Ressuscitar os mortos

(Imagem de domínio público gerada por IA)
Já ninguém se surpreende pelo imparável e vertiginoso avanço tecnológico que caracteriza o tempo em que vivemos. Constantemente, são desenvolvidas novas tecnologias e soluções que, por sua vez, são utilizadas como ferramenta para desenvolver tecnologias ainda mais poderosas, numa espiral cujo fim é impossível prever. Muitas dessas tecnologias aplicam-se ao setor da saúde, com claros benefícios em termos de qualidade e esperança de vida, o que nos leva à seguinte questão: será que algum dia conseguiremos ressuscitar os mortos?
Para alguns, eu incluído, a resposta é um rotundo “não”, mas, na verdade, trata-se de uma questão de difícil resposta. Quem pode dizer o que o futuro nos trará, quando, hoje somos, capazes de tantas coisas consideradas impossíveis há apenas algumas décadas? De facto, muitos acreditam na possibilidade de um regresso à vida num futuro mais ou menos distante, desde que garantidas certas condições de preservação do corpo. É por isso que existem centenas de casos de criogenia ou de criopreservação humana, quer de todo o corpo quer, apenas, da cabeça ou do cérebro, com a esperança de que avanços científicos futuros possam reverter o processo de morte.

Mas eis que, como já é habitual, aparecem as tecnologias da informação e comunicação para dar uma ajudinha. De repente, graças aos avanços em inteligência artificial generativa, passou a ser possível criar “fantasmas” digitais – avatares – que reproduzem a voz e a imagem de alguém já falecido, e põem essa pessoa a dialogar e a interagir com os vivos. Com base em alguns registos de som, recriam-se a voz e a forma de falar do defunto. Com base em algumas, poucas, fotografias, geram-se imagens e vídeos bastante realistas.
Podemos, agora, “ressuscitar” os mortos, falar com eles, perguntar-lhes o que pensam e o que fariam em determinadas condições. É claro que não é a mesma coisa, que o morto continua morto. É certo, mas há já quem recorra a estas recentes tecnologias para falar com entes queridos, matar saudades, combater a solidão, deixar-se enganar pela ilusão de uma presença artificial, obter um pouco de conforto. São ainda relativamente poucos os casos em que se faz isso, mas, inevitavelmente, crescerão fortemente em número, nos tempos mais próximos. Além disso, é muito provável que, no curto prazo, apareçam muitas empresas especializadas neste tipo de “ressurreição”, vendendo aos seus clientes avatares muito realistas e muito sofisticados, especialmente se estiverem disponíveis fotos, vídeos, áudios e quaisquer outros registos da atividade ante mortem. Alguns exemplos de empresas que já, hoje, desenvolvem a sua atividade nesta área de negócio são a Deep Nostalgia, D-ID, HeyGen, Re;memory, e Hour One, que, essencialmente vendem serviços que animam fotografias de familiares falecidos, fazendo com que pareçam que estão a falar ou a mover-se naturalmente.

Tudo isto é possível porque, hoje, nada do que ouvimos ou vemos sem ser ao vivo pode ser considerado fidedigno. Com as novas tecnologias, uma imagem nada prova. O mesmo acontece com uma gravação de áudio ou de vídeo. Tudo pode ser forjado, manipulado, fabricado. De facto, começamos já a ouvir casos em que suspeitos, quando confrontados com imagens de vigilância que indiciam crimes (por exemplo, na zona de recolha de bagagens de um qualquer aeroporto), dizem simplesmente que se trata de imagens manipuladas por inteligência artificial. Imagens de vigilância? Nada provam. Escutas telefónicas? De nada servem. Mensagens de correio eletrónico e SMS? Estas já, há muito, se podem forjar sem necessidade de recurso a inteligência artificial. Até aqui, a tábua de salvação de muitos arguidos era a morosidade dos processos, o que conduzia à prescrição dos crimes. Agora, com a inteligência artificial, será a falta de provas.

A inteligência artificial é, agora, capaz de recriar pessoas, de “ressuscitar” mortos, que habitam o mundo virtual. É claro que tudo isto levanta profundas questões de natureza ética e filosófica (consentimento, direitos morais, impacto emocional, direito à preservação da memória, identidade, exploração comercial abusiva e a qualquer preço, para além de muitas outras), cuja discussão não cabe no âmbito deste breve texto.
Mas, e os vivos? Em que mundo vivem? Muitos creem também viver nesse mesmo mundo virtual – irreal, melhor dizendo –, sentindo-se aí felizes, receando lidar com a, por vezes, demasiado dura verdade do mundo real. Não estão, ainda, mortos, mas muito se assemelham já aos seus futuros avatares. Talvez sejam esses – os que se dizem vivos – aqueles que mais importa ressuscitar.
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03/03/2025