Vamos mudar?

 Vamos mudar?

Ricardo Resende (Unsplash)

1, o que está mal para ser mudado, criando o que não existe e necessita de existir para que a mudança aconteça;

2, o que é mudar? É alterar as condições e os pontos de vista, mudar o chão que pisamos, o horizonte que vemos, o dentro que somos, o nada que persiste. Mudar para diferente, melhor, é construir a existência de relações de maior liberdade que combatam a violência sexista, o racismo, o consumismo acéfalo, a dependência digital que afecta a inteligência das crianças, a qualidade da educação, a qualidade da circulação, a riqueza dos acontecimentos presenciais que sejam esteio da mudança na cidade, é a concretização de objectos criativos que sejam o resultado da acção de estruturas de criação residentes que convertam a cidade num pólo criativo, em pólos de criação/fruição/criação;

3, essas estruturas de criação são entidades profissionais compósitas capazes de realizar integralmente a natureza dos objectos que têm como vocação realizar, seja teatro, seja dança, seja programação artística interdisciplinar, seja alimentar e criar a massa crítica ambiente com a consequente qualificação dos projectos artísticos, dos modos de ver, de ler, das artes plásticas, da cerâmica, etc., e da própria cidadania como vida marcada pelo sensível – as artes não são ao lado da vida, são vitais para viver. O meio que se respira, o ambiente gerador de ideias, a dimensão do que é criar nos gestos quotidianos, no trabalho, na aprendizagem, determinam essa qualificação referida  –  é por isso que certos meios são referências de qualificação, de metamorfose, de emancipação, sendo portanto paradigmáticos, como Cambridge, por exemplo, como a política cultural francesa dos anos do pós-guerra, a inicial, como os anos 20 russos/soviéticos, como o 25 de Abril — sim, que mudou com esta revolução?, um projecto, pois, e como mudou o que mudou, quotidianamente, nas relações entre as pessoas, nas hierarquias, no policiamento persecutório, na falta de liberdades, no medo de viver! Mudar é revolucionar, dar uma volta ao que se quer mudar, que não é apenas cosmética nem é algo feito só de pequenos passos que, entretanto, desandam.

4, são portanto entidades da mudança, motores de mudança, pólos de cidadania criativa e entidades de criação complexas as aqui referidas, universidades vivas de saberes múltiplos, de dimensão variada e com vocação interveniente, ao mesmo tempo que investigativa, com mecanismos estruturais de criação que exercem o seu labor objectivo de modo sabidamente processual – laboração contínua do seu objecto – entre o conhecimento patrimonial, o saber artesanal próprio, a sofisticação tecnológica entretanto subsumida nos processos criativos como instrumento e a consciência do que se inova e reinventa, do pesquisado que se aplica, da redescoberta de esquecidos e da invenção de formas actuais de desnudar interditos incompreensíveis e atavismos, de inventar o futuro, um futuro contra a tragédia anunciada. Obviamente, a criação contemporânea tem aqui um papel, justamente também nos modos, sempre diversos, da sua relação com as heranças e com a experimentação, mais radicais, mais geradas de raízes e de influências positivas anteriores. Aqui, a técnica serve objectivos artísticos e sociais, é instrumento.

Mudar é revolucionar, dar uma volta ao que se quer mudar, que não é apenas cosmética nem é algo feito só de pequenos passos que, entretanto, desandam

5, mudar, nesta acepção, não é pôr a economia no altar e a moeda a dourar na cruz; não é sujeitarmo-nos a uma economia da subsistência sobrevivente, da regularidade do mesmo; é fazer de uma dinâmica de cultura crítica  –  com perfil próprio, cada meio é um caso, cada território tem os seus  referentes e heranças específicas, os seus cruzamentos disciplinares   –, o ambiente que se respire para que também a economia mude de natureza e seja meio de vida e não, enquanto finalidade lucrativa para poucos, destruição da Natureza, do emprego, especulação financista, fuga ao fisco, lucro horizonte único, desprezo pelas funções sociais, aversão à despesa pública, etc.

Ricardo IV Tamayo (Unsplash)

6, esse pôr a cultura crítica primeiro significa redimensionar e amplificar as capacidades instaladas em determinadas instâncias e comunidades de acção e de fruição artística e cultural, na cidade, dotando-as de escala e de perfis disciplinares de afirmação criativa, materiais e imateriais, que ultrapassem os limiares da sobrevivência e uma existência que seja só resistência no lugar de expansão de modos de vida libertos, de ilhas de lucidez e esclarecimento num arquipélago de barbárie e regressão, de exploração e opressão, de desigualdades.

Expansão de criação de universos de linguagens de entendimento e desocultar de modos de regressão e desigualdade, por muito escondidas e mesmo subliminares que sejam  –  como, por vezes, é o caso da violência doméstica  –, instaladas em hábitos e rotinas, que só se podem superar pela afirmação do rigor das linguagens críticas que se fruam e assumam como desígnio prático, pela liberdade criativa, pela assunção do belo como modo de intervir, como paradigma de libertação, belo tangível e não inacessível, belo real, belo como realização daquilo que é específica potencialidade humana, nos antípodas da concretização vulgar e maquinal do desumano que a História faz rodar, do anti-humano, do inumano, da violência como motor dominante acéfalo.

