Ser ou não ser do sistema

(conceitosdomundo.pt)
Em maré de eleições presidenciais, a opinião pública é mimada por algumas atoardas que não fazem muito sentido, mas, tentando atrair apoios a este ou àquele candidato, desviam do essencial a atenção do eleitorado.
O almirante Gouveia e Melo considera-se vindo de fora do sistema; André Ventura declara-se antissistema; Marques Mendes tem orgulho por ser do sistema, se ser do sistema consiste em pôr ética na política; e António José Seguro diz que não vem da política tradicional. Dos outros candidatos não falo, porque não se metem neste tipo de polemização. São pacificamente do regime democrático – embora possam perfilhar conceitos diversificados de democracia – e isso basta-lhes.

João Miguel Tavares, na sua coluna finissemanal do jornal Público, de 20 de setembro, entende que os candidatos presidenciais deveriam elucidar os eleitores sobre o que entendem por “sistema”, para sabermos ao que, de facto, eles vêm. Eu penso que não é preciso. Eles sabem o que é o sistema, como sabem que vêm dele e estão dentro dele. Todavia, querem divertir-nos, dando-nos música.
“Sistema” é um conjunto de elementos inter-relacionados e interdependentes que funcionam juntos, para atingirem um objetivo comum, criando um todo organizado com caraterísticas próprias, sendo as principais: interdependência, segundo a qual os componentes de um sistema estão ligados e dependem uns dos outros; organização, nos termos da qual os elementos são arranjados de forma a criarem uma estrutura organizada; objetivo comum, que induz os componentes a trabalharem para um propósito ou resultado específico; e totalidade, pois, como um todo, o sistema possui propriedades que não são apenas a soma das suas partes individuais.
Assim, em termos de sistema social, a sociedade pode ser vista como um sistema de indivíduos, grupos e instituições que interagem, para atingirem objetivos comuns. Porém, toda a gente sabe que os ilustres candidatos presidenciais se referem ao sistema político, o qual, sem perder qualquer das caraterísticas típicas de qualquer sistema, é dotado de especificidades próprias, sobre as quais eles se vêm pronunciando, nem sempre da melhor forma.

O nosso sistema político está definido na Parte III da Constituição da República Portuguesa (CRP), sob a epígrafe “Organização do Poder Político” que abrange dez títulos.
Desde logo, o almirante está enquadrado no Título X, no atinente à defesa nacional e, especificamente, às formas armadas; e é almirante e foi chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), porque foi nomeado pelo Presidente da República (PR), abrangido pelo Título II, sob proposta do governo, abrangido pelo Título IV, ouvido o almirantado, também abrangido pelo Título X. Pode, apenas, dizer que não pertence ao sistema partidário. Contudo, o PR que o nomeou foi líder de um partido e o governo de um só partido (abrangido pelo Título IV), que propôs o seu nome para CEMA, resultou de uma Assembleia da República (AR) pluripartidária (abrangida pelo Título III). Portanto, o candidato não está fora do sistema político, nem é avesso ao sistema partidário. E, embora a sua candidatura seja, por definição constitucional, independente, pessoal e apartidária, seria votada ao insucesso, caso os partidos se coligassem contra ela, em torno de uma candidatura.

André Ventura, apesar de, supostamente, os órgãos dirigentes do seu partido estarem em situação ilegal e os seus atuais estatutos serem nulos, vigorando os de 2029, é líder de um partido criado nos termos da CRP e da lei e tem-se candidatando a todo o tipo de eleições na República, nas autarquias, nas regiões autónomas e na União Europeia (UE). Atualmente, o seu partido é a terceira força na AR. Portanto, o candidato, que é líder da oposição, é do sistema, concorre dentro do sistema. Se o quer combater por dentro, isso já é outra louça.
António José Seguro não vem da política tradicional (era o que faltava), entendida como da monarquia absoluta, da monarquia constitucional, da I República ou do Estado Novo. Porém, procede de uma política tradicional de 51 anos (quando eu estudei, 40 anos já faziam tradição), inaugurada pelo 25 de Abril, não pelo 25 de novembro (que foi um momento clarificador da revolução, como outros), formalizada pela CRP, de que resultaram as atuais instituições democráticas. Assim, o candidato pôde ser deputado à AR, eurodeputado, secretário de Estado, ministro e secretário-geral do Partido Socialista (PS). Portanto, é do sistema e da política tradicional e partidária. E (repito), embora a sua candidatura seja, por definição constitucional, independente, pessoal e apartidária, dela digo o que disse da do almirante.

