Uma criança fora de prazo?

 Uma criança fora de prazo?

Magusto, à moda antiga, no recreio da Escola Oliveira Lopes, em Ovar. (ovarnews.pt)

A minha rua esconde segredos de que nem o mundo inteiro deles sabe. Há uma porta na minha casa e de cada lado existe um lado, o de fora e o de dentro. Tanto estou num como no outro. E quando estou num dos lados, estou, simultaneamente, no outro, tal como o gato de Erwin Schrödinger.

Por vezes, saio de casa, faz-me bem sentir saudades dela. A minha rua sempre se mostrou da mesma forma, até onde me leva a memória: paralelos de granito, muros gretados de onde se dão aos olhos dos viandantes o musgo, as ervas daninhas e algumas silvas bem prontas a arranhar a pele. Num primeiro olhar, os paralelos são os mesmos, mas a rua já foi várias vezes despida deles e, do mesmo modo que ninguém conserta um copo partido, ninguém coloca os paralelos no lugar original, como acontece com a eternidade do Heráclito de Éfeso (ou teoria do devir).

“Do it yourself landscape”, de Andy Warhol (em 1962). (ressonancias.com)

Um dia fui caminhar. Passei pela escola primária, onde os meninos brincavam e aprendiam do lado de fora da escola, sem livros, sem giz, sem réguas e nem esquadros, sem Internet e sem pesquisas; apenas, uma fogueira e castanhas. Era o magusto. Era isto pelas duas da tarde. Alimentada pela fagulha, a fogueira dava luz à pálida claridade daquele dia de cheiros e de cores outonais. Também já passei por aquilo. Também eu já lá sujei as minhas mãos e aprendi a rir com as gargalhadas dos outros. Aprendi a falar, com as falas dos outros. Aprendi a amar, com o amor dos outros. Aprendi a respeitar, no respeito dos outros. Aprendi a ser um homem, ao exemplo dos bons.

“Eu, agora, estou tão grande!”, pensei. E os pensamentos em ebulição: “Eles, agora, são tão pequenos… As professoras são tão novas, dantes eram tão velhas…” Eu, quando era aluno, via as pessoas altas, demasiadamente altas, e pensava sobre o que elas pensariam de mim e se gostariam de estar na minha pele de aluno.  Agora, penso no modo como os meninos me veem: um coleccionador de anos e de mazelas? Um gigante? Um pelintra ou um ricalhaço?

(Créditos fotográficos: Ben White – Unsplash)

É certo que o tempo já me riscou com algumas décadas, que as toalhas que me enxugam os suores do agora não são do mesmo linho de outrora, mas, tirando isso, o sino tem o mesmo toque, os meninos a mesma sede de aprender, os professores a mesma fome do ensino; o recreio o mesmo espaço. As brincadeiras sempre tão as mesmas… Sempre tão novas, num mundo em mutação.

Se soubermos usufruir verdadeiramente de um passeio, ainda que sós, nunca estaremos sozinhos. Naquele 11 de Novembro, para além de um familiar, seguia comigo um miúdo de 12 anos, retratada, em todo ele, muito mais a meninice do que propriamente a pré-adolescência. O miúdo não conhece o pai biológico e é notória nele uma certa carência. O certo é que se apegou a mim. A eterna meninice não o deixa fingir. Diz mil vezes que gosta de mim. Que sabe que, às vezes, é “chatinho”, mas que gosta muito de mim. O ramo de flores que vem do seu íntimo, vale muito mais do que a fragrância de um ramo a sério.

(Créditos fotográficos: Garrett Jackson – Unsplash)

Como era bom que cada um de nós nunca despisse a criança que nos foi dada pela nascença…

Disse o menino: – Oh, agora, na minha escola, já não se faz o magusto! Já ninguém gosta disso!

(Créditos fotográficos: TV Globo / Reprodução – g1.globo.com)

As tradições são como o dinheiro, estão sempre a desvalorizar. Eu continuo a gostar das mesmas brincadeiras de quando era pequenino, mas, hoje, já ninguém mais quer brincar comigo. Agora, eu arrasto-me e fico a vê-los passar. Estou a falar dos meus colegas de escola. E dos outros também! A maioria deles já não tem olhos para olharem nos olhos, apenas os têm para os fixarem nos ecrãs dos telemóveis.

Enquanto não ensinarem a este e aos outros meninos que há um meio-termo, que “nem tudo ao mar e nem tudo à terra”, tão certo como dois mais dois serem quatro, vai, inevitavelmente, existir alguém a sentir o sapato apertado em alguma parte do pé!

Será aquele menino uma criança fora de prazo? Serão os outros meninos adultos prematuros?

A sociedade carece de um equilíbrio. De aprofundados estudos. De valores…

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14/11/2024

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José Torres Gomes

José Torres Gomes é natural da localidade de Belinho, no concelho de Esposende. O facto de ser portador da doença degenerativa de Stargardt (ou seja, uma distrofia macular hereditária de início juvenil caracterizada por atrofia macular bilateral) tem-lhe agravado a acção da visão central, a ponto de não ler o que escreve pelo seu próprio punho. O contacto com a Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO) trouxe-lhe novas esperanças na realização do seu sonho. Concretizou uma formação para a aprendizagem dos "softwares" de leitura de textos digitais, particularmente o “JAWS” (um leitor de ecrã desenvolvido para utilizadores de computadores cuja perda de visão os impede de ver o conteúdo do ecrã ou de navegar com um rato), transitando para o “NVDA” ("non visual desktop access"). A partir de então, passou a escrever regularmente no computador. Assim, em 2010, editou o seu primeiro livro, intitulado “Os ossos também falam”. No ano seguinte, publicou a obra “Nunca mais te vi”. Em 2013, lançou o seu terceiro livro: “Gente sem governo”. Na sua quarta obra, em 2015, experimentou a poesia com “A inquietude do silêncio”, título que agora adapta para o seu espaço de escrita no jornal "sinalAberto". Já em 2018, começa a exercitar a sua escrita no domínio da literatura para a infância e publica “O elefante branco”, ilustrado por Geandra Lipa. Em 2020, edita, igualmente para os mais novos, o livro “Zé Trinca-Espinhas e as letras do lago”, com ilustrações de Alexandra de Moraes. O seu mais recente livro para a infância “O menino que queria ser árvore” (homónimo de uma obra do autor brasileiro Fabiano Tadeu Grazioli) foi ilustrado por Carla Sofia Cardoso. Entretanto, tem participado em várias antologias.

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