A dor do Mundo
Começo por citar Walter Benjamin: “A dor é para o ser humano, por assim dizer, um grande rio navegável, com água que nunca seca e que o conduz ao mar.” Outro filósofo, Ernst Junger, lançou o desafio com “diz-me qual a tua relação com a dor, e eu dir-te-ei quem és”. E, finalmente, Byung-Chul Han, defende que “toda a crítica social tem de oferecer uma hermenêutica da dor”. Escolhi estes autores para ancorar no plano da filosofia política o conceito de “desigualdade”. Desde que o capitalismo se estabeleceu que a dor do século XX se tornou o epítome da desigualdade.
O “There is no alternative” (TINA) de Margareth Tatcher foi um momento de glorificação política dessa dor. Se, já antes dela, o Mundo estava coberto de dor com os milhões que deambulavam por aí em busca de alívio para o seu sofrimento; depois dela, a descrença nos governantes atingiu já a liberdade de existir. Quando ainda pensavam nele como alívio para os gritos dos pobres, o que designam por centro político não passa de uma ratoeira para a dor social. A visão dominante de que é melhor lançar mão de analgésicos de curta duração, que estão disseminados por tudo o que tocamos e vemos, mascara as feridas sistémicas e as entorses da sociedade.
Consoante se pretenda explicar a desigualdade social como sendo decorrente da propriedade dos meios de produção ou de privilégios herdados, assim as estratégias para a eliminar, num caso, ou diminuir, noutro, são diferentes. Nos actuais regimes políticos da Europa Ocidental, nomeadamente, do que se tem tratado, sejam os governos de direita ou social-democratas, é de ocultar a oposição entre classes sociais, de que uma das manifestações é a tendência para valorizar o consenso, que seria o sucedâneo neoliberal e metafórico do corporativismo. Ambos, no entanto, reivindicam a igualdade de oportunidades como principal instrumento para estreitar as distâncias entre elas.
Se a estratégia não tem resultado, é porque o ponto de partida é, também ele, desigual. E essa diferença, além da distância a percorrer, contém diferentes graus de dificuldade e armadilhas – família, escolaridade, profissão, emprego, remuneração, estado de saúde – para que a mobilidade social ascendente se concretize. Porém, estando a estratégia da igualdade limitada à oportunidade, a qual não passa de um mecanismo competitivo, as vagas disponíveis para a classe social seguinte são sempre inferiores ao volume de candidatos. O que a igualdade de oportunidades faz é perpetuar as desigualdades sociais, sem atender às circunstâncias desiguais de cada um, sendo, por conseguinte, um teste laboratorial. Licenciados a desempenhar tarefas indiferenciadas, não é uma igualdade horizontal, é uma utilidade empresarial e um desperdício social. É da tensão entre equidade e igualdade de oportunidade que nasce a frustração, e com ela a pobreza, que, há muito, deixou de ser um assunto literário para se tornar na expressão extrema das desigualdades e do conflito de classes, gerado por interesses opostos de quem detém e de quem alimenta a propriedade dos bens e das alfaias.
Ela é o que fica de cada dia de combate por condições de vida justas, sendo que a justiça há-de ser expressa pela ausência de pobreza, por nenhum governante ter de fazer contas ao quanto do valor do bem-estar ficou por distribuir. Se, em cada acontecimento, a desigualdade está invariavelmente presente, havemos de poder concluir que está em quem detém o poder a capacidade para distribuir de outra maneira a riqueza gerada por quem trabalha. É na composição desse poder que está a chave. E só o distribuindo por todos é que a desigualdade poderá ver chegado o fim os seus dias. Até lá, pensar que quem distribui a riqueza abdica desse poder sem se opor, é criar ilusões quanto às medidas a tomar para progredir e influenciar o curso dos acontecimentos.
Considerando as condições que estão invariavelmente presentes nas desigualdades sociais, caberá ao Estado criar os mecanismos para que todos tenham acesso aos bens que se adequem às aspirações que as comunidades ajuízem como as desejáveis para o bem-estar de todos e de cada um. Contudo, sendo as condições sociais as que mais exigem da contribuição do Estado, este há-de reconhecer que será na governação integrada e inclusiva que reside o método para o aproveitamento integral e eficiente dos recursos.
É que parte das desigualdades decorre de recursos que foram utilizados em bens supérfluos ou desperdiçados por ausência de causa, ou por mau planeamento. Os governantes hão-de ser um posto de escuta e de decisão permanente. O que fazem, fazem-no porque assim exigem os que os escolheram, daí que o governo do Estado seja um sistema e não uma estrutura, no caso de terem o bem-estar dos cidadãos como a principal razão do exercício governativo. E a razão de ser de um sistema é a de que o que está a fazer falta aqui impede que se progrida noutro sítio.
Os determinantes da justiça social, mais do que articulados intersectorialmente, desejam-se integrados. As desigualdades contribuem para que o desenvolvimento desigual da sociedade se expresse nos valores do IDH (índice de desenvolvimento humano) e no coeficiente de desigualdade S80/20, sínteses métricas dessas desigualdades. Governar sem ter em vista um objectivo verificável e mensurável é agir ao sabor dos acontecimentos, os quais, pela atenção que despertam, absorvem as energias que deviam estar reservadas para o empreendimento principal. Administrar os interesses sectoriais, sendo necessário não os perder de vista, deverá a constituir a fracção da governação que servirá para facilitar a aplicação de soluções inscritas na melhoria da justiça social.
Será no equilíbrio equitativo da aplicação das medidas sociais que o objectivo se pode concretizar, passar de um percentil a outro mais favorável. O conteúdo da sua forma é feito da matéria reclamada por cada um, mas que só colectivamente tem nome. Este tipo de governação não tem prioridades, tem soluções: as respostas são as contribuições para o que, antecipadamente, ficou contratado. Tratando-se da defesa da equidade, em que a igualdade não se esgota na oportunidade – não se escolhe ser desigual –, as oportunidades, porque incertas e esquivas, deixam de contar dos planos de quem governa para se tornarem no vernáculo do discurso político, do que não é pronunciável.
Não devendo haver prioridades, existe, contudo, o travejamento da justiça social: o rendimento disponível das pessoas, o trabalho para adquirir o rendimento, a escolaridade para a ceder ao trabalho, a casa para habitar. Contudo, existem decorrências e condicionantes deles: a saúde, a segurança social e a justiça. Esta matriz passa de estrutura a sistema governativo, na medida em que as acções são interdependentes: cada uma alimenta e é alimentada pelas outras, o défice de uma explica o défice das outras e do todo.
Sintetiza-se, então, o que poderá alterar o sentido da injustiça social: a) associar a escolaridade, profissão, remuneração e habitação, fazendo do trabalho o “proxy” das remunerações, e adequando a escolaridade às profissões; b) a função de utilidade social das profissões representar o critério principal das remunerações; c) o rendimento disponível ser socialmente suficiente ao longo da vida, por forma a cobrir necessidades desiguais; d) a escola, além de ser o lugar de aprendizagem, deverá ser também o lugar de socialização intergeracional e de intervenção social; e) as comunidades locais deverão ter poder para intervir nas decisões sobre todas as soluções sociais.
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07/11/2024