A América Latina e os Estados Unidos

EUA e América Latina: vale a Doutrina Monroe ou o Destino Manifesto. (Créditos de imagem: Pátria Latina – brasil247.com)
Estou fazendo o curso da Camila Vidal, no IELA (Instituto de Estudos Latino-Americanos, da Universidade Federal de Santa Catarina, no Brasil), sobre as Intervenções dos Estados Unidos na América Latina. E, confesso que, no final de cada aula, saio completamente deprimida. Não pela aula, que é sempre ótima, mas pelas informações. A proposta do curso, que começou no ano passado, é a de desvelar, com riqueza de detalhes, cada intervenção dos Estados Unidos nos países da Pátria Grande1, desde o roubo das terras mexicanas, primeiro conflito gerado pelo famoso Destino Manifesto2, até aos nossos dias.
E o que causa a profunda tristeza é observar que, nesses conflitos de invasão explícita ou de geração de golpes, a conversinha é sempre a mesma: levar a democracia e o desenvolvimento aos países bárbaros. É um eterno retorno. Basta que o país se desloque, mesmo que bem pouquinho, da órbita dos Estados Unidos da América (EUA) para que comece a sofrer as consequências. As formas de ataque também são sempre as mesmas: embargos, bloqueios econômicos, campanha midiática sobre um suposto perigo de comunismo, financiamento de grupos de “oposição” (armados ou não) e invasão direta.

(Créditos fotográficos: Getty Images – bbc.com/portuguese)
No geral, a situação que motiva o ataque dos EUA é, igualmente, sempre a mesma. Um governo mais à esquerda ou um governo algo progressista que comece a mudar a lógica, garantindo a educação, a saúde, a moradia e seguranças ao povo, passa a ser visto como perigoso. E, se não se aliar aos EUA nos seus interesses, já vira inimigo. Mas, se for além, buscando garantir soberania nas ações e na exploração das suas riquezas, aí vira o próprio demônio. É hora de o império agir. O começo de tudo vem pela campanha de propaganda contra o país. A mídia mundial embarca na canoa, divulgando as notícias produzidas pelas agências dos EUA, como se ali estivesse a verdade. Principia então o desenho do “monstro”. E não importa que esse monstro tenha sido amigo e formado pelos Estados Unidos, como foi o caso de Manuel Noriega, no Panamá, ou Saddam Hussein, no Iraque. Saiu um pouco da rota, está na fogueira. No geral, o problema principal detectado é uma “tendência ao comunismo”. Começou a oferecer educação, serviços públicos de qualidade, usar os recursos nacionais para desenvolver o país, pronto, virou comunista. E o comunismo é, aí, colocado como algo ruim. Sendo que não é! Na verdade, o comunismo é quase uma sociedade perfeita, em que cada um ganha conforme o que necessita e atua na sociedade para o bem de todos. Pois, isso é um perigo para os que dominam, então, há que demonizar.

E assim vamos indo, estudando a História de cada um dos nossos países da América Latina: o México, na parte norte; a América Central com todo o drama da violência, dos genocídios e da migração presente em cada país; o Caribe e a sua pobreza endêmica, apesar da exuberante riqueza natural que o faz paraíso dos ricos; e a nossa América do Sul, com sua a sua História de traições, de golpes militares, de golpes parlamentares e de golpes midiáticos. Não escapa um. Cada país abaixo do rio Bravo já sofreu a intervenção do império, seja diretamente ou fomentando traições internas. É batata! Nenhum bem pode vir para a maioria da população. Há que manter a massa no arrocho (ou no aperto) e garantir a maior taxa de lucro para o 1% que domina. Saiu disso, está morto!
Nesse universo infernal, produzido pelos Estados Unidos, o único país que se mantém firme é Cuba, a pequena ilha caribenha que enfrenta, há mais de 60 anos, o ataque ininterrupto do império. É absolutamente fantástico que consigam manter a revolução e as conquistas que vieram depois dela, apesar de tanto ataque. O povo cubano é, deveras, extraordinário! Afinal, é submetido a um bombardeio midiático diário e sofre um embargo econômico criminoso. Apesar disso, o povo da ilha se reinventa e resiste, valentemente.

Mas, no que diz respeito aos demais países, o “eterno retorno” é lei. Passam anos de ditadura, de governos autoritários ou neoliberais e, quando a população finalmente se propõe a mudar e elege alguém menos alinhado aos interesses estadunidenses, lá vem a máquina imperialista, a “Estrela da Morte”, com todo o seu arsenal ideológico e militar.
Só na História contemporânea, podemos citar a Venezuela e o golpe armado, em 2002, contra Hugo Chávez; a deposição de Jean-Bertrand Aristide, no Haiti, em 2004, criando esse caos que não tem fim no país; o golpe nas Honduras, em 2009, que deixou um rastro de sangue; a queda do presidente Fernando Lugo, no Paraguai, para o retorno da velha oligarquia; a queda de Dilma Rousseff, em 2016, no Brasil, que levou à tragédia que constituiu o governo de Jair Bolsonaro; o golpe contra Evo Morales, em 2019, na Bolívia; e a queda de José Pedro Castillo em 2022, no Peru; bem como as tramas na América Central para impedir que ideias mais arejadas pudessem assomar, com o sistemático assassinato de lideranças de lutas populares e ambientais. E por aí vai!

