A Espanha surpreende-nos

 A Espanha surpreende-nos

Nem o PP nem o PSOE conseguiram o número de deputados suficientes para alcançar a maioria absoluta, tida como necessária para formar Governo. (onovo.pt)

Afortunadamente e contra todas as sondagens, a aliança de extrema direita entre o Partido Popular (PP) e o Vox não conseguiu a maioria absoluta, no dia 23 de Julho. Assim, aparentemente, contra todos e todas (também todes como diriam os Asturianos), o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e a esquerda espanhola obtiveram (segundo dados do jornal El Pais, na edição de 25/07/23) 44% dos votos. Ou seja, quase 2%  a mais do que nas últimas eleições, em 2019. A direita também cresce, mas é de assinalar a aparatosa queda de 19 assentos (deputados) no parlamento por parte do partido de ultradireita Vox.

(Créditos fotográficos: Vox/Flickr – esquerda.net)

Nem de propósito, quando eu regressava a Portugal, a companhia aérea Iberia oferece-me, no ecrã individual, um espaço recheado de programação só com filmes espanhóis, e entre os seleccionados, “Modelo 77” (ou “Prison 77”), cujo argumento se resume: Prisão Modelo. Barcelona, 1977. Manuel, um jovem contabilista, preso e a aguardar julgamento por fraude financeira, enfrenta uma pena de seis a oito anos, uma punição desproporcional para o crime cometido. Em conjunto com o seu companheiro de cela, Pino, ele une-se à COPEL1, um colectivo que luta pelos direitos dos presos comuns e pela amnistia. Uma história de amizade, de solidariedade e de liberdade, inspirada em factos reais. Uma guerra pela liberdade que deixará o sistema prisional espanhol de joelhos é o mote deste thriller tenso que reflecte um sistema prisional injusto, na linha de filmes como “Um Profeta” ou “O Expresso da Meia-Noite”.

(c7nema.net)

O filme “Modelo 77” é protagonizado por um actor de sucesso, Miguel Herrán (Miguel Ángel García de la Herrán, que também é motociclista), bastante conhecido por interpretar Dario, no filme “A cambio de nada”, de Aníbal Cortés. E, sobretudo, nas séries “Élite” e “La Casa de Papel”. O filme “Modelo 77” narra os acontecimentos que decorrem desde a entrada na cadeia do protagonista, entre os anos de 1976 e de 1978, que são os importantes anos da transição democrática de Espanha, bem como momentos de esperança para os presos de delito comum e para os presos políticos, colocados num mesmo ambiente carcerário, na prisão modelo de Barcelona, encerrada apenas em 2017. A democracia caminha lenta!

(filmow.com)

Como personagem principal, Manuel Gómez é um detido por delito comum, que, pouco a pouco, vai tomando consciência do meio que o rodeia, no qual os presos políticos, vindos de diferentes lugares de Espanha, lutarão, juntamente com ele, para alcançar uma meta comum: a amnistia ou um indulto para um castigo desproporcionado. Como espectadores, somos testemunhas de brutais espancamentos, de castigos arbitrários, de isolamentos, de rações miseráveis no que se refere à comida na prisăo e de falta de assistência médica.

Na cadeia, os prisioneiros assistem pela televisão, esperançados quanto à decisão das cortes espanholas, que sempre rejeitaram o processo de amnistia. Também somos testemunhas das últimas execuções do regime franquista, acontecidas em 27 de Setembro de 1975, quando cinco membros da ETA e da Frente Patriótica Antifascista Revolucionária (FRAP) foram executados, por fuzilamento2, enquanto acusados de assassinato.

Dada a impossibilidade de resolver os problemas da prisão, lutando democraticamente desde o interior, a solução é a fuga, retratada no final do filme, como aconteceu na realidade, no dia 2 de Junho de 1978.

(coolt.com)

Lembro-me perfeitamente (então, encontrava-me no Porto) dos acontecimentos que se seguiram aos fuzilamentos de 1975. Sobretudo, o assalto à embaixada espanhola em Lisboa e os actos de condenação no consulado espanhol, na cidade do Porto, na rua D. João IV, como se documenta detalhadamente no arquivo da RTP, em “O significado do assalto à embaixada de Espanha”, reforçando a ideia de que esse assalto constituiu “uma ameaça às relações Ibéricas e ao desanuviamento Leste-Oeste”.

Como, aqui, é descrito, na noite de 27 de Setembro de 1975, “a embaixada de Espanha em Lisboa foi alvo de um assalto na sequência de uma manifestação convocada por forças de extrema-esquerda como protesto pela execução de cinco nacionalistas bascos pelo regime franquista”. “Este assalto foi precedido pelo ataque e destruição das dependências dos serviços de Chancelaria e do Consulado, na Rua do Salitre”, prossegue o texto de enquadramento, dando-nos conta de que os manifestantes “destruíram aqui tudo o que se encontrava no interior e não podia ser lançado pelas janelas, para ser queimado em fogueiras na via pública”, os quais, posteriormente, se dirigiram “à Praça de Espanha, onde começaram por partir os vidros da embaixada, que foi depois assaltada, com o incêndio do recheio”.

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Notas:

1 – Coordinadora de Presos en Lucha (COPEL).

Edição do Le Progrès Illustré (suplemento
literário do Progrès de Lyon) que descreve as
execuções de anarquistas em Xeres, no
ano de 1892, pelo uso do garrote vil.

2 – A Constituição espanhola, de 1978, proíbe a pena de morte em Espanha. A Espanha aboliu completamente a pena de morte para todos os crimes, inclusive durante as condições de guerra, em Outubro de 1995.

As últimas execuções foram realizadas em 27 de Setembro de 1975, quando cinco membros da ETA e da Frente Patriótica Antifascista Revolucionária (FRAP) foram executados através de fuzilamento, por assassinato, após um julgamento muito divulgado, no qual vários condenados (incluindo uma mulher grávida) tiveram clemência por parte do general Francisco Franco. Refira-se que, como regista a Wikipédia, as sentenças dos cinco restantes, devido à indisponibilidade de carrascos peritos no uso da garrote, foram executadas por tiros. O estrangulamento por garrote passou a ser visto como um acto draconiano, após a sua última utilização, em 1974, quando Salvador Puig Antich foi executado em Barcelona e Heinz Chez em Tarragona.

A FRAP foi uma organização revolucionária espanhola radical antifranquista, marxista-leninista, que esteve activa na década de 1970.

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07/08/2023

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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