Marques Mendes é do sistema, pois foi deputado à AR, secretário de Estado, ministro e presidente do Partido Social Democrata (PSD) e é conselheiro de Estado. Porém, não sei se pode ter tanto orgulho em ser do sistema, porque não é o sistema que é capaz de pôr ética na política. Aliás, a política, se o é verdadeiramente, postula a ética. O caso é que muitos dos políticos que nós conhecemos – em Portugal e no resto do Mundo – deslumbram-se com o poder e mandam a ética para as calendas gregas, por mais leis, regulamentos, códigos éticos, deontológicos ou de conduta que se produzam. Por exemplo, em vez de servirem a comunidade, servem-se da comunidade; em vez do tratamento equânime aos cidadãos, tratam dos interesses pessoais, familiares, de amigos ou clientelares; em vez da justiça social, dando a cada um aquilo de que precisa, favorecem os interesses e os caprichos da minoria dos ricos e poderosos, que “levam tudo”.

Também há quem privilegie a experiência política para um cidadão ser elegível como PR. Se ela for tida a sério, quero que volte a ser PR o professor Cavaco Silva, o político mais experiente, embora controverso. Todavia, pergunto que experiência política tinha Ramalho Eanes, quando foi eleito PR. Não obstante, presidiu à República em situação política difícil e patrocinou a criação de um partido do “alto” do Palácio de Belém.
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Os principais princípios orientadores do nosso sistema político são: o princípio republicano; o princípio do Estado de Direito democrático; o princípio da soberania popular; o princípio da separação de poderes e da interdependência dos poderes; o princípio do pluralismo e da participação; e o princípio da autonomia regional e local.
A organização do poder político tem a previsão constitucional espelhada nos artigos 108.º a 111.º da CRP: “o poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição”; são órgãos de soberania o PR, a AR, o governo e os tribunais.

A CRP consagra um sistema semipresidencial, com pendor parlamentarista. É retomada a solução parlamentar unicamaral. O PR e os deputados à AR são eleitos por sufrágio direto, secreto e universal. Os deputados são eleitos por lista plurinominal, apresentados exclusivamente por partidos políticos, segundo o sistema de representação proporcional (RP), aplicando-se, para o efeito, o método da média mais alta de Hondt.
Numa democracia representativa, o poder soberano, que reside no povo, é delegado em cidadãos que o representam nas decisões, interpretando o sentir e as aspirações da população. A forma de escolher os governantes é a eleição. E os princípios gerais da eleição são: o direito de sufrágio de todos os cidadãos maiores de 18 anos, ressalvadas as incapacidades previstas na lei; o direito de sufrágio pessoal, direto, secreto e periódico; o modo de escrutínio variável, consoante a eleição em causa; o contencioso eleitoral, competindo aos tribunais o julgamento da regularidade e da validade dos atos de processo eleitoral.
Na eleição para o PR, o sistema é o maioritário a duas voltas; e, nas demais eleições, o sistema adotado é o de RP.

O direito de voto é único, pessoal, direto, presencial, secreto e universal, sendo condição do seu exercício a inscrição no recenseamento. O limite da capacidade eleitoral passiva é o mesmo da ativa (18 anos), com exceção da eleição do PR, a que apenas se podem candidatar cidadãos maiores de 35 anos de idade. O sufrágio eleitoral atinge dois órgãos de soberania: o PR e a AR. São ainda elegíveis as assembleias legislativas das Regiões Autónomas, os órgãos das autarquias locais (a que podem candidatar-se, além dos partidos, também grupos de cidadãos eleitores) e os deputados ao Parlamento Europeu (PE).
O sistema de RP carateriza-se pelo facto de o número de eleitos por cada candidatura concorrente a uma eleição ser proporcional ao número de eleitores que escolheram votar nessa candidatura. Neste sistema, há várias fórmulas ou modelos matemáticos que podem ser utilizados para transformar votos em mandatos a atribuir às candidaturas concorrentes, sendo um deles o método de Hondt, cujas vantagens são: assegurar boa proporcionalidade (relação votos/mandatos); simplicidade de aplicação, comparativamente com outros; e efeitos previsíveis. A sua principal desvantagem é, tendencialmente, favorecer os partidos maiores.
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O PR representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência, comandante supremo das forças armadas. É eleito por sufrágio universal, direto e secreto dos eleitores recenseados no território nacional e dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro. O seu mandato tem a duração de cinco anos e termina com a posse do novo presidente. Não é admitida a reeleição para terceiro mandato consecutivo, nem durante o quinquénio subsequente ao termo do segundo mandato consecutivo.

