A revelação

 A revelação

Ilustração: Cristina Malaquias

(*)

O menino chegou a casa. Era um pequeno apartamento num prédio de seis andares. Ele vivia no terceiro. Entrou e dirigiu-se para o seu quarto. Da janela, avistava uma nesga do grande rio, lá longe, imponente na sua cor azul-acinzentada. Por momentos, navegou pelas suas águas como os marinheiros de outrora, sentindo-se um aventureiro à descoberta de novos mundos.

O seu pensamento já estava tomando a forma de uma caravela, com as velas ao vento, e os seus olhos espreitavam ávidos por uma luneta, vislumbrando novas terras! Depois, num ápice, estava num daqueles navios com vários andares, tantos ou mais do que os do seu prédio. Uma verdadeira cidade! Ele era o capitão, pronto para mais uma viagem. Enquanto assim estava urdindo aventuras, ouvia os pais a conversar na sala ao lado. De vez em quando, ouvia uma frase mais exaltada e, após, um silêncio de alguns segundos.

Retomavam a seguir o fio à meada e o ritmo da conversa parecia retornar ao mesmo ponto. Há já algum tempo que o menino sentia que algo não estava bem. A mãe parecia preