amplos associados à energia nuclear.

Enquanto a França procura reforçar a sua segurança energética, abraçando a energia nuclear com as renováveis, a Espanha continua firme no compromisso de atingir a desnuclearização completa até 2035, conforme o seu Plano Nacional Abrangente de Energia e Clima 2021-2030 (PNIEC), incluindo duas centrais nucleares a 100 quilómetros da fronteira com Portugal.

A História nuclear da Itália viu todas as quatro centrais encerradas, na sequência do referendo de 1990, e uma tentativa subsequente de reintroduzir a energia nuclear foi interrompida por um referendo de 2011. Este país, o único do G7 (grupo dos países mais industrializados do Mundo) sem centrais nucleares, encerrou a sua última central há mais de 30 anos.

Congresso dos Deputados da Itália – parlamento italiano. (theobjective.com)

A Câmara dos Deputados de Itália lançou um inquérito sobre o papel da energia nuclear na sua transição energética, com vista a explorar o potencial contributo da energia nuclear para a descarbonização de Itália, até 2030, e para a neutralidade climática, até 2050. O inquérito foi apoiado por membros pró-nuclear, mas enfrentou a abstenção de outros.

Ministro do Ambiente e Segurança Energética da Itália, Gilberto
Pichetto Fratin. (economiacircolare.com)

O ministro do Ambiente e Segurança Energética da Itália, que acolhe a reunião do G7, neste ano, afirmou, em discurso recente: “Continuamos a trabalhar com importantes empresas privadas tanto na frente da fissão, portanto na nova geração NUCLEAR com pequenos reatores, como na frente da fusão.”

Em março passado, o ministro das Infraestruturas e Transportes e o vice-primeiro-ministro Salvini disseram que um país moderno e industrializado “não pode dizer ‘não’ à energia nuclear”.

Em 2022, com o inverno a aproximar-se e com a procura de energia a aumentar, a Finlândia queria reduzir a sua dependência da Rússia. A energia nuclear, outrora fonte de desconfiança pública, tornava-se, desta feita, solução atrativa. E o país preparava-se para reabrir o maior reator nuclear da Europa, Olkiluoto 3.

Localizado numa ilha ao largo da costa sudoeste da Finlândia, o projeto teve início em 2005. Vários contratempos adiaram a abertura até setembro de 2022, mas o reator foi, novamente, encerrado, por questões técnicas.

Entre 60% e 70% do público finlandês apoia a energia nuclear, o que está muito acima da média da UE. O Partido dos Verdes da Finlândia também não se opõe à energia nuclear, posição não partilhada pelos seus homólogos de outros países europeus.

Esta mudança de atitude tem explicação. A confiança na regulação estatal é elevada na Finlândia, e muitos veem a energia nuclear como instrumento importante no combate à crise climática. Além disso, o urânio permite à Finlândia tornar-se mais autossuficiente na produção de energia.

O maior reator nuclear da Europa, Olkiluoto 3. (abdan.org.br)

A finlandesa Anna Viitanen sustenta: “A minha opinião sobre as centrais nucleares na Europa mudou. Uma vez que já não podemos depender da energia da Rússia, isso dá-nos independência.”

Desde a invasão da Ucrânia, a Rússia tem utilizado o fornecimento de gás como moeda de troca, resultando numa espiral de custos energéticos na Europa. Os Estados da UE esperam desmamar-se da energia russa, mas, para o fazerem, têm de encontrar abastecimentos alternativos.

No entanto, uma minoria de finlandeses continua não convencida da energia nuclear. Alguns apontam para a possibilidade de acidentes ou para o problema do armazenamento de resíduos radioativos. Jari Natunen, bioquímica finlandesa, considera que devemos mudar os nossos estilos de vida, em vez de recorrer à energia nuclear. “Não podemos salvar o planeta consumindo mais”, diz, assegurando: “O tempo acabou para este tipo de economia. Só precisamos de reduzir o nosso consumo de bens e energia.”

***

A 26 de setembro de 2023, em declarações à imprensa, na Chéquia, que recebe mais de um terço da sua eletricidade das centrais nucleares, a presidente da Comissão Europeia afirmou que cada estado-membro é livre de traçar o seu próprio caminho para a neutralidade climática.

“Sabemos que o nuclear desempenha um papel central no sistema energético checo e que continuará a necessitar de investimentos para desempenhar o seu papel na transição energética checa”, declarou Ursula von der Leyen, prometendo: “É por isso que estamos sempre dispostos a considerar auxílios estatais, desde que as condições sejam adequadas.”

Ursula von der Leyen (Créditos fotográficos: European Union, 2024 –
pt.euronews.com)

Enquanto principal responsável pela aplicação das regras da concorrência, a Comissão Europeia tem o poder de aprovar e de rejeitar os fundos públicos que os governos injetam nas suas indústrias nacionais, que podem assumir a forma de subvenções, preços reduzidos e impostos mais baixos, entre outros. Se o executivo comunitário considerar que a intervenção estatal representa um risco excessivo para o mercado único e pode colocar outros países da UE em desvantagem, pode rejeitar a proposta. Os princípios da equidade e da igualdade têm orientado o pensamento da Comissão, desde o início da integração europeia e estão consagrados no direito comunitário.

Lei da Indústria de Impacto Zero: reforçar as tecnologias limpas na Europa. (europarl.europa.eu)

No início de 2023, foram flexibilizadas as regras para a aprovação de subsídios em seis áreas-chave da transição ecológica: baterias, painéis solares, turbinas eólicas, bombas de calor, eletrolisadores e tecnologia de captura de carbono. Além disso, Bruxelas apresentou a Lei da Indústria Zero, para aumentar a produção nacional destes produtos essenciais. O projeto original exclui a tecnologia nuclear da lista de projetos estratégicos. Apenas menciona “tecnologias avançadas (que) produzem energia a partir de processos nucleares com o mínimo de resíduos” e “pequenos reatores modulares”, que ainda estão em desenvolvimento. Não obstante, declarou Ursula von der Leyen, em Praga: “Apoiamos as tecnologias nucleares de ponta, no âmbito da nossa Lei da Indústria Impacto Zero, para promover a inovação e a cooperação transfronteiriça.”

***

O debate tem interesse na defesa, na transição energética, na não dependência de um bloco de países e na não dependência de um bloco de tipos de materiais. Multiplicam-se as fontes de energia. E há quem defenda, para evitar a dependência de madeira e de metais, a edificação de casas com terra e com palha. Tudo é útil, mas envolve riscos, que é preciso acautelar.

.

09/05/2024

Siga-nos:
fb-share-icon

Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

Outros artigos

Share
Instagram