A noite das surpresas
Entre as oito e as dezanove horas de 30 de Janeiro, juntaram-se três medos à boca das urnas. Análises mais detalhadas confirmarão se foram eles a explicar os resultados eleitorais desse domingo. O principal e mais importante medo foi causado pelo Partido Social Democrata (PSD), quando não se demarcou inequívoca e absolutamente do CHEGA, induzindo os eleitores a pensar que, no caso de vir a formar governo, aquele partido poderia vir a fazer um entendimento com a extrema-direita. Para esse medo deve ter contribuído a memória colectiva recente do que foram os quatro anos de governação de outro líder do PSD, Passos Coelho. A antiguidade de um acontecimento e a recentidade de outro, ambos protagonizados pelo mesmo partido, podem explicar a deslocação de uma parte significativa do eleitorado do Partido Comunista Português (PCP) e do Bloco de Esquerda (BE), mais de 338 mil votos, para o Partido Socialista (PS), de forma a impedir que tal acontecesse.
Esse deslizamento veio originar uma mudança estrutural da representação da esquerda no Parlamento, com a CDU (Coligação Democrática Unitária – PCP-PEV) a perder, relativamente a 2019, cerca de um terço do seu eleitorado (95 843 votos) e metade da sua representação parlamentar, e o BE a ficar sem metade do seu eleitorado (259 760 votos) e 14 dos 19 deputados. Embora não desempenhando aquele factor o mesmo papel à direita, esta sofre uma profunda alteração estrutural com uma fuga do seu eleitorado ainda mais para a direita, e assim se pode explicar o desaparecimento do Centro Democrático Social (CDS), a estagnação do PSD, que mesmo assim tem mais 4 090 votos, e as subidas significativas da Iniciativa Liberal (IL) e do CHEGA que, juntos, somam um crescimento de 518 450 votos e mais 18 deputados. Isto pode querer dizer que uma parte do eleitorado que se via mal representado pelo CDS, mas também pelo partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), viu na IL e no CHEGA as formações políticas que acomodavam melhor as suas aspirações. Se juntarmos a este grande medo os medos de virem a existir perturbações na política de combate à pandemia e um longo período de incerteza política, talvez possamos encontrar a explicação para a maioria absoluta do PS e a queda abrupta do BE e PCP.
Importante foi a constatação de que os dois campos, centro-esquerda e esquerda, por um lado, e direita e extrema-direita, por outro, não trocaram entre si eleitores. As mudanças verificadas realizaram-se no interior de cada campo. Mas enquanto à esquerda, tanto o BE como o PCP podem vir a recuperar da função utilidade que a sua votação teve, já à direita, o PSD, fruto da concorrência dos seus concorrentes à sua direita, dificilmente conseguirá ultrapassar o milhão e quinhentos mil votos numa próxima eleição. A aproximação ao PS, a verificar-se, será mais à custa do regresso do eleitorado aos respectivos partidos, BE e PCP, do que à conquista de eleitores aos IL e CHEGA. Porquê? Porque, dentro de quatro anos, o que passará a estar em causa são os resultados da governação do PS, que tanto o BE como o PCP reclamarão sempre que não se foi suficientemente longe, ao passo que toda a direita dirá que se foi longe demais. Ora, para a população, o que vale mais é a primeira reclamação.
Foram suficientes dois dias para o pó começar a assentar e o que era inquestionável em 29 de Janeiro, deixou de o ser a partir de 1 de Fevereiro. Os comentadores, na sua larga maioria, deixaram de fazer qualquer referência ao efeito do chumbo do Orçamento de Estado sobre os resultados eleitorais e passaram a adoptar a teoria do medo. E esta análise é partilhada tanto por comentadores de direita (Helena Matos, por exemplo) como de esquerda (Pedro Tadeu, por exemplo). Considere-se o relato que a agência noticiosa Lusa faz sobre o assunto no concelho de Avis: “João Domingos disse à Lusa que ‘o medo’ de que o PSD poderia vencer as eleições levou o eleitorado do concelho a votar no PS, o que é para si ‘uma novidade’ naquela região. O PCP com medo de que o PSD ganhasse as eleições votou PS, só por isso é que o PS ganhou”, considera. Mas, segundo o mesmo, tem a “certeza” de que, nas próximas eleições que ocorrerem em Avis, o PCP voltará a sair vencedor.”
A única excepção relevante a esta interpretação é a de Marques Mendes, que se mantém na promoção da teoria da culpabilização do eleitorado ao BE e ao PCP. Mas este comentador, é sabido, faz a vez de porta-voz informal do Presidente da República. O qual, deseja ardentemente que, mesmo com maioria absoluta, o próximo governo se afaste o mais possível daqueles dois partidos.
A explicação que está a ser predominante é a de que o PS funcionou, para muito eleitorado, como o chapéu-de-chuva onde se foram abrigar da trovoada política que um entendimento do PSD com a extrema-direita representaria. Como em muitas ocasiões durante a ditadura, mas também já em democracia, aquele foi um acto de resistência. De resistência a uma potencial reversibilidade do que foi feito no período em que vigoraram os acordos entre o PS, o BE, o PCP e os Verdes (PEV – Partido Ecologista “Os Verdes”). Por isso, os próximos quatro anos serão decisivos para as forças partidárias se organizarem de maneira a confirmarem esta explicação; que, passada a emergência, a vida regresse ao seu curso normal, com a influência real que cada uma daquelas forças partidárias tem na sociedade.
07/02/2022