Retrato de um dia apocalíptico

(espacodopovo.com.br)

Na segunda-feira, dia 28 de Abril, ainda no rescaldo dos funerais do Papa Francisco, João Baião salta, saltitão, no ecrã da televisão, quando, de repente, cerca das 11h30, se apaga a caixa mágica e ficamos em silêncio1. Habituado a cortes de energia, o meu optimismo espera por uns cinco ou dez minutos… O tempo passa e nada! Saio do café e da leitura diária dos jornais para um almoço com um amigo. Já estava programado, mas o Metro do Porto não circula. Vamos de autocarro…
São os primeiros sintomas de um dia diferente. Da longa ementa, apenas é possível o prato do dia: coxa assada no forno (a gás), com batatas e arroz. Atacámos o plumífero. Não estava mal. As batatas estavam frias, mas o arroz apresentava-se um bocado mais quentinho. Entretanto, os potenciais fregueses passam e não entram. Em poucos minutos, o frango esgota e já não há nada para ninguém!
Eu tinha agendado uma ida a Gondomar, mas os autocarros cheios aconselham-me a cancelar a viagem. Começo a sentir os primeiros sinais de irritação nas pessoas, através dos empurrões e dos protestos. Já não havia filas nas caixas multibanco. Supus que não estariam a funcionar. Decido regressar a casa. Porém, o trajecto prolonga-se devido às filas de carros. Passo pela Avenida dos Aliados, esse jardim de pedra que herdámos na remodelação, deixando-nos saudades do jardim central e dos canteiros, bem como da Menina Nua (escultura “A Juventude”), agora, rodeados de andaimes e de tapumes.

(commons.wikimedia.org)
A zona dos Aliados é um deserto; ermo de pó, de entulho e de máquinas. Encontramos ali uns trabalhadores emigrantes, calceteiros que repõem as pedras na calçada, as pedras que o Metro levou… Os supermercados estão fechados, mas há filas de espera para entrar no Lidl. Eis chegada a oportunidade das compras. Passam as horas e não há sinais do Governo! É mais fácil ver o primeiro-ministro cantar com o Tony Carreira do que num dia de aflição. Ninguém explica o que se está a passar. Nesta expectativa, o meu companheiro de assento no autocarro observa: “Meu amigo, isto é só o princípio.” E cita uma parte qualquer da Bíblia, em tempo para lembrar o Apocalipse2, o livro final… Entretanto, uma senhora diz que vai faltar a água. Outro aumenta: “Isto vai durar três dias!” Por sua vez, outro, ainda mais catastrófico, repara: “Nem pense, isto vai ser, no mínimo, uma semana…” No mesmo contexto, uma jovem de telemóvel na mão disse que “um avião chocou com uma torre de alta tensão”. Uma outra mulher alude a Vladimir Putin, observando: “Ah, e não somos só nós! Também em Espanha e na França… Em Bilbau, a mãe de uma amiga ficou presa no elevador… nada trágico…”

Quando a desgraça é partilhada torna-se mais aceitável. Eu, no meu optimismo, pensei para os meus botões: “Antes da meia-noite, tenho luz em casa…” Mas o Apocalipse continua: “Por que não comprar um pouco de pão?” Não costumo ter grandes quantidades de mantimentos em casa. O nosso merceeiro, o senhor Fernando, mesmo às escuras, continua numa azáfama de vendas. Tudo vale, é tudo para vender. Os garrafões de água esgotam num ápice, pão nem vê-lo, tudo o que resta são enlatados, salsichas, atum em conserva e pouco mais. Bendito dia para o senhor Fernando! Como o código de barras não funciona, as contas são mais demoradas, a papel e lápis, como antigamente.

