Saco sem fundo cívico e moral

(Créditos fotográficos: Farah Chaabane – pexels.com)
A miséria é mais do que um estado de espírito. A miséria é visível, por isso a escondem. A miséria cheira mal, por isso a disfarçam com perfumes e águas-de-colónia, frequentemente com etanol diluído e noites mal-dormidas na cacimba. A miséria é palpável quando a pobreza se torna crónica e se extrema nas necessidades básicas e na falta dos meios materiais.

A miséria é audível na escassez das palavras que confortam e dão futuro, ressoando nos decibéis dos gritos de raiva, tantas vezes camuflados nas memórias da cidade onde ninguém quer ser suspeito. A miséria é guetificada, embora se diga que beneficia dos territórios de intervenção habitacional de interesse comunitário, numa geografia urbana que afasta essa gente vestida de precariedade e à qual se restringem os brados de protesto e os vínculos relacionais.

A miséria é comestível quando extravasamos no prato a fartura, a gordura e os problemas de colesterol, o açúcar e a diabetes e tudo o que aumenta a pressão sanguínea nas artérias e as possibilidades de cancro, enquanto a fome grassa ao pé da porta e no Mundo, matando e ameaçando o colectivo e as democracias. A miséria desdiz a qualidade de se ser pobre antes defendida por Oliveira Salazar, que não teve tempo de ouvir a recriação da banda Xutos & Pontapés: “As saudades que eu já tinha / Da minha alegre casinha / Tão modesta quanto eu.”

De facto, essas casinhas eram frias, escuras, simples e limpas (ou carecidas) de tudo, à luz do candeeiro a petróleo: de mobiliário, de água canalizada, de esgotos e de chaminé para fazer sair os fumos do lume. Assim, a pobreza envergonha e não dignifica. E continua a chocar, meio século depois da revolução do 25 de Abril e da espontaneidade dos sonhos que brotaram dos cravos nas espingardas. Estão a murchar as promessas da liberdade, da democracia e do desenvolvimento. Hoje, apesar de serem notórias as vantagens do regime democrático, repete-se, com outros tons, a crise do Estado Social neste país periférico, com uma população envelhecida, pobre e isolada, a queixar-se de reumatismo, das pensões baixas e da falta de ética dos políticos, enquanto os mais novos procuram outras paragens economicamente mais robustas que não lhes dissipem o amanhã.

A miséria é um saco sem fundo cívico e moral. Também há enteados das “boas famílias” a pedirem “uma moedinha” quando ainda mal estacionamos o carro. E os sem-abrigo são um problema crescente no país, com cerca de 13 mil pessoas nessa condição, registadas no final de 2023. Daí que o Governo, agora igualmente em crise (e com um plano de gestão de crises supostamente redigido pela mão de António Leitão Amaro, inadvertidamente exposto à lente do fotojornalista da LUSA Manuel de Almeida), tenha aprovado, em Dezembro de 2024, uma estratégia nacional válida até 2030, em articulação com vários municípios, com medidas focadas nas áreas da habitação e do emprego. Entretanto, o primeiro-ministro “abraçou a crise política”, como assinalava David Pontes no seu editorial, há uma semana, dizendo que Luís Montenegro, entre a espada e a parede, “chutou a bola para [a] frente” e “preferiu a espada”.
A concluir, relembro um excerto poético de Alexandre O’Neill, que, como se afirma, toca o paradoxo e o lugar-comum com trocadilhos: “Monstros e homens lado a lado, / Não à margem, mas na própria vida. // Absurdos monstros que circulam / Quase honestamente.”
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Nota:
O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 9 de Março) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.
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10/03/2025