Sincronias e assíncronas
Nunca duvidei do poder da literatura. Faz, mais ou menos, dois anos e meio que retornei as leituras literárias. Antes, as leituras académicas roubavam-me o tempo e a cabeça. Por isso, quero contar uma situação que aconteceu num dia destes.
Sabem aquela sensação de pelos dos braços arrepiados, borboletas na barriga e pensamentos conexos e desconexos, quando lemos algo que faz muito sentido para o que se pensa e, também, para o que se sente? A tradução em palavras de revolta, de análises e de sentimentos que, por vezes, ainda provoca a reflexão sobre algumas pistas para a ação e transformação. Pois bem, eu senti as tais borboletas (que, há muito, não sentia) com um livro de literatura. Não me lembro de isso ter acontecido antes. Senti que o novelo narrativo dos pensamentos, das ações e das relações, bem como a extrema complexidade que isso significa na vida real, concreta (nas nossas vidas), foi brilhantemente traduzida em palavras pela autora. E provocou-me reflexões e compreensões que, anteriormente, eu tinha tido apenas com textos acadêmicos ou com artigos jornalísticos.
A sequência de livros que compõe o que eu estou lendo agora, narra, com toda a franqueza, as complexidades do se tornar mulher. Apesar da geração da personagem ser da década de 1930 e poucos, numa cidade europeia, as suas inseguranças, indecisões e questões me tocam.
É engraçado como, guardadas as devidas peculiaridades do tempo-espaco (eu do Sul Global, ela do Norte), meu e da personagem, muitas das suas reflexões, medos, dúvidas, as maquinações do modo de pensar e de sentir muito atravessado pela culpa, insegurança, necessidade de se conter ou não, traduz o que eu sentia e sinto. Assincronia de tempo e de território. Sincronia de identidade.
A vida dela foi baseada na ideia de que, primeiro, era inseparável da amiga de infância. E de que, assim, cada ação ou escolha não era feita por si mesma, mas para o que ela achava que a sua amiga ou o rapaz por quem era apaixonada gostariam que ela fizesse. Isto porque não os queria decepcionar, deixando de lado o seu próprio eu e vivendo, a maior parte da sua vida, nessa lógica de agir (e de ser brilhante) com a amarra de uma expectativa que ela impunha a essas pessoas.
É, realmente, interessante pensar sobre isso. Sobre quanto sou eu que quero escolher, fazer, agir. E sobre quanto são imperceptíveis as influências culturais ou as relações sociais que se impõem sobre nós, principalmente, mulheres. O que é expectável que façamos ou que desenvolvamos na vida profissional ou pessoalmente?
Uma coisa é pensarmos isso com um texto teórico, que traz uma contextualização da transformação social e das contradições que acarretam, social e economicamente, o ser-se indivíduo, enquanto mulher, na sociedade. Outra, é – no emaranhado da vida, das relações, do tempo que corre e das próprias contradições de ser – viver essas influências, direcionamentos e, de repente, percebê-las.
É muito belo, na assincronia do tempo, encontrar uma sincronia de possibilidades de ser.
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05/12/2024