Vou, novamente, ao café para resgatar os últimos momentos de leitura do dia. Algumas cervejas ainda conservam o fresco do frigorífico. Café não há. Na montra estão uns bolinhos pouco convidativos… E o Apocalipse continua! Um jovem está preso numa casa de banho sem luz. De repente, passou-lhe pela cabeça o início do “Ensaio Sobre a Cegueira”, da autoria de José Saramago. Deveríamos estar mais preparados para situações destas, como os estrangeiros. Na Suíça, até já têm “kit” para um ataque nuclear. Sim, é possível. Conheci alguns prédios nesse país cujas caves são autênticos refúgios antiaéreos. Cá, com o preço das habitações, tal seria impossível; a não ser para os ricos e poderosos ou para aqueles que têm contratos com empresas de betão…
A Rotunda de Santo Ovídio está intransitável. Ouvem-se sirenes e “claxons”. A exasperação das pessoas aumenta. “Não sei a que horas vou chegar a casa”, lamenta uma mulher, acrescentando: “Não tenho gás em casa, é tudo eléctrico.” “Ai que saudades dos rádios a pilhas e das velas! Mas também estas esgotaram… E os fósforos!”, expressa, ansiosa.

Nessa noite, o jantar poderia proporcionar um certo romantismo, com uma lata de atum ou de sardinha e uma vela acesa… Todavia, o pessimismo ganha terreno facilmente. Só mais tarde, aparece o primeiro-ministro, Luís Montenegro, para contar que sucedeu. E, agora, entram os adágios populares: “De Espanha, nem bom vento nem bom casamento” e “Não há fome que não dê em fartura”. Posteriormente, um representante da REN – Redes Energéticas Nacionais explica que, como estávamos a importar energia mais barata de Espanha e o colapso foi lá, ficámos sem electricidade. Fiquei curioso com aquilo do “mais barata”, porque não vejo isso reflectido na minha factura.
Nem de propósito, em streaming, estreou na Netflix, a 30 de Abril, “O Eternauta”, uma série argentina distópica que começa com um grande apagão, tendo como pano de fundo a memória da Guerra das Malvinas, em 1982.

A electricidade é um fenómeno natural que sempre existiu no Universo. Fenómeno físico que, transformado em energia, permite produzir luz, calor, movimento e outras formas de trabalho. A partir do século XIX, a electricidade tornou-se uma força controlada, substituindo a iluminação a gás, o carvão e outros combustíveis. Devemos aos trabalhos de Alessandro Volta, de Thomas Alva Edison, de Nikola Tesla e de outros o domínio da electricidade e das suas diferentes aplicações.
Ao fim do dia, alguém bem-humorado explica que a culpa foi de uma cegonha, numa torre de alta tensão. Particularmente, para mim, a luz – chamemos-lhe assim – voltou às 18h30, mais ou menos! Como nos filmes, este relato é uma história real: “It is a true story!” “
Peço desculpa pela escrita apocalíptica. Os meus amigos madeirenses, afortunadamente, livraram-se destas aflições. Ainda bem!
Por fim, quero endereçar um agradecimento pleno às rádios de Portugal, que se mantiveram junto do POVO!
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Notas:
1 – Todos os dias, no jornal Público, junto da crónica de Miguel Esteves Cardoso, aparece uma citação, sob o título “Escrito na Pedra”. A frase do dia 29 de Abril, parece-me muito oportuna! Em relação a Victor Hugo (1802-1886), relembro que se trata de um reconhecido poeta e dramaturgo francês. Entre outras obras clássicas de fama e renome mundial, é autor dos romances “Os Miseráveis” e “Notre-Dame de Paris” (também conhecido como “O Corcunda de Notre-Dame”).
2 – Voltando ao livro do Novo Testamento, no contexto bíblico, “Livro do Apocalipse” (ou ”Livro da Revelação”), supostamente escrito pelo apóstolo João, recordo que descreve um conjunto de visões sobre o fim do mundo, que teriam sido reveladas por um anjo durante o seu exílio na ilha de Patmos… Cristo regressa montado num cavalo branco para a batalha final contra as forças do mal, derrotando-as, no Juízo Final.

08/05/2025