A propósito da ascensão da extrema-direita

 A propósito da ascensão da extrema-direita

(rtp.pt)

As razões que permitiram Adolf Hitler ascender ao poder não são as mesmas de agora, nem a actual extrema-direita se sustenta no mesmo discurso. De facto, não estamos nos anos 20 e 30 do século passado. Porém, se há convergências, também há diferenças sobre o que meditar. Desde logo, o falhanço social da República de Weimar, há 100 anos, e o falhanço da “globalização”, hoje, cria(ra)m um exército de desempregados, de marginalizados e de desiludidos. É por aí que, parece-me, devemos começar.

Milton Friedman (cdn.britannica.com)

O nó górdio do problema que separa a República de Weimar da nossa actualidade é, do ponto de vista político “tout court”, a completa abdicação dos partidos sociais-democratas de programa próprio, para se entregarem ao modelo do neoliberalismo, vagamente temperado de pequeninas faúlhas sociais. Convém não esquecer que a primeira experiência socio-económica do neoliberalismo aconteceu no Chile, no regime ditatorial de extrema-direita do general Augusto Pinochet, com os gurus da “Escola de Chicago” (os discípulos do senhor Milton Friedman) a conselheiros económicos.

Hitler, de forma perspicaz (baseada no horror da indústria de guerra) insuflou milhões e milhões de reichsmarks (moeda oficial na Alemanha de 1924 até 20 de Junho de 1948) do Estado na criação de postos de trabalho, o que lhe valeu o grande apoio popular. Hoje, a extrema-direita substitui o discurso de ódio aos Judeus pelo medo dos imigrantes, mas não pensa, em termos económicos, expulsá-los nem os dizimar. Prefere, antes, aumentar a sobre-exploração dos mesmos, ilegalizados e atemorizados, com um falso discurso contra a sua permanência ilegal.

Primeiramente, usa tal discurso para exercer uma maior pressão sobre a falta de condições de trabalho que lhes oferece. É um jogo maquiavélico deplorável e que importava denunciar, muito mais do que criar defesas abstractas de todos os imigrantes. Isso pode bem tornar-se numa facilitação para o populismo da extrema-direita e para a manutenção da miséria em que vivem esses imigrantes.

De par, a extrema-direita prossegue a mesma (nem é mais, é a mesma) delapidação dos mercados emergentes do Terceiro Mundo (ou seja, de países que possuem economia subdesenvolvida ou em desenvolvimento), garantindo não só as mercadorias (sobretudo, a extracção de matérias-primas) a custo baixíssimo, como garante o fluxo migratório de novos escravos para o “Primeiro Mundo”.

“Terceiro Mundo” é uma expressão usada para designar os países que dispõem de uma economia subdesenvolvida ou em desenvolvimento. Essa expressão surgiu na época da “Guerra Fria”, remetendo para os países que não se encontravam nem do lado dos Estados Unidos da América nem da ex-União Soviética, os denominados “não-alinhados”. (conceito.de)

Por muito que doa ter de dizer que Adolf Hitler (um criminoso sem remissão – digo, para que não fiquem dúvidas) encontrou uma resposta (evidente) para se substituir economicamente ao desastre da República de Weimar. Esta extrema-direita não tem nenhum modelo económico-social diferenciado do actual, apenas o querendo extremar. Acho que basta olhar para Donald Trump e para o “louco” Javier Milei, presidente da Argentina, para perceber, no que é, de facto, essencial no padrão económico-social; e no quão pouco se distinguem de Joe Biden ou da senhora Ursula von der Leyen, de Bruxelas (enquanto presidente da Comissão Europeia).  Assim, do meu ponto de vista, esta mesma extrema-direita não é (ainda) uma mudança de paradigma. Representa um agravamento, mas não uma ruptura. Enquanto Hitler se movia em antagonismo com uma direita clássica, como a (patriótica) de Charles de Gaulle, a actual é farinha do mesmo saco com que se faz um Emmanuel Macron.  

