A matança do porco
Quando comecei a ter consciência do mundo à minha volta, já se não matava o porco em nossa casa. Isto porque havíamos mudado de residência e deixáramos de ter instalações adequadas, entre as quais a grande chaminé da cozinha para fumar os enchidos. Vivendo na cidade, tínhamos o talho, onde a carne fresca e de salgadeira, chouriços, linguiças e farinheiras estavam, diariamente, à nossa disposição.
Não matar o porco em casa não impediu que assistisse, muitas vezes, a este ritual de Inverno, vindo da Antiguidade através de sucessivas civilizações, em que o animal era oferecido, em sacrifício, aos deuses. Esta tradição é, hoje, interdita por uma legislação fabricada em Bruxelas, no seio da União Europeia, pelos mesmos citadinos que assistem, indiferentes, à expansão dos “fast food” e de muitos outros alimentos ditos de plástico. Para salvaguarda desse património cultural, há sempre, por essas aldeias, quem prevarique, aproveitando uma mais prolongada e providencial ausência da patrulha da Guarda.
Depois de morto, chamuscado, raspado e lavado, havia que pendurá-lo, de cabeça para baixo, num chambaril suspenso por uma grossa corda, a uma trave do tecto. O chambaril é uma espécie de cruzeta, feita de um pau de azinho, em que se prendiam os fortíssimos tendões das patas traseiras do animal. Aberto e esventrado de tripas e demais entranhas, aguardava-se que a carcaça secasse e arrefecesse, após ter-lhe passado uma noite por cima. Só ao outro dia, de manhã cedo, o mesmo magarefe que o sangrara, armado de facas de vários usos, com um cutelo e um serrote, vinha desmanchá-lo e dividi-lo em porções, cada qual com o seu destino, que ia separando em alguidares de barro.
Com parte do sangue recolhido, de mistura com vinagre, para não coalhar, confeccionava-se a rechina, no que se consumiam as fressuras. Bem aromatizada com cominhos, servia-se logo nesse dia, ao almoço, com sopas de pão cortado às fatias finas e com rodelas de laranja, para desenjoar, constituindo o festim dos que sempre apareciam para ajudar e, também, para comer. O sangue restante era cozido e, depois de frio, cortado às fatias e temperado com azeite, vinagre e alho.
Das lides da matança, competia às mulheres cortar as carnes para os enchidos e temperá-las, de acordo com os destinos a dar-lhes, seleccionando-as para os paios, para as linguiças, para os chouriços e para as farinheiras. Só não se ocupavam desse trabalho as que, na ocasião, estivessem menstruadas, uma crença, como muitas outras, que ninguém explicava, mas que todas respeitavam.
Mantas de toucinho alto de uma mão-travessa, chispes inteiros, faceiras, orelhas e ossos eram acondicionados na salgadeira. Esvaziada do sal e dos restos amarelecidos da conserva do ano anterior, este baú de madeira, a ressumar salmoura antiga, era raspado e lavado para receber o sal novo, cristalino e branco de neve, para conservar, por mais um ano, a nova provisão. Havia sempre quem aproveitasse o toucinho velho que, embora com um leve pico de ranço, sempre dava jeito àqueles que o levavam. Uma lasquinha deste toucinho, bem raspado do sal, e uma rodela de cebola, dentro de duas grossas fatias de pão, faziam a ceia de um pobre, dizia-se.
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26/02/2024