Unidade sem cuidados intensivos
Crónica sobre um internamento no Centro Hospitalar do Oeste, com conversas mundanas às três da madrugada
De costelas partidas — melhor, fraturadas — todo o arco costal traseiro — esquerdo — alguma sorte — não desalinharam — oito — a integral — respirar assim é sofrimento a cada bombada de ar — nem por isso — algum — a primeira semana de cúbito dorsal — a primeira noite foi sentado — para ser preciso — entre muitos em macas — macados — não deve existir — ao segundo dia: enfermaria — um quarto de duas camas — ao lado um velho mudo — era o que me parecia — balbuciou qualquer coisa quando me plantei na cama articulada — ele, a mão na pega, ao alto, sobre a cabeça — a partir daí eras tu a safar-te — o pesadelo? — mijar — a próstata não sossega — nem na catástrofe — e eu de serviço ao pingo respigado e ao jato soluçado — mictar a prestações — saudades de uma boa mijadela à distância — o senhor qualquer coisa — não era Abrantes — já se me foi – filha enfermeira ali — disse ele ao fim de horas a dois metros: não é qualquer um que vem para aqui — estatutos — uma semana de cama articulada a mexer no comando nada remoto — costas para baixo costas para cima — sem posição possível — o melhor ? — dormir sentado — estás dormir em pé ?, diz-se e há quem possa — admirável o mundo de alguns bípedes — sentado é foda — mas deitado pior ainda — o peso do peso sobre as fraturas — de baixo para cima — a certa altura tens de mudar — para a cadeira também articulada — tudo aqui é articulado — à imagem dos esqueletos — 3 da manhã — 4 – 6 — às sete entra uma auxiliar gorda e baixa, quadrada — vamos ao banho senhor — nem me consigo levantar — de lado parece que o corpo se rasga na linha de perfil lateral – a linha das fraturas? — passagens nervosas — artérias — músculos — somos complexos — melhor assim — se passassem dentro dos ossos seria pior — o banho senhor — consegue levantar-se ? — que remédio — tem de tomar banho — é a pandemia, desinfecção matinal — penso — o sabão líquido cheira a desinfetante — entre a lixívia e o de Marselha — o outro bebeu lixívia para expulsar o vírus via intestinal — uma cabeça de lá ter apenas uma pala — em popa — galaró imbecil — no topo do mundo — tem de ir para o banho senhor — sim – vou já — como raios me levanto — de lado — há um ponto de dor aguda — aí a meio da ascensão lateral do tronco — sentado melhora — andar? — o pé num trambolho — pata elefante — onde andará no meio deste inchaço — pata no chão — podia ser pior — ando — pouco, de cada vez — força no esquerdo — o direito estará partido ? — no banco do chuveiro chegar ao sabão líquido sem me esparramar — o pijama lavado — a toalha — ali à mão — e tão longe — um falso banho — onde chegaste com a direita — tudo bem — e os entres — os entre dedos, por exemplo — água e espuma a correr — puta de sorte — e despir a calça do pijama — e o casaco — um circo — e vestir? — outro circo — como sou grande — nem uma nem outro me servem — a calça fica-me a meio da canela — da boa — a da esquerda tem um hematoma — inchaço — entra à pressão — pijama de criança ou de anão ou dos anos cinquenta de mil e novecentos — antes do iogurte e depois do iogurte — aI dI como ac dc — sou grande no meu metro e setenta — e mais um — falso — para inglês ver — pijamas do tempo do raquitismo — o algodão era bom — rijo — de alguma espessura — lá me meto naquilo — o casaco a mesma coisa — curto e apertado — onde forma buscar as médias físicas dos internados? — Portugal dos pequeninos — litlegal — então já se lavou — diz de fora — quase — vou na axila mas já lavei o entrefolho — apetece-me dizer — a virilha é sempre problemática — todos os interiores de zonas de articulação membrais — o pior do íntimo — um odor a cogumelo abandonado — cresce nas sombras e busca sol — esta gaja auxiliar é um tanque — penso nos campos — nos campos — não no campo — noutra conjuntura dobraria a eficácia para servir um capataz — máquinas de tratar humanos em série — já se lavou — sim — desinfetou deveria dizer — a pandemia redobra lógicas de aviário — tudo desinfetado — lixívia por todo o lado — volto à cama — passo a passo — uns minutos valentes para mal cumprir seis metros — um tempo infinito para me deitar — as costas da cama ao alto — sentado deitado — por muito ergonómico que aquilo seja não se acomoda às minhas curvas — pequeno almoço — quer chá ou leite — chá preto — isso não há — chá de camomila cidreira ou tília — chá? — pode ser café — chicória — mistela inclassificável — bom para dar cabo do vírus — pão com quê — o que tem — com ou sem manteiga — pode ser com — este pãozinho é muito bom ouço do lado — coisa mole para quem não se lembra dos dentes — do tempo dos dentes — dantes — pois é — muito bom — senhor — senhor Joaquim — será? — a minha filha é aqui enfermeira — não é qualquer um que para aqui vem — tenho alta amanhã — se as análises vierem boas — pode ligar-me a TV — oh caraças — outra caminhada trágica até ao