O profissionalismo das estruturas vai a par com esse rigor que é objectivo, um rigor obstinado – sem esse entendimento laico do alcance do que é profissional não existe paradigma, o paradigma é a criação hoje, a investigação de formas, o trabalho da forma nas artes contemporâneas e esse regresso constante aos referentes matriciais – como são a Odisseia e a Ilíada, a Divina Comédia, de Dante – obras que milénios recriaram em novas vidas históricas, fazendo coisas “inúteis”, como, por exemplo também são o tecto da Capela Sistina – restaurado – ou a Ode Marítima, de Pessoa, na versão de Claude Regy, verdadeira acto cénico “xamã”;

7, isso significa conjugar um conjunto de entendimentos e de convergências numa perspectiva emancipadora, isto é, contra preconceitos, contra o que é ignorante mas exerce a arrogância e é aquilo que pugna pelo que são modos de ignorância promovidos a poderes  – o trumpismo –, obscurantismos, modos primários de imposição de circunstâncias e ambientes, mecanismos de congregação de pessoas centrados nos fanatismos clubistas, de que os hooliganismos e a violência intrínseca constante – há quem apelide a futebol de “guerra civil de baixa intensidade” – são o sinais evidentes, rotinas de vida atraídas pelo entretenimento larvar e imbecil, idolatrias acéfalas, a sociedade na verdade “bigbrotherizada”, submetida aos ícones televisivos do momento softporno dominante, ao culto do baixo instintual, etc.

8, esses entendimentos são uma plataforma de convergências de equipas de acção cultural criativa e artistas individuais, de capacidades organizativas, de calendários, de equipamentos, de meios técnicos e saberes profissionais, de tradições identitárias e práticas reflectidas, de vidas concretas que, nesse encontro produtivo, materializam a cidade no que ela é cidade, enquanto modo de vida marcado pela fruição cultural, pluralidade de opções, assembleia constituinte diária crítica e regular desse ímpeto de mudar que o projecto Vamos Mudar quererá instaurar – instaurar a mudança para que as coisas mudem, o que significa questionar o que está e é considerado necessário mudar, inventar o que não existe.

Karen Salmansohn (NotSalmon.com)

Sabemos a que ponto o exercício autocrítico é, o mais das vezes, puramente retórico, ritual e um processo dificilmente aceite como método de superação dos próprios erros, muitas vezes apenas expediente, tal como uma confissão que se faz para voltar a “pecar” – há autocríticas que são verdadeiras psicanálises, psicodramas, mais terapia que superação intelectual do passivo histórico negativo, monstruosos, por vezes. Autocrítica também em conjunto, entenda-se crítica como visão das coisas, não como excepção sinalizada nem excepção depois dos erros recometidos, para voltar a fazer o mesmo rotinizado, como tem acontecido a processos como o da pedofilia na Igreja ou o da corrupção no país, para a qual se acordou tarde demais e tarda justiça a fazer-se – é a sociedade, e as suas partes, que devem realizar essa autocrítica como crítica em método, não há alternativa ao juízo crítico, o erro é parte de todos os processos;

Sabemos a que ponto o exercício autocrítico é, o mais das vezes, puramente retórico, ritual e um processo dificilmente aceite como método de superação dos próprios erros

9, é uma plataforma de encontro de diversidades e de capacidades multidisciplinares e patrimoniais, criativas de raiz e agindo na referência histórica ou patrimonial, literária, arquitectónica, pictórica, fílmica, trans ou inter ou multidisciplinar artística e cultural, experimental, etc. 

10, não há futuro sem passado – o presente é o passado imediato a ocorrer, por vezes a eclodir – que não seja apenas luto ou culto dos mortos – esse futuro apenas comandado pelo tempo que corre de modo incontrolado, movido pelas forças da desordem capitalista, pelo mercado selvagem, esse futuro marcado pelo tal progresso sem fronteira, ideologia do esgotamento dos recursos planetários e de um sobre-uso turístico de todas as escalas e limites naturais, corre para um antes regressivo, nada está parado e o que não se transforma como um regresso ao possível inscrito na Natureza, desenvolve formas bárbaras de coexistência (des)humana regulares. Estamos no limiar do grande erro, a caminho de uma nova idade do canibalismo rupestre, eis o horizonte da inteligência algorítmica aplicada ao descontrolo daquela ideia de “tomarmos o nosso destino nas mãos”, quer dizer, na inteligência social prospectiva, libertadora de peias, formas atávicas e opressões.

A memória, rica de lições e de erros esclarecidos, ou é propulsora de novo ou é cinza que se repisa. A cinza respeita-se e deixa-se lá a fazer o que deve, misturada com a terra, tornando-a mais leve. Mas a memória viva, a que ilumina caminhos para a frente, do ponto de vista racional e fundamentadamente histórico e filosófico, literário – o teatro numa acepção aqui integrada é mais que tri-milenar – essa memória não cessa de criticar o nosso presente e os desenhos falaciosos do nosso futuro, cada vez menos futuro, em vias também de extinção como o não futuro de muitas espécies planetárias.

