O sabor agridoce de um serviço decomposto

 O sabor agridoce de um serviço decomposto

(Créditos fotográficos: Marco Dias Roque)

Tenho um grande fascínio pelas fotografias e pelos vídeos de voos, na década de 1970. Mostram aviões com espaço para esticar as pernas, serviços de comida luxuosos, salas de estar aéreas onde se podia passar uma viagem relaxada. Utilizo esta imagem – embora seja provável que a realidade fosse menos risonha – para ilustrar uma época em que um serviço era completo e não aparecia dividido em pequenas partes, cada uma com um custo extra. Comparemos com um voo de hoje. Pesquisamos pela oferta mais barata e encontramos um preço agradável. Tentamos comprar. No meio de publicidades e de “extras” aparece uma opção para adicionar bagagem. Levar roupa costuma dar jeito, por isso clicamos no botão. O preço duplica, devido a algo que devia ser parte da oferta básica. E não ficamos por aí. Ter mais espaço, ir ao lado da família, tudo tem um custo extra. Atualmente, até pela bagagem de mão se paga.

Voar de avião nos anos de 1970. (quantocustaviajar.com)

O mesmo acontece na indústria hoteleira, em que esperamos ser recebidos com cortesia, dormir em bons quartos, ter um serviço de alto nível e bom trato. Contudo, estas coisas são, cada vez mais, um luxo. Foram desaparecendo as receções, os quartos são reduzidos ao mínimo tamanho possível, o pequeno-almoço continental (pago à parte) é uma piada de mau gosto entre pão de forma do supermercado e ovos mexidos mal aquecidos. Aliás, já nem vamos a hotéis, optamos por ficar em casas de estranhos, em airbnbs que até costumavam estar bastante em conta, mas que, agora, custam o mesmo que um hotel. Em casa, as coisas também não melhoram. Depois de um sucesso vertiginoso, os serviços de streaming, que ultrapassaram a TV por cabo, ao oferecerem tudo de uma só vez aos clientes, cedem à tentação do lucro e acabam por ter canais de subscrição extra que são retalhos do que se oferecia em pacote. São decomposições de serviços integrais desnecessárias, divisões motivadas pela ganância.

(comparaja.pt)

Onde esta “atomização” de serviços em desfavor do cliente me dói mais é na restauração. A comida é vida. E comer fora é dos maiores prazeres que podemos ter. Porém, já há restaurantes que nem empregados têm. Em vez de uma pessoa, somos recebidos por um código QR, em que utilizamos os nossos dados móveis para pedir comida numa página web. Um pedido que passa pelo ciberespaço para aparecer num papel à frente de um cozinheiro uns metros ao lado. E, pior, pelo menos em Londres: em cima do preço absurdo dos pratos, mesmo sem atenção humana, alguns restaurantes acrescentam automaticamente gorjetas à conta. Taxas de serviço mesmo sem ninguém a prestá-lo.

(quantocustaviajar.com)

Na sua forma mais simples, um serviço é uma troca entre duas pessoas. Uma pessoa faz algo e recebe outra coisa. Com a evolução da sociedade, estas trocas tornam-se mais abstratas: trocamos o nosso tempo (trabalho) por algo imaterial (dinheiro), que transformamos em coisas que queremos, fornecidas por empresas (que também não existem fisicamente) e não por indivíduos. Ou seja, a parte humana é desvalorizada, mas continua a ser o que necessitamos. Esforçamo-nos para ganhar dinheiro que, depois, queremos gastar em coisas que nos façam sentir bem. Por isso, quando comemos num restaurante ou fazemos uma viagem, esperamos por experiências que nos alegrem.

(vendus.pt)

Ao dividir estas experiências para monetizar cada parte, o neoliberalismo diminui os pequenos prazeres da vida. Comodificar tudo diminui a qualidade de vida, porque sentimos que nos tentam sugar cada cêntimo. A evolução dos serviços não tem de ser má. Afinal, viajar de avião é mais barato hoje que na década de 70. O problema é quando se cruza esta linha, em que uma ideia boa (reduzir extras para sugerir ofertas mais apetecíveis) se transforma em puro aproveitamento. Criar valor a partir de elementos básicos penaliza tanto o comprador como a empresa, porque uma empresa é composta por pessoas, que terão algum orgulho no que fazem. Reduzir as suas atividades a meras linhas numa conta deixa um mau sabor dos dois lados. E as experiências passam de alegres a agridoces.

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09/05/2024

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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