A noite das surpresas

 A noite das surpresas

Krakenimages (Unsplash)

Entre as oito e as dezanove horas de 30 de Janeiro, juntaram-se três medos à boca das urnas. Análises mais detalhadas confirmarão se foram eles a explicar os resultados eleitorais desse domingo. O principal e mais importante medo foi causado pelo Partido Social Democrata (PSD), quando não se demarcou inequívoca e absolutamente do CHEGA, induzindo os eleitores a pensar que, no caso de vir a formar governo, aquele partido poderia vir a fazer um entendimento com a extrema-direita. Para esse medo deve ter contribuído a memória colectiva recente do que foram os quatro anos de governação de outro líder do PSD, Passos Coelho. A antiguidade de um acontecimento e a recentidade de outro, ambos protagonizados pelo mesmo partido, podem explicar a deslocação de uma parte significativa do eleitorado do Partido Comunista Português (PCP) e do Bloco de Esquerda (BE), mais de 338 mil votos, para o Partido Socialista (PS), de forma a impedir que tal acontecesse.

Esse deslizamento veio originar uma mudança estrutural da representação da esquerda no Parlamento, com a CDU (Coligação Democrática Unitária – PCP-PEV) a perder, relativamente a 2019, cerca de um terço do seu eleitorado (95 843 votos) e metade da sua representação parlamentar, e o BE a ficar sem metade do seu eleitorado (259 760 votos) e 14 dos 19 deputados. Embora não desempenhando aquele factor o mesmo papel à direita, esta sofre uma profunda alteração estrutural com uma fuga do seu eleitorado ainda mais para a direita, e assim se pode explicar o desaparecimento do Centro Democrático Social (CDS), a estagnação do PSD, que mesmo assim tem mais 4 090 votos, e as subidas significativas da Iniciativa Liberal (IL) e do CHEGA que, juntos, somam um crescimento de 518 450 votos e mais 18 deputados. Isto pode querer dizer que uma parte do eleitorado que se via mal representado pelo CDS, mas também pelo partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), viu na IL e no CHEGA as formações políticas que acomodavam melhor as suas aspirações. Se juntarmos a este grande medo os medos de virem a existir perturbações na política de combate à pandemia e um longo período de incerteza política, talvez possamos encontrar a explicação para a maioria absoluta do PS e a queda abrupta do BE e PCP.

Ben White (Unsplash)

Importante foi a constatação de que os dois campos, centro-esquerda e esquerda, por um lado, e direita e extrema-direita, por outro, não trocaram entre si eleitores. As mudanças verificadas realizaram-se no interior de cada campo. Mas enquanto à esquerda, tanto o BE como o PCP podem vir a recuperar da função utilidade que a sua votação teve, já à direita, o PSD, fruto da concorrência dos seus concorrentes à sua direita, dificilmente conseguirá ultrapassar o milhão e quinhentos mil votos numa próxima eleição. A aproximação ao PS, a verificar-se, será mais à custa do regresso do eleitorado aos respectivos partidos, BE e PCP, do que à conquista de eleitores aos IL e CHEGA. Porquê? Porque, dentro de quatro anos, o que passará a estar em causa são os resultados da governação do PS, que tanto o BE como o PCP reclamarão sempre que não se foi suficientemente longe, ao passo que toda a direita dirá que se foi longe demais. Ora, para a população, o que vale mais é a primeira reclamação.

Foram suficientes dois dias para o pó começar a assentar e o que era inquestionável em 29 de Janeiro, deixou de o ser a partir de 1 de Fevereiro. Os comentadores, na sua larga maioria, deixaram de fazer qualquer referência ao efeito do chumbo do Orçamento de Estado sobre os resultados eleitorais e passaram a adoptar a teoria do medo. E esta análise é partilhada tanto por comentadores de direita (Helena Matos, por exemplo) como de esquerda (Pedro Tadeu, por exemplo). Considere-se o relato que a agência noticiosa Lusa faz sobre o assunto no concelho de Avis: “João Domingos disse à Lusa que ‘o medo’ de que o PSD poderia vencer as eleições levou o eleitorado do concelho a votar no PS, o que é para si ‘uma novidade’ naquela região. O PCP com medo de que o PSD ganhasse as eleições votou PS, só por isso é que o PS ganhou”, considera. Mas, segundo o mesmo, tem a “certeza” de que, nas próximas eleições que ocorrerem em Avis, o PCP voltará a sair vencedor.”

A única excepção relevante a esta interpretação é a de Marques Mendes, que se mantém na promoção da teoria da culpabilização do eleitorado ao BE e ao PCP. Mas este comentador, é sabido, faz a vez de porta-voz informal do Presidente da República. O qual, deseja ardentemente que, mesmo com maioria absoluta, o próximo governo se afaste o mais possível daqueles dois partidos.

A explicação que está a ser predominante é a de que o PS funcionou, para muito eleitorado, como o chapéu-de-chuva onde se foram abrigar da trovoada política que um entendimento do PSD com a extrema-direita representaria. Como em muitas ocasiões durante a ditadura, mas também já em democracia, aquele foi um acto de resistência. De resistência a uma potencial reversibilidade do que foi feito no período em que vigoraram os acordos entre o PS, o BE, o PCP e os Verdes (PEV – Partido Ecologista “Os Verdes”). Por isso, os próximos quatro anos serão decisivos para as forças partidárias se organizarem de maneira a confirmarem esta explicação; que, passada a emergência, a vida regresse ao seu curso normal, com a influência real que cada uma daquelas forças partidárias tem na sociedade.

07/02/2022

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Cipriano Justo

Licenciado em Medicina, especialista de Saúde Pública, doutorado em Saúde Comunitária. Médico de saúde pública em vários centros de saúde: Alentejo, Porto, Lisboa e Cascais. Foi subdiretor-geral da Saúde no mandato da ministra Maria de Belém. Professor universitário em várias universidades. Presidente do conselho distrital da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos. Foi dirigente da Associação Académica de Moçambique e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. É um dos principais impulsionadores da revisão da Lei de Bases da Saúde.

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