“Voltar” a Mário Sacramento
Foi breve a vida de Mário Sacramento (1920-1969). Ensaísta, escritor, “médico dos pobres”, combatente incansável pela Liberdade, foi detido pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), por cinco vezes. Na primeira, ainda era adolescente, quando integrava a associação de estudantes do Liceu de Aveiro; e a última em 1962.
O livro Frátria – Diálogo Com os Católicos (Ou Talvez não), publicado em 1970 (pela Editorial Inova), reúne o pensamento político e filosófico de Mário Sacramento e o debate que então travou com Mário da Rocha (1967-1969) sobre “o papel dos católicos e do movimento eclesial na evolução política” do país.
Já os Ensaios de Domingo (em 1959, em 1974 e em 1990), parcialmente editados após a sua morte, testemunham a importância da sua voz no ensaio literário. Uma importância sublinhada pelo professor Óscar Lopes (1917-2013) nestes termos: “Contêm das melhores reflexões e, mesmo literariamente, das melhores páginas de Mário Sacramento. […] Toda a sua obra de escritor foi arrancada às horas de descanso e de sono. Toda a sua obra de crítico e ensaísta situa-se lá onde os juízos e as interpretações são difíceis, lá onde é quase impossível evitar o erro, lá onde é preciso ponderar justamente todos os mais altos valores humanos, onde nos angustiamos perante contradições nem sempre resolúveis, lá onde é preciso acompanhar um artista e onde, ao mesmo tempo, se quer ser, quanto possível, um homem de ciência e um lutador por aquela melhor forma contingente mas exequível de democracia e de socialismo que convém aos portugueses, tal como historicamente se fizeram, tal como as circunstâncias o permitiram.”
É esta obra maior que agora é revisitada na exposição “Voltar – Mário Sacramento: a hora do Ensaio”, patente, desde 4 de Junho e até 30 de Outubro, no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira. Com curadoria de António Pedro Pita e de Odete Belo, a mostra “propõe a (re)descoberta de um pensamento teórico e prático, no período cronológico em que se desenvolveu e muito relevante para entender as aspirações e os problemas, as tensões e as possibilidades, os obstáculos e os impasses que marcaram o século XX português”.
A exposição resulta, como escreve o académico António Pedro Pita, em grande parte, de “pesquisa no espólio do ensaísta”. Para este professor catedrático da Universidade de Coimbra, que foi diretor científico do Museu do Neo-Realismo (entre 2014 e 2017), tal investigação sonda “tumultuosas profundidades, recupera a voz de Mário Sacramento, sugere a mesa do trabalho teórico: artigos e apontamentos, anotações em livro, desenhos, sucessivas reformulações de textos entretanto publicados, interlocuções decisivas, a extensão no tempo de uma maturação relativamente frustrada, verso e reverso de uma situação dramática: um intelectual português que adentra problemas centrais da sua época sem condições para elaborar integralmente as respostas entretanto intuídas. O regresso de Mário Sacramento permite revisitar, para repensá-lo, esse drama que marcou o século XX”.
A importância da obra de Mário Sacramento é singularmente retratada pela investigadora Eunice Malaquias Vouillot, no seu livro Mário Sacramento (1920-1969) Vida e pensamento – Sementes de Liberdade, com a chancela da editora Campo da Comunicação (em 2011). O livro resulta da tese de doutoramento apresentada por Vouillot, na Universidade Sorbonne (em Paris), no ano de 2002
Durante a apresentação deste livro de Eunice Malaquias Vouillot, António Pedro Pita considerou o Diário de Mário Sacramento como uma das obras de “maior amargura histórica do século XX”. “O percurso de Mário Sarmento deve ser lido e elucidado pelo seu Diário, um percurso compulsivo, violento, trágico, amargo”, sublinhou, então, o catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Mário Sacramento morreu sem conhecer a “cor da liberdade” – assim invocada por Jorge de Sena (1919-1978) –, pela qual tanto pugnou. Visitar a exposição “Voltar” é um primeiro passo para nos reencontrarmos com a sua obra e com o seu exemplar combate contra a ditadura salazarista. Temos a obrigação de o manter vivo.
Refira-se que o centenário do nascimento foi assinalado, em 2020, com a atribuição da Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, com o descerramento de uma placa evocativa no edifício onde teve o seu consultório (na Avenida Dr. Lourenço Peixinho, em Aveiro) e com uma exposição na sede da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto.
A tempo, a UNICEPE – Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto vai promover uma visita guiada à exposição no próximo mês de Outubro, em data a confimar. Podem participar todos os interessados, associados ou não da UNICEPE, que em breve disponibilizará as condições no seu sítio electrónico: https://www.unicepe.pt/ e em https://www.facebook.com/search/top?q=unicepe%20-%20cooperativa%20livreira%20de%20estudantes%20do%20porto%2C%20crl
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Fontes consultadas:
Correio do Vouga, Antifascistas da Resistência, Infopedia.pt, http://silenciosememorias.blogspot.com/2016/04/1422-mario-sacramento-v.html
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“Nasci e vivi num mundo de inferno”
Mário Emílio de Morais Sacramento, nasceu em 1920, em Ílhavo e faleceu em 1969, em Aveiro. Frequentou as faculdades de Medicina de Coimbra, do Porto e de Lisboa e especializou-se em Gastrenterologia, em Paris.
