Uma tendência pavloviana à luz de Cassirer

 Uma tendência pavloviana à luz de Cassirer

Mariana Mortágua (pt.wikipedia.org)

Ernst Cassirer (pt.wikipedia.org)

A hostilidade dirigida a Mariana Mortágua, acentuada após a sua participação numa flotilha solidária em defesa da população palestiniana, dificilmente pode ser compreendida como mera divergência ideológica. O que se manifesta é algo mais primário e, por isso mesmo, mais perturbador: um colapso simbólico que apaga a fronteira entre pensar, julgar e reagir. A política deixa de ser um espaço de ponderação racional ou de escrutínio moral e passa a funcionar como território de respostas automáticas. À semelhança do célebre condicionamento pavloviano, a mera enunciação do nome “Mortágua” basta para desencadear espasmos discursivos imediatos e previsíveis em determinados sectores da sociedade.

Neste quadro, a reflexão de Ernst Cassirer torna-se especialmente esclarecedora. Para o filósofo, o ser humano habita um mundo mediado por formas simbólicas – o mito, a linguagem, o direito, a ciência, a política. Um mundo que, no fundo, transcende dados brutos ou puramente factuais. São estas mediações que instauram distância crítica, conferem inteligibilidade ao real e tornam possível a imputação de responsabilidade moral. Quando este tecido simbólico se rompe, o mundo deixa de ser objeto de compreensão e passa a ser alvo de reações imediatas. À luz desta perspetiva, aquilo que hoje se observa nas redes sociais não é tanto um excesso de opinião, mas antes um sintoma claro de falência simbólica.

(Créditos fotográficos: dlxmedia.hu – Unsplash)

É neste ponto que o ódio dirigido a Mariana Mortágua encontra a sua verdadeira inscrição. Não está em causa a discordância face a uma posição específica, nem sequer a avaliação crítica da eficácia de um gesto. O que se observa é a recusa prévia da sua legitimidade moral – a negação de que ali exista um esforço sério para confrontar o horror. Esta recusa é, em si mesma, política e eticamente reveladora: quem descarrega ódio sobre um gesto orientado pela defesa de vidas humanas demonstra não estar à altura da exigência moral mínima que a nossa condição histórica reclama.

Também a questão palestiniana deve ser lida à luz deste processo de desagregação simbólica. Durante décadas, a constituição de um Estado palestiniano foi entendida como a única saída politicamente sustentável para o conflito israelo-árabe – não por prometer a superação total das suas contradições, mas por permitir a emergência de um sujeito político identificável, portador de direitos, de deveres e de responsabilidade histórica. Um Estado é, antes de tudo, uma construção simbólica: estrutura expectativas, enquadra a violência e torna possível a atribuição de responsabilidade moral. A erosão sistemática desta possibilidade – através do enfraquecimento da Autoridade Palestiniana e da normalização de um modus vivendi com o Hamas – gerou um bloqueio estrutural de grande profundidade. O resultado é a ausência de representação política credível, o esvaziamento do horizonte democrático e a substituição da política por uma administração contínua da exceção, da violência e da reação imediata. Onde a forma simbólica se dissolve, resta apenas o exercício nu da força.

Yitzhak Rabin e Yasser Arafat dão as mãos, acompanhados por Bill Clinton, quando ocorreu a assinatura dos Acordos de Oslo, em 13 de setembro de 1993. (pt.wikipedia.org)

Por isso, e perante o que se vê há cerca de três anos, a criação de um Estado palestiniano corresponde a um esforço extremo para conter a escalada da violência e para reativar, ainda que de forma precária, a gramática do direito internacional como último mecanismo de limitação do horror. Aceitar a derrota pura e simples da Palestina equivale a sancionar uma lógica histórica que conduz, de modo quase inevitável, à deportação, ao apagamento ou ao extermínio. Como advertia Cassirer, a violência física é sempre antecedida por uma desqualificação simbólica: quando um povo deixa de ser reconhecido como sujeito político, passa a ser tratado como matéria administrável – deslocável, descartável, eliminável sem perturbação moral.

A história europeia do século XX confirma tragicamente este diagnóstico. A transição da Primeira para a Segunda Guerra Mundial demonstra como a humilhação prolongada, a precariedade material e a erosão simbólica podem engendrar formas extremas de violência. A destruição sistemática produz desespero; o desespero corrói a razão; e deste colapso emergem monstros. Ignorar esta cadeia causal é cegueira histórica. É por isso que gestos simbólicos de resistência – ainda que politicamente imperfeitos, ambíguos ou insuficientes – devem ser compreendidos como tentativas de preservar um mínimo de inteligibilidade moral num mundo cada vez mais inclinado a normalizar o intolerável. Não constituem absolutos morais, mas funcionam como travões éticos. Desprezá-los com escárnio reflexo equivale a abdicar da responsabilidade crítica que a História exige de nós.

Dresden destruída, depois dos bombardeamentos dos Aliados de 13 a 15 de fevereiro de 1945, durante a Segunda Guerra Mundial. (Créditos fotográficos: Wikimedia Commons – rr.pt)

Promover e defender estes símbolos de humanidade é, hoje, um dos poucos gestos politicamente sérios que restam. Quem reage com ódio pavloviano a quem procura salvaguardar este mínimo ético revela uma profunda insuficiência ética, falta de lucidez e de elevação moral. E falha, sobretudo, enquanto ser humano.

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Nota do Director:

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25/12/2025

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Lourenço Ferreira

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Lourenço Ferreira é mestrando em Comunicação Social, investigador na área da Comunicação Política e colaborador em projetos de Educação para a Cidadania. Interessa-se por temas como a opinião pública, o discurso político e o impacto das novas formas de mediação na cultura contemporânea. Escreve com regularidade sobre política, sociedade e “media”, procurando sempre um olhar crítico e fundamentado sobre os fenómenos do seu tempo.

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