botão — e lá vem o preço certo — puta de sorte — o gordo e aquelas pernaltas em fundo — sempre a trotar o plateau nas carnes propícias — boas pernas como se diz bons dentes de um cavalo — e o engraçado a engraçadar — que fazer? — penso no palácio de inverno e nas teses de abril — a cada um as suas pancadas e de cada um os seus defeitos — a memória pontuada de momentos imaginários cozinhados de interpretações épicas — Lenine no SmolnY e as carpetes pintadas de lama — como o assalto à Bastilha — é isso que fica — um Diogo Cão banhado em bronze deitado na praia de Varela — qause em Casamance — de lado — de cúbito lateral — não há simbólico que o tempo não arruíne — tem direito a um um um automóóóvel — vai dar umas voltinhas amanhã — não tenho carta — não — põe-no à porta e vai vê-lo da janela — não tenho porta de casa nem vistas para um lugar automóvel — sou de um prédio — habitação insocial — o quê? — ora o número é 37 — e vai em 200 euros — o quê — trinta e sete percebe? — é o que calço – o que para aqui vai — é o progresso — chuchas açucaradas para os pobrezinhos à vista de todos os pobrezinhos e eles só pensam em enriquecer — entretidos — possuídos por entreténs — pior só a IURD — naquele dia em Maputo assististe a um milagre em directo — dois — levante-se e ande — e andou — abra os olhos e veja — e viu — todos a olhar para ti — que quer aquele branco — o pastor secundou o olhar pouco amigo do rebanho — pisguei-me — antes os baptismos na lagoa de Óbidos pelos da Santa da Ladeira — de uma autenticidade rústica imbatível e á prova de afogamento — ali ninguém perde o pé — nenhum convertido se vai em excesso de êxtase cerimonial — a senhora do pequeno almoço é mais subtil que a do banho obrigatório — a camomila é chá — e ela é um canguru sem bolsa marsupial — de magreza — os machos terão bolsa? — o famoso pão vem no interior de um plástico — e o café de água chilra também é chamado de café — os nomes podem enobrecer as coisas — como a palavra conde posta no merceeiro ou no parvenu que se põem a jeito — nada contra merceeiros — há quem compre títulos — já nem isso se usa — agora um bronco é orgulhosos de o ser — atira-te o analfabetismo à cara como qualificação — jogada a estupidificação maior a renda mediática — o share — já comeu — acho que sim — o gordo continua de volta de si mesmo — exibindo a gordura como anedota — explorando o corpo em anomalia cómica — palhaço nem pobre — vulgar — gordo — como só podem os palhaços ricos — o camarada da cama ao lado olha pela janela — há horas nisto — para que será a televisão? — atenção nenhuma — dependemte daquele ruído palrado ? — sente companhia — as televisões habitam espaços vazios — preenchem-nos com imagens ininterruptas — uma chaia constante — herbívoros auditivos — visivos — palha visiva — palha sonora — resta esperar o almoço — agora sim uma enfermeira — mede o açúcar — temperatura — injeta o antibiótico — cinco dias nisto quatro vezes ao dia — a injeção — comprimidos para as dores — atenuam — respiras bem — tens os pulmões em ordem — respiras fundo — a última radiografia dissipara a imagem do pneumotórax — não — não tem — são só as costelas — na máquina do hospital são cinco — máquina das calendas — na do Montepio foram oito — ao fim de três semanas e meia — em casa — dormir é que é fodido — e livrei-me da hora social do pessoal de enfermagem — aí por entre a uma da manhã e as três — falam de casas e vistas — de casas mandadas contruir — vulgo vivendas — e de segundas casas — das férias — competem as férias havidas entre si — os pacotes — férias cá dentro que lá fora não dá — e alto que falam — nos hospitais o pessoal pensa que os doentes são todos surdos — próximo alguém berra — madrugada dentre — socorro — e lá se cala — ouve-se que está apanhado da mona — aquela de fazer conversa de chá das cinco às 3 da manhã? — marquesas e condes enfermeiros — o ratio é a favor delas — claramente — a jovem médica que me vem ver ainda tem dentes de leite — o que está esta criança aqui a fazer sozinha? — não sabia nada do meu dossiê — é diabético — ligeiro — ai tem hipertensão — mas isso não está aí escrito? — caiu de um palco? — acontece — uma vez vi a Fernanda Alves a desaparecer quartelada dentro do palco da dona maria do Rossio — padre antónio viera — sobre índios — índio era eu no meio dos bárbaros — por fim lá lhe disse — olhe: meta aí uma radiografia ao pé — quero saber se o parti — ah pois — tem aqui um pedido — ah – ah – nem se lhe ouvia a voz — sumida — finalmente chegou o dia de me pisgar — o senhor vai ter alta — vesti-me logo — não se devia ter vestido sem ordem nossa — disse-me o enfermeiro — tudo movido a ordens — menos mijar — tens autonomia — desde que andes — consigas andar — ainda fiz a radiografia ao pé — um mês depois não sei o resultado — pia ou entropia — esta hora de ponta constante é nas cabeças — faltam buracos de mudez coletiva — fazem uma falta imensa — mas onde ir buscá-los senão a um desejo de suspender