Charles de Gaulle (philonomist.com)

Só um modelo económico-social antagónico ao actualmente dominante, mundialmente, travará enormes convulsões sociais do mais variado tipo. A exponenciação desta extrema-direita populista ou de outra (ou em que a de agora se converta) de bota cardada, por muito que uma cultura de elite saiba nada resolverem, serão muitíssimo atractivas para uma massa de excluídos, que vai ainda aumentar, e muito, com a dita “inteligência artificial”, proletarizando mesmo camadas populacionais que ocupavam um espaço de classe média-alta. Com a terrível diferença de que não há lugar para greves nem para o que seja, porque a robótica e a cibernética substituem o humano trabalhador explorado.

Por isso, talvez seja mesmo este o tempo de levar muito a sério as análises (não as propostas, datadas e contraditórias) do internacional-situacionismo (principalmente, sobre a “sociedade do espectáculo”) e as de Ted Kadzinsky (sobretudo a falência da civilização tecno-industrial) e rever conceitos e concepções, aproveitando o mais importante e arquetipal, quer da “Rerum Novarum” (encíclica do papa de Leão XIII) quer do marxismo (neste caso, diria do neomarxismo de Thomas Piketty e dos meios académicos norte-americanos).

Ted Kaczynski (activista e terrorista conhecido como “Unabomber”),
no centro da fotografia, aquando da sua acusação em Helena, capital
do estado norte-americano de Montana, em 4 de Abril de 1996.
(nbcnews.com)

Não tenho – ninguém pode ter – por garantida a construção de uma teoria. Menos ainda de uma práxis salvífica. Mas tenho por certa a falência dos actuais modelos, tenham eles que declinações tiverem. O verdadeiro combate ao totalitarismo reside nisso: eles já são, por natureza, totalitários, quando se apresentam como único caminho e fim da História, tentando convencer-nos de que são o mal menor.

Estas tensões sociais e a agudização delas existem e existirão, cada vez mais, submetidas a uma “super-mega-vigilância” orwelliana, tendendo a serem revertidas em confrontos multipolares, como o é, visivelmente, o eixo de guerra Kiev-Telavive, que os Estados Unidos da América suportam, usando retóricas contraditórias. E coloca-nos, a todos, num quadro de real possibilidade de, pela primeira vez na História da Humanidade, embalarmos numa situação irreversível, que provocará a autodestruição da nossa espécie ou algo muito próximo disso.

Ou seja, como alguém já disse, o capitalismo, antes de ser destruído, pode destruir a própria Humanidade (cito de memória). É verdade que também podemos estar na véspera de uma reacção e reunião de valores que compatibilizem o que até hoje, nos diversos domínios, se configurou como inalcançável, quer no plano das práxis quer das ideias.

(Créditos fotográficos: Alex Fedorenko – Unsplash)

Como me afastei da doutrina marxista em tudo quanto ela tem de determinista, acho que a História nos aguarda, sempre, com surpresas ao dobrar da esquina. Mas o prognóstico para a catástrofe (multifacetada) já está em marcha e em progressão geométrica. De factores naturais, provocados ou potenciados pela intervenção humana na própria Natureza, ao perigo de um conflito termonuclear, tudo está já, em cima da mesa num jogo de poker, à espera de que alguém pague a parada “para ver” e de que as cartas sejam mostradas em todo o seu esplendor de horror.

Eu, pessoalmente, tendo a acreditar que só após essa(s) gigantesca(s) catástrofe(s), há a possibilidade de, restando alguém, se aprender com os erros que até aqui nos trouxeram. E recomeçar, eventualmente, um percurso sociológico (diria mesmo antropológico) a partir dos escombros em que se ficará, para surgir um resto da Humanidade capaz de reconstruir um caminho sociológico (atrever-me-ia a repetir antropológico) muito diverso do ponto em que estamos.  

Todavia, neste ínterim, não é absurdo pensar numa distopia em que uma guerra de dimensão planetária não envolva nações, ideologias, etnias, religiões, classes sociais, mas que seja dirimida entre grandes grupos económicos com exércitos de mercenários. Pode bem passar-se das “guerras financeiras” a “vias de facto” pela conquista, por exemplo, de reservas de lítio ou do domínio de alguma órbita planetária importante para sinais de transmissão cibernética, num confronto em que, simbolicamente, diria dar-se entre Elon Musk e Mark Zuckerberg, por exemplo. Como distópico será também, mas não descartável, pensar na cotação em bolsa das próprias guerras, hoje, em muitos casos, convertidas em finalidade em si mesma (como elemento de lucros abissais na indústria do armamento, primeiro, e no da construção civil, depois) e já não de confrontos que se diziam ser o prolongamento da diplomacia, quando esta falhava.