Tem competências para praticar atos próprios, na relação com os demais órgãos de soberania e nas relações internacionais. Porém, cumpre salientar as competências, na prática de atos próprios, como promulgar e mandar publicar as leis, os decretos-leis e os decretos regulamentares, assinar as resoluções da AR que aprovem acordos internacionais e os decretos do governo.
No prazo de 20 dias após a receção de qualquer decreto da AR, para ser promulgado como lei, ou da publicação da decisão do Tribunal Constitucional (TC) que não se pronuncie pela inconstitucionalidade de norma dele constante, deve o PR promulgá-lo ou vetá-lo, solicitando nova apreciação do diploma em mensagem fundamentada. Porém, se a AR o confirmar por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, o PR deverá promulgar o diploma, no prazo de oito dias a contar da sua receção.
O PR exerce ainda o direito de veto, caso o TC se pronuncie pela inconstitucionalidade de um diploma que lhe tenha sido presente para fiscalização da constitucionalidade.
O PR pode requerer ao TC a apreciação preventiva da constitucionalidade de norma constante de tratado internacional que seja submetido para ratificação, de decreto que lhe seja enviado para promulgação como lei ou como decreto-lei ou de acordo internacional cujo decreto de aprovação lhe seja remetido para assinatura. E pode requerer ao TC a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, com força obrigatória geral. Aliás, tem legitimidade para desencadear a fiscalização da constitucionalidade, no exercício da sua função de defesa da CRP.
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A AR – o segundo órgão de soberania – é o órgão legislativo por excelência, mas prossegue outras competências, tanto em matéria política como de fiscalização e de controlo. É um parlamento unicamaral, composto por 230 deputados, no máximo, eleitos por círculos plurinominais para mandatos de quatro anos. E tem competência legislativa e política geral.

Certas matérias constituem reserva absoluta de competência da AR, não podendo, sobre elas, autorizar o governo a legislar. Já sobre outras matérias da sua exclusiva competência, a AR pode dar autorização ao governo para legislar. É a reserva relativa.
A AR pode fiscalizar o governo e a administração, através de diversos instrumentos: moção de confiança (iniciativa do governo) ou de censura (iniciativa da oposição); requerimento de apreciação da legislação produzida pelo governo, que a AR pode alterar ou revogar; reuniões de perguntas ao primeiro-ministro (PM); interpelação ao governo sobre assuntos de política geral ou setorial; requerimento sobre atos do governo ou da administração; e constituição de comissões parlamentares de inquérito, que têm poderes de investigação próprios das autoridades judiciais.
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O governo conduz a política geral do país e é o órgão superior da administração pública. O PM é nomeado pelo PR, ouvidos os partidos representados na AR e tendo em conta os resultados eleitorais. Os restantes membros do governo são nomeados pelo PR, sob proposta do PM. Do seu programa constam as principais orientações políticas e medidas a adotar ou a propor nos diversos domínios da governação. O governo é responsável perante o PR e pela AR.

O governo é politicamente responsável perante a AR, à qual apresenta o programa, mas não carece de expressa investidura parlamentar por voto de confiança. Por outro lado, o governo, como é nomeado pelo PR, é também responsável perante este, podendo ser exonerado por ele, independentemente de desconfiança parlamentar, mas sob condições muito restritas.
Contudo, há alguns traços reminiscentes de formas de governo do tipo presidencial: a existência do PR eleito diretamente, dotado de importantes poderes de intervenção política, entre eles, o direito de veto político e o poder de dissolução da AR.
Quanto às relações entre o governo e a AR, o governo não é necessariamente de origem parlamentar, nem tem de gozar da sua confiança, mas não pode existir contra ela ou com a sua desconfiança. Para se formar e manter, o governo não necessita de ter a seu favor a maioria da AR; basta-lhe não ter contra ele uma maioria, o que permite a formação e a subsistência de governos minoritários, embora sujeitos a caírem por coligação negativa da oposição.

Além disso, o governo está submetido à fiscalização da AR, podendo ver os seus atos submetidos a inquérito parlamentar; a sua política está exposta a interpelação; os seus diplomas podem ser chamados à ratificação na AR; necessita da AR para a aprovação dos instrumentos essenciais de governo, como o orçamento e as grandes opções do plano, ou a obtenção de empréstimos, não podendo prescindir dela para obter legislação em muitíssimas matérias.
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Também os tribunais são órgãos de soberania que, embora os seus titulares não sejam eleitos, administram a Justiça em nome do povo e cujas decisões prevalecem sobre as das demais autoridades.
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Os órgãos de soberania são coadjuvados por inúmeras entidades, como as direções-gerais, as polícias e as forças armadas, e têm contraponto nas regiões autónomas e nas autarquias.
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Este é o sistema a que nós (e os ilustres candidatos) pertencemos, numa forma republicana de governação e num regime democrático, que esperamos nunca venha a tornar-se totalitário, despótico, autoritário ou repressivo. Somos nós que temos de pôr ética na política.
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Nota do Director:
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22/09/2025