A poesia da rádio na voz de Fernando Alves

 A poesia da rádio na voz de Fernando Alves

Fernando Alves (cm-peniche.pt)

Fernando Alves tem uma voz inconfundível e, segundo o próprio, nunca trabalhada. Nasceu com ele. E, possivelmente, permaneceria no anonimato, se a sua condição social o levasse a trabalhar nas obras da construção civil. Mas ele apaixonou-se pela rádio, pelo mistério da rádio, pelo exercício da sedução através da voz.

Ainda bem, para a alegria dos que amam essa companhia doméstica, que, na minha adolescência, era livre e independente da rede eléctrica, graças às “pilhas” que permitiam o seu transporte ora para o quintal ora para o meu quarto, onde escutava com atenção as notícias. A actualidade do país e do Mundo, na minha aldeia da Beira Baixa.

Alcains (Beira Baixa). (Créditos fotográficos: Elsa Ligeiro)

Conheci o corpo da voz de Fernando Alves na Maratona de Leitura na Sertã, numa sessão realizada no quintal da Casa do Gigante, que o poeta Miguel Manso herdou dos avós e transformou em espaço de poesia, no concelho.

Ali estava, mesmo à minha frente, a Voz a partilhar, com todos os presentes, um poema de “O Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caeiro.

Fechei os olhos naquela tarde de Julho quente e a voz da TSF inundou, com palavras de Caeiro, a Casa do Gigante, que se transformou no que cada um dos participantes conseguiu imaginar. A voz de Fernando Alves, que, diariamente, iniciava os meus dias úteis com os seus sinais de humanidade!

Rosmaninho (evasoes.pt)

A rádio acompanhou a minha infância e a adolescência como uma tábua de salvação. E foi uma ponte para o mundo, que sempre imaginei maior do que a minha aldeia, com outras riquezas e misérias. Na rádio, antes da poesia de Fernando Alves, recebi, na voz de Júlio Roberto, a primeira lição de ecologia, com a “A Carta do Grande Chefe Seattle”, que continua ainda hoje gravada na minha memória. Pela rádio, chegaram-me crónicas de Fernando Assis Pacheco e de outros jornalistas que, semanalmente, partilhavam reflexões sobre o país em revolução.

(Direitos reservados)

Lembro-me, especialmente, de uma crónica sobre os murais que acolhiam as palavras de ordem guardadas na alma dos Portugueses e que, após a Revolução, as escreviam em muros brancos como manifesto de um Portugal Futuro.

Contou Assis Pacheco que um seu amigo, com uma paciência de Job, lá ia aceitando pintar, uma e outra vez, o seu muro de branco, após o terem utilizado para as suas mensagens políticas com tintas negras ou vermelhas. Tudo aceitava. Todas as palavras eram motivo de um sorriso acolhedor, até ao dia em que um clamoroso erro ortográfico o fez perder a paciência. E foi ele a protestar publicamente.

O Processo Revolucionário em Curso (PREC) vivi-o em Alcains, com a preciosa ajuda da rádio, já o confessei noutras ocasiões. O que não disse foi que, com o aparecimento da TSF, nasceu uma escola de jornalismo radiofónico em Portugal. Como a cooperativa que publicava o semanário O Jornal o foi para o jornalismo escrito, logo após a Revolução de 25 de Abril de 1974 (e também como Rafael Correia, com o seu “Lugar ao Sul”, nos anos oitenta, já era um precursor do futuro da rádio em Portugal).

(pportodosmuseus.pt)

Fernando Alves foi o jornalista da TSF que deu voz às palavras que têm a força e a grandeza do que é essencial. As que separam a Poesia do prosaico.

Fernando Alves, que visitou Alcains em Janeiro deste ano, para participar no almoço que a Biblioteca Comunitária dedicou ao aniversário do alcainense António Ramalho Eanes, emprestou, desde sempre, a sua voz aos grandes autores de Língua Portuguesa. E, sobretudo, à Poesia que teima em se esconder na espuma dos dias.

Uma grandeza do essencial que Fernando Alves, diária e laboriosamente, nos trouxe dia após dia, durante décadas, à superfície da nossa realidade, partilhando-a como “Sinais”, na sua e nossa TSF. Bem haja!

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01/04/2024

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Elsa Ligeiro

Editora e divulgadora cultural.

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