(Créditos fotográficos: SpaceX – Unsplash)

Neste quadro, olhar a extrema-direita como um agravamento da miséria que este sistema provoca será o mais correcto. Incorrecto, do meu ponto de vista, seria combatê-la numa “aliança” com os responsáveis da fabricação da base de apoio dela, extrema-direita actual, fundada em multidões de excluídos, “analfabetizados”, premeditadamente, para aceitarem este sistema apresentado como único. Mas que querem, sem saber como, escapar-lhe. É assim (e por isso) que esta extrema-direita cresce. Proclamada como a única alternativa, por si mesma e pelo establishment que a gerou no seu ventre de malfeitorias, parece que só resta escolher uma das duas opções que são a “mesma coisa”.  É preciso assumir a coragem de um discurso independente para denunciar isto e para dizer que a globalização mercantilista, por si – no plano das mortes provocadas pela falência e pela ultra-exploração do modelo e do exaurir dos recursos naturais –, consegue matar diariamente mais gente do que a média de mortes (também diárias) que se apliquem estatisticamente às ditaduras encarniçadas de Adolf Hitler a Josef Stalin, para escolher campos diferentes como exemplo(s).

Era o que mais faltava, em nome do combate a mais do mesmo com outras roupagens, vir defender esse mesmo travestido de “democracia”! Aceito e acho necessário – como já referi, explicitamente – uma procura de respostas que conglomerem campos políticos e ideologias antes opostas, na procura de respostas verdadeiramente alternativas ao neoliberalismo. Respostas de carácter humano, seja na base do conceito de “classe social” ou no de raiz personalista. Recuso liminarmente qualquer compromisso com o neoliberalismo, em nome do combate à extrema-direita… neoliberal. A homeopatia política será um desastre. O combate a esta extrema-direita não se faz com o pêlo do mesmo cão, neoliberal (aludindo ao provérbio “Dentada de cão cura-se com pêlo do mesmo cão”). Faz-se com outro cão e com outros cães de muitas pelagens. Mas não com estas, que são a mesma que nos oferecem.

.

………………………….

.

Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

.

09/09/2024

Siga-nos:
fb-share-icon

Jorge Castro Guedes

Jorge Castro Guedes nasceu no Porto, em 1954. Do primeiro elenco da Seiva Trupe, em 1973, como actor, seguiu carreira própria a partir de 1976 e voltou como director artístico, convidado por Júlio Cardoso, no final de 2018. Pelo meio, ficam os “seus” TEAR (Teatro Estúdio de Arte Realista), entre 1977 e 1990, e Dogma\12 – Estúdio de Dramaturgias de Língua Portuguesa (de 2012 a 2018). E leva perto de mil intérpretes dirigidos em mais de cem encenações, passando pelo Serviço Acarte da Fundação Calouste Gulbenkian, pelo Teatro Nacional Dona Maria, pelo Novo Grupo, pelo Teatro Raul Solnado, pelo Teatro da Trindade, etc. É polemista e cronista espalhado por vária imprensa e autor de trinta textos dramáticos publicados, além de diversas traduções do Galego, do Castelhano (ou Espanhol) e do Francês. Foi redactor publicitário na McCann (e freelancer) e director criativo estratégico na Boom & Bates, sempre pronto para prosseguir. Foi assessor para os dramáticos da RTP e autor/apresentador do programa “Dramazine” (entre 1990 e 1993). Estagiou com Jorge Lavelli no Théâtre National de La Colline, em Paris (na temporada de 1989 a 1990). Mestre em Artes Cénicas, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em 2013, frequentou anteriormente (de 1971 a 1973) Direito, na Universidade de Lisboa, e Filosofia, na Universidade do Porto, entre 1973 e 1976. Autodefine-se como um “humanista cristão pelo coração; socialmente radical, porém céptico”.

Outros artigos

Share
Instagram