É claro que, numa análise mais acurada, a gente vai perceber que, internamente, nos países há erros e equívocos praticados pelos governantes, o que torna a ação imperial ainda mais fácil de ser efetivada. Mas, o que não se pode deixar de perceber é que os EUA estão sempre ali, como uma águia assassina a esperar a hora de comer os olhos dos governantes – e da população – que ousarem sair da linha. Volto a referir o caso de Cuba, cujo carismático presidente, Fidel Castro, chegou a sofrer mais de 600 tentativas de assassinato. Sobreviveu a todas e, para azar do império norte-americano, morreu velhinho, no aconchego do lar, do jeito que quis, amado pelo povo. De novo, um exemplo solitário nesse mar de podridão criado pelos Estados Unidos em toda a nossa Pátria Grande4.
O facto é que, no capitalismo – cuja locomotiva ainda é os EUA (também a China e a Rússia disputam o cargo), resistir a esse modelo que garante riqueza e vida boa a, apenas, 1% da população é uma tarefa gigantesca. As populações lutam com o que podem: somente, os seus corpos nus. Como enfrentar a máquina gigantesca da guerra? Lembro-me da invasão do Panamá, em 1989, quando uma força de milhares de soldados estadunidenses bombardeou a capital de maneira feroz e rápida, impedindo qualquer reação, deixando centenas de mortos e arrasando bairros inteiros. Tudo isso para levar “democracia”.
É por isso que as aulas da Camila Vidal (no IELA) entristecem e deprimem. Porque é sempre a mesma coisa: estudamos os mesmos discursos, as mesmas justificativas, o mesmo diapasão. O “eterno retorno”.

Ainda assim, mesmo observando o rosto dos estudantes e sua estupefação ao conhecerem a verdade sobre os factos, a gente ainda se anima. O conhecimento transforma. O conhecimento move, faz reagir. Por isso, é tão necessário que se saiba como atua o império, para que se possa encontrar, como os Cubanos, o caminho da vitória. Como se vê, eles – os assassinos estadunidenses – não são invencíveis: perderam no Vietname, em Cuba, no Iraque, no Afeganistão…

Tal como no famoso filme de aventura, a Estrela da Morte5 tem seu ponto fraco. Há que encontrar a forma de chegar lá. E os povos estão em luta. É assim no Haiti, no Peru, no Paraguai, no Brasil, na Guatemala, em El Salvador, enfim, em cada pequeno cantinho desta nossa América. Haveremos de quebrar esse eterno retorno tal como sonhou Simón Bolívar e, recentemente, Hugo Chávez.
Por enquanto, vamos conhecendo, estudando e lutando.
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Notas da Redacção:
1 – “Pátria Grande” é um conceito político que se refere, em princípio, à federalização dos estados da América hispânica, constituindo uma só unidade política ou Estado. Como regista a Wikipédia, trata-se de uma ampliação do conceito de “pátria” para toda a América espanhola ou, por vezes, toda a América Latina e o Caribe.
2 – Nume breve consulta na Wikipédia, lemos que, no século XIX, a doutrina do destino manifesto (em Inglês: Manifest Destiny) era uma crença comum entre os habitantes dos Estados Unidos considerando que os colonizadores americanos se deveriam expandir pela América do Norte. Essa forma de pensar expressa a crença de que o povo americano foi eleito por Deus para civilizar o seu continente.
3 – Expressão que, na gíria, é usada quando algo é certo, para dizer que uma coisa é certa de acontecer; ou que alguma coisa é fácil.
4 – “Pátria Grande” é, como regista a Wikipédia, um conceito político que se refere, em princípio, à federalização dos estados da América hispânica, constituindo uma só unidade política ou Estado. Estamos perante uma ampliação do conceito de “pátria” para toda a América espanhola ou, por vezes, toda a América Latina e o Caribe. Este conceito é atribuído ao argentino Manuel Ugarte, que o popularizou em 1922, no seu livro “La patria grande”.
5 – A estrela da morte é a maior arma do Império no primeiro filme da saga “Star Wars”. Todavia, mesmo essa imensa fortaleza possui o seu ponto fraco: uma saída de exaustão térmica que se liga ao reactor da nave.
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Nota do Director:
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06/03/2023