Mário Sacramento fez os estudos secundários no Liceu Nacional de Aveiro, onde se destacou como activista estudantil e director do jornal A Voz Académica, sob a orientação de Agostinho da Silva e José Pereira Tavares.
Foi em A Voz Académica que assinou os seus primeiros textos de rigorosa exigência e fortemente críticos, que marcam toda a sua obra. Em Aveiro, aproximou-se de personalidades acossadas e dos jovens socialmente mais frágeis. Ensinou Esperanto e conheceu a sua primeira prisão pela PIDE, em 1938, aos 17 anos de idade.
Militante do Partido Comunista Português, participou no Movimento de Unidade Democrática. Colaborou em jornais, revistas e páginas literárias, tendo publicado diversas obras, entre as quais Retrato de Eça de Queirós (em 1944), Fernando Pessoa – Poeta da Hora Absurda (em 1953), Lendo Raul Brandão (em 1967), Fernando Namora – O Homem e a Obra (em 1967) e Uma Estética Neorrealista? (em 1968).
Os periódicos Diálogo, O Diabo, Sol Nascente, Vértice, O Comércio do Porto, Diário de Lisboa e Seara Nova foram revistas e jornais onde Mário Sacramento publicou as suas críticas literárias e ensaios.
Figura central da comissão promotora do Primeiro Congresso Republicano, no ano de 1957, em Aveiro, liderou a organização do Segundo Congresso Republicano, também realizado naquela cidade. Mário Sacramento faleceu pouco antes, ceifado por um acidente vascular cerebral e minado por lesões pulmonares que o isolaram no Caramulo e o levaram a redigir uma carta-testamento editada, postumamente, pela Editorial Inova (em 1973).
A carta, cuja transcrição publico integralmente no final desta pequena nota biográfica, foi deixada por Mário Sacramento em envelope fechado e com a indicação: “Para ser aberto quando eu morrer.” Eis a carta-testamento:
Caramulo, Pousada de S. Lourenço,
7 de Abril de 1967
Aos mais adiados…
Vai sendo tempo de escrever uma carta de despedida! A velha carcaça é já uma ruína nítida. A somar às cicatrizes das lesões pulmonares que tive, há bronquiectasias e zonas de enfisema do impossível fumador que sou, as quais hão-de vir a resultar num coração pulmonar. A tensão mínima já começa a ressentir-se disso. O rim deita vestígios acentuados de albumina e cilindros. E o estômago tem qualquer coisa que um destes dias hei-de averiguar… Como não posso nem devo emagrecer excessivamente – são os próprios colegas que mo dizem –, dado o perigo de reactivação das antigas lesões bacilares, o peso é também um contra. E, como deixar de fumar, nesta idade, além de ser um sacrifício inglório que me roubaria um dos poucos apegos concretos que ainda tenho à vida, seria levar-me a engordar ainda mais, o balanço é portanto muito nítido. Quantos anos? Depois dos cinquenta acaba-se, estou convencido. Mais erro, menos erro, a média deve ser essa.
Começo por isso a ter pressa de fazer umas tantas coisas que reservei para a fase final, quando a terrível batalha que travei na sobrevivência contra o fascismo me deixasse, à margem desta profissão cujas dificuldades e condicionamentos económicos, sociais e políticos liquidaram tantos dos meus sonhos, margem para isso. Espero roubar, sempre que possa, alguns dias à labuta e à engrenagem diária e isolar-me, como agora fiz, para escrever qualquer coisa de mais íntimo. Para o romance cíclico que trago há tantos anos na cabeça, não chegará o tempo, decerto. E é melhor assim, pois evito uma desilusão e sempre morrerei com o arzinho angustiado de vítima dum mau destino, o que é chique, como diria o Eça…
Antes de tudo, impõe-se, porém, que escreva estas singelas palavras. Quem pode afiançar-me que não vou acabar hemiplégico e afásico, como minha Mãe? Deixa aqui, então, o que depois não poderás!
Deixar cheira a testamento. E eu, que deixe, só tenho o corpo. Por mais que fizesse, por mais que me fizessem, disso é que nunca consegui ser espoliado! E, como é com ele que me avenho nas noites de insónia e nas porfias diárias, é justo que lhe dedique, ao menos, um pensamento em vida. E não o legue aos cães… Pois não equivaleria a isso estar a ver-me, daqui, de barba feita a posteriori, sapatos engraxados, fato de ver a Deus, a apresentar as minhas despedidas, muito formalizado, de dentro da cabine – especial? Como não tenciono ir para parte nenhuma, metam-me como eu estiver no caixote mais barato que encontrem e devolvam-me os restos à terra. A terra sabe lavar-se. E não há nada como um cadáver «limpo» para marcar um limite.