11, O que é hoje claro é que mesmo os que a ela recorrem para a destruir no que tem de essencial – eu diria o seu “veneno”, a sua “cafeína”, o que lega e não se ajusta ao que está, não se ajeita a ser marquetingue  –, o que transporta como lição ancorada na experiência do erro e referência do belo, e que têm esse desprezo do que ela contém de potencialidade filosófica, substituindo-a pela marca performativa do último logótipo, sentem necessidade de a ela recorrer quando fazem Tchekhov, Shakespeare, etc., mesmo quando o fazem contra os textos, contra o que dizem, tornando-os pretextos de gestos narcisistas – sem o seu glamour não passam, dificilmente inventam o que gostariam a partir do nada que gostariam de ocupar, imperadores criativos, pioneiros do nada, candidatos a deuses, manipuladores de bairro. Quem não se serve de Shakespeare até para promover um sabonete, quem não usa Pessoa para fazer uma selfie sem nunca ter lido um verso do poeta? Alguns fazem dos clássicos, da sua força icónica matricial e complexa, resumos e sinopses para gosto da massa, também sob a forma de espectáculo, coisas muito interactivas, procurando desesperadamente não a relação com a cidade, mas o aplauso cego do corrupio de fãs.

Quem não se serve de Shakespeare até para promover um sabonete, quem não usa Pessoa para fazer uma selfie sem nunca ter lido um verso do poeta?

É um assunto velho e morto, sabemos que, entretanto, os cemitérios em actividade continuam sempre a mostrar a cara da última novidade como mercadoria próxima, produto. Já nos anos setenta, a descoberta eram os clássicos de blue jeens, isso bastava ao “novo” que se vendia.

O ridículo mata, a confusão entre a aparência do saído do banho e a novidade do champô que abre as portas da felicidade total só ajuda a confundir planos que são separados – o discurso publicitário consumista é hegemónico e a sociedade do espectáculo impõe as suas regras a uma “cidade” constituída por fãs (fanáticos) e não por cidadãos livres.

12, o trabalho do sentido, escavando até onde nos levarem os materiais em estaleiro – uma obra é uma construção material, ideal, física processual –, estabelece a diferença entre o fácil imediato e exitoso, subscrito pela massa acólita e pelo enigmático que não cede, o desconhecido, o que é necessário compreender e resiste à compreensão, porque é no incompreendido que reside a questão – porque não vivemos em paz? Porque destruímos a Natureza? Que sistema é este que nos destrói? Que tragédias são as da actualidade, do Mediterrâneo ao Capitólio, da Etiópia à Palestina, dos incêndios na Austrália à própria incapacidade de conter a pandemia? Que tragédia é esta do salário menos que mínimo, de uma sociedade que consome mais antidepressivos que aspirinas? Que desastre é este de viver num mundo de deprimidos e de pessoas que, todos os dias, são obrigadas a suportar o insuportável?

KTMD Entertainment (Unsplash)

13, por isso, são esteio do nosso trabalho os clássicos porque são actuais, continuam a dizer-nos coisas com valor actual e são paradigma de inteligência e de beleza, escolas de sensibilidade, assim como os contemporâneos cujas qualidades aos clássicos são comparáveis, na sua diferença, justamente, de tempo e forma. Os criadores que não se entregam ao mercado e à publicidade, assim se mantendo contra o sistema, metodologicamente, nas suas ilhas comunitárias emergentes, são alternativa ao que dita que o publicitário é o cerne, o sentido único, o regime único, a única way off life, confundindo glamour e rankings mundanos com meta e objectivo humanos, ascensão social com transformação, acumulação de dinheiro e de bens com riqueza espiritual, celebridade em renda com arte, etc.

14, clássicos em sentido amplo, sejam a matriz greco-latina, sejam os contemporâneos, sejam os experimentalistas que se reivindicam de um legado já mais que histórico e que os glosam criticamente, sejam as épocas da História e culturas que nos trouxeram essa convivência da criação humana com o profundamente humano e belo, sejam as culturas “naturais”, as culturas étnicas universais, que agora nos dizem que uma relação equilibrada e ecológica com o mundo natural é essencial à sobrevivência humana e planetária;

15, os meios e equipamentos que uma cidade detém por tradição assumida, ou por criação mais recente, existem sempre para ser instrumentos de uma perspectiva socializada de intervenção artística cidadã, não há artista fechado em si, não há museu que não deva reinventar o seu espólio em vez de apenas o conservar como quem conserva sardinha em lata, não há escola que não deva intervir na cidade, não há estrutura de criação que não queira esse mundo rico de todas as conexões dinamizadas com a sociedade para criar essa outra cidade chamada “mudámos para diferente e melhor e vamos continuar a mudar”, no sentido de uma maior liberdade de existência relacional das pessoas entre si e da comunidade como tal.

25/01/2022

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Fernando Mora Ramos

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