Unidade sem cuidados intensivos
Crónica sobre um internamento no Centro Hospitalar do Oeste, com conversas mundanas às três da madrugada

 Unidade sem cuidados intensivos Crónica sobre um internamento no Centro Hospitalar do Oeste, com conversas mundanas às três da madrugada

Nino Liverani (Unsplash)

De costelas partidas — melhor, fraturadas —  todo o arco costal traseiro — esquerdo — alguma sorte — não desalinharam — oito — a integral — respirar assim é sofrimento a cada bombada de ar — nem por isso — algum — a primeira semana de cúbito dorsal — a primeira noite foi sentado — para ser preciso — entre muitos em macas — macados — não deve existir — ao segundo dia: enfermaria — um quarto de duas camas — ao lado um velho mudo — era o que me parecia — balbuciou qualquer coisa quando me plantei na cama articulada — ele, a mão na pega, ao alto, sobre a cabeça — a partir daí eras tu a safar-te — o pesadelo? — mijar — a próstata não sossega — nem na catástrofe —  e eu de serviço ao pingo respigado e ao jato soluçado — mictar a prestações — saudades de uma boa mijadela à distância — o senhor qualquer coisa — não era Abrantes — já se me foi – filha enfermeira ali — disse ele ao fim de horas a dois metros: não é qualquer um que vem para aqui — estatutos — uma semana de cama articulada a mexer no comando nada remoto — costas para baixo costas para cima — sem posição possível — o melhor ? — dormir sentado — estás dormir em pé ?, diz-se e há quem possa — admirável o mundo de alguns bípedes — sentado é foda — mas deitado pior ainda — o peso do peso sobre as fraturas — de baixo para cima — a certa altura tens de mudar — para a cadeira também articulada — tudo aqui é articulado — à imagem dos esqueletos — 3 da manhã — 4 – 6 — às sete entra uma auxiliar gorda e baixa, quadrada — vamos ao banho senhor — nem me consigo levantar — de lado parece que o corpo se rasga na linha de perfil lateral – a linha das fraturas? — passagens nervosas — artérias — músculos — somos complexos — melhor assim — se passassem dentro dos ossos seria pior — o banho senhor — consegue levantar-se ? — que remédio — tem de tomar banho — é a pandemia, desinfecção matinal — penso — o sabão líquido cheira a desinfetante — entre a lixívia e o de Marselha — o outro bebeu lixívia para expulsar o vírus via intestinal — uma cabeça de lá ter apenas uma pala — em popa — galaró imbecil — no topo do mundo — tem de ir para o banho senhor — sim – vou já — como raios me levanto — de lado — há um ponto de dor aguda — aí a meio da ascensão lateral do tronco — sentado  melhora — andar? — o pé num trambolho — pata elefante — onde andará no meio deste inchaço — pata no chão — podia ser pior — ando — pouco, de cada vez — força no esquerdo — o direito estará partido ? — no banco do chuveiro chegar ao sabão líquido sem me esparramar — o pijama lavado — a toalha — ali à mão — e tão longe — um falso banho — onde chegaste com a direita — tudo bem — e os entres — os entre dedos, por exemplo — água e espuma a correr — puta de sorte — e despir a calça do pijama — e o casaco — um circo — e vestir? — outro circo — como sou grande — nem uma nem outro me servem — a calça fica-me a meio da canela — da boa — a da esquerda tem um hematoma — inchaço — entra à pressão — pijama de criança ou de anão ou dos anos cinquenta de mil e novecentos — antes do iogurte e depois do iogurte — aI dI como ac dc — sou grande no meu metro e setenta — e mais um — falso — para inglês ver — pijamas do tempo do raquitismo — o algodão era bom — rijo — de alguma espessura — lá me meto naquilo — o casaco a mesma coisa — curto e apertado — onde forma buscar as médias físicas dos internados? — Portugal dos pequeninos — litlegal — então já se lavou — diz de fora — quase — vou na axila mas já lavei o entrefolho — apetece-me dizer — a virilha é sempre problemática — todos os interiores de zonas de articulação membrais — o pior do íntimo — um odor a cogumelo abandonado — cresce nas sombras e busca sol — esta gaja auxiliar é um tanque — penso nos campos — nos campos — não no campo — noutra conjuntura dobraria a eficácia para servir um capataz — máquinas de tratar humanos em série — já se lavou — sim — desinfetou deveria dizer — a pandemia redobra lógicas de aviário — tudo desinfetado — lixívia por todo o lado — volto à cama — passo a passo — uns minutos valentes para mal cumprir seis metros — um tempo infinito para me deitar — as costas da cama ao alto — sentado deitado — por muito ergonómico que aquilo seja não se acomoda às minhas curvas — pequeno almoço — quer chá ou leite — chá preto — isso não há — chá de camomila cidreira ou tília — chá? — pode ser café — chicória — mistela inclassificável — bom para dar cabo do vírus —  pão com quê — o que tem — com ou sem manteiga — pode ser com — este pãozinho é muito bom ouço do lado — coisa mole para quem não se lembra dos dentes — do tempo dos dentes — dantes — pois é — muito bom — senhor — senhor Joaquim — será? — a minha filha é aqui enfermeira — não é qualquer um que para aqui vem — tenho alta amanhã — se as análises vierem boas — pode ligar-me a TV — oh caraças — outra caminhada trágica até ao botão — e lá vem o preço certo — puta de sorte — o gordo e aquelas pernaltas em fundo — sempre a trotar o plateau nas carnes propícias — boas pernas como se diz bons dentes de um cavalo — e o engraçado a engraçadar — que fazer? — penso no palácio de inverno e nas teses de abril — a cada um as suas pancadas e de cada um os seus defeitos — a memória pontuada de momentos imaginários cozinhados de interpretações épicas — Lenine no SmolnY e as carpetes pintadas de lama — como o assalto à Bastilha — é isso que fica — um Diogo Cão banhado em bronze deitado na praia de Varela — qause em Casamance — de lado — de cúbito lateral — não há simbólico que o tempo não arruíne —  tem direito a um um um automóóóvel — vai dar umas voltinhas amanhã — não tenho carta — não — põe-no à porta e vai vê-lo da janela — não tenho porta de casa nem vistas para um lugar automóvel — sou de um prédio — habitação insocial — o quê? — ora o número é 37 — e vai em 200 euros — o quê — trinta e sete percebe? — é o que calço – o que para aqui vai — é o progresso — chuchas açucaradas para os pobrezinhos à vista de todos os pobrezinhos e eles só pensam em enriquecer — entretidos — possuídos por entreténs — pior só a IURD — naquele dia em Maputo assististe a um milagre em directo — dois — levante-se e ande — e andou — abra os olhos e veja — e viu — todos a olhar para ti — que quer aquele branco — o pastor secundou o olhar pouco amigo do rebanho — pisguei-me — antes os baptismos na lagoa de Óbidos pelos da Santa da Ladeira — de uma autenticidade rústica imbatível e á prova de afogamento — ali ninguém perde o pé — nenhum convertido se vai em excesso de êxtase cerimonial — a senhora do pequeno almoço é mais subtil que a do banho obrigatório — a camomila é chá — e ela é um canguru sem bolsa marsupial — de magreza — os machos terão bolsa? — o famoso pão vem no interior de um plástico — e o café de água chilra também é chamado de café — os nomes podem enobrecer as coisas — como a palavra conde posta no merceeiro ou no parvenu que se põem a jeito — nada contra merceeiros — há quem compre títulos — já nem isso se usa — agora um bronco é orgulhosos de o ser — atira-te o analfabetismo à cara como qualificação — jogada a estupidificação maior a renda mediática — o share — já comeu — acho que sim — o gordo continua de volta de si mesmo — exibindo a gordura como anedota — explorando o corpo em anomalia cómica — palhaço nem pobre — vulgar — gordo — como só podem os palhaços ricos — o camarada da cama ao lado olha pela janela — há horas nisto — para que será a televisão? — atenção nenhuma — dependemte daquele ruído palrado ? — sente companhia — as televisões habitam espaços vazios — preenchem-nos com imagens ininterruptas — uma chaia constante — herbívoros auditivos — visivos — palha  visiva — palha sonora — resta esperar o almoço — agora sim uma enfermeira — mede o açúcar — temperatura — injeta o antibiótico — cinco dias nisto quatro vezes ao dia — a injeção — comprimidos para as dores — atenuam — respiras bem — tens os pulmões em ordem — respiras fundo — a última radiografia dissipara a imagem do pneumotórax — não — não tem — são só as costelas — na máquina do hospital são cinco — máquina das calendas — na do Montepio foram oito — ao fim de três semanas e meia — em casa — dormir é que é fodido — e livrei-me da hora social do pessoal de enfermagem — aí por entre a uma da manhã e as três — falam de casas e vistas — de casas mandadas contruir — vulgo vivendas — e de segundas casas — das férias — competem as férias havidas entre si — os pacotes — férias cá dentro que lá fora não dá — e alto que falam — nos hospitais o pessoal pensa que os doentes são todos surdos — próximo alguém berra — madrugada dentre — socorro — e lá se cala — ouve-se que está apanhado da mona — aquela de fazer conversa de chá das cinco às 3 da manhã? — marquesas e condes enfermeiros — o ratio é a favor delas — claramente — a jovem médica que me vem ver ainda tem dentes de leite — o que está esta criança aqui a fazer sozinha? — não sabia nada do meu dossiê — é diabético — ligeiro — ai tem hipertensão — mas isso não está aí escrito? — caiu de um palco? — acontece — uma vez vi a Fernanda Alves a desaparecer quartelada dentro do palco da dona maria do Rossio — padre antónio viera — sobre índios — índio era eu no meio dos bárbaros —  por fim lá lhe disse — olhe: meta aí uma radiografia ao pé — quero saber se o parti — ah pois — tem aqui um pedido — ah – ah – nem se lhe ouvia a voz — sumida — finalmente chegou o dia de me pisgar — o senhor vai ter alta — vesti-me logo — não se devia ter vestido sem ordem nossa — disse-me o enfermeiro — tudo movido a ordens — menos mijar — tens autonomia — desde que andes — consigas andar — ainda fiz a radiografia ao pé — um mês depois não sei o resultado — pia ou entropia — esta hora de ponta constante é nas cabeças —  faltam buracos de mudez coletiva — fazem uma falta imensa — mas onde ir buscá-los senão a um desejo de suspender

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Fernando Mora Ramos

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