Se morresse em localidade com forno crematório, não desgostava disso, se não fosse caro. E, por falar em caro: não sei se a terra será o mais barato para o caso, – ó contradições do capitalismo! E, como isto de morrer também «custa» aos outros, há que prevê-lo. A família tem uma pirâmide egípcia em Ílhavo. Embora eu esteja farto de conhecer prisões em vida, como nessa altura quem terá de aguentar isso é «o outro», não me oponho a ir para lá, se for mais económico ou mais fácil de arrumar. Não faço questões nenhumas com a morte… Ela nega-me, e é tudo. A grande magana!
Não, o motivo fundamental desta carta é outro. Aceitei dialogar, nestes últimos tempos, com os católicos. Se tivesse nascido num país protestante ou árabe ou budista, tê-lo-ia feito com esses. Pois do que se tratava – se trata, ó morto-vivo!, ainda não acabaste! – era, é de dialogar com os progressistas e, sobretudo, com o povo, directa ou indirectamente. Não há-de faltar contudo – sempre assim foi, ó alminhas santas! – quem procure fazer sujeira com isso e aproveitar-se duma ambiguidade que surja para me denegrir a memória. Se a minha Mulher ainda estiver viva – ela tem sido boa companheira! Não haverá problemas com isso, estou convencido. E o mesmo se dará se os filhos estiverem atentos: eles têm carácter. Mas quem pode prever tudo? Não que eu faça grande questão do meu bom nome: estou-me nas tintas para ele, depois de morto. Mas, além dele pertencer aos meus companheiros de jornada. E, que diabo, se passei tantos maus bocados por eles, em vida, é porque considerei que era esse o meu destino. E um homem tem o direito de o defender, mesmo depois de morto!
Fica portanto entendido que sou ateu e como ateu devo ser enterrado. Em vez dum pano preto, ponham um paninho vermelho no caixote, se puderem. E usem luto vermelho, se algum quiserem usar…
Mesmo que eu ficasse pílulas ou sugestionável à hora da morte, isso não modificaria ser esta a minha opinião responsável. É esta, por conseguinte, a única válida.
Claro está que gostaria de ter sido melhor homem, melhor marido e melhor pai. A perspectiva da morte só tem de positivo fazer-nos pensar assim. Mas o homem é um bicho complicado. E eu tenho a consciência de que pelo menos, me bati sempre comigo mesmo para ser melhor do que poderia ter sido. Fui amigo da família à minha maneira: sem efusões líricas ou rodriguinhos. E, se não fiz mais por ela, foi porque não pude, tanto no sentido social como psicológico do verbo. A prova de que o meu desejo era ser bom marido e bom pai está no muito que li, pensei e escrevi sobre isso. Sejam os Filhos melhores do que eu pude – foi sempre esse o meu sentido de missão.
Nasci e vivi num mundo de inferno. Há dezenas de anos que sofro, na minha carne e no meu espírito, o fascismo. Recebi dele perseguições de toda a ordem – físicas, económicas, profissionais, intelectuais, morais.
Mas, que não as tivesse sofrido, o meu dever era combatê-lo. O fascismo é o fim da pré-história do homem. E procede, por isso, como um gangster encurralado. Fiz o que pude para me libertar, e aos outros, dele. É essa a única herança que deixo aos meus Filhos e aos meus Companheiros. Acabem a obra! Derrubem o fascismo, se nós não o pudermos fazer antes! Instaurem uma sociedade humana! Promovam o socialismo, mas promovam-no cientificamente, sem dogmatismos sectários, sem radicalismos pequeno-burgueses! Aprendam com os erros do passado. E lembrem-se de que nós, os mortos, iremos, nisso, ao vosso lado!
Não veremos o que quisemos, mas quisemos o que vimos. E este querer é um imperativo histórico. Há milhões de mortos a dizer-vos: avante!
Para a Mulher, um abraço, simples e esquivo como eu sempre fui. Para os Filhos, um beijo, frio e recalcado como eu sempre lhes dei. Para todos, um afecto. Quem tinha tão pouco que dar a tantos, teve de ser avaro… Mas morre convencido de que não guardou nada para si. Ou de que teve, pelo menos, essa intenção.
Façam o mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!
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Alcino Soutinho desenhou edifício
O Museu do Neo-Realismo (MNR), nas actuais instalações, foi inaugurado no dia 20 de Outubro de 2007. O edifício tem a assinatura do arquitecto Alcino Soutinho (1930-2013).
A ideia de criar um museu dedicado ao neorrealismo nasceu em Vila Franca de Xira, na década de oitenta do século XX. Protagonizada por um grupo de intelectuais, foi concretizada através da criação da Comissão Instaladora do Museu do Neo-Realismo e da Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo.
O MNR tem como função “incorporar, preservar e dar a conhecer o trabalho dos artistas e escritores neorrealistas, preservando a memória do que foi o movimento neorrealista, um dos mais importantes da história e da arte portuguesa do século XX”.
As novas gerações de artistas, a produção artística e literária contemporânea também figuram na programação do Museu. O MNR situa-se, assim, e cada vez mais, no “território das ideias e da cultura do século XXI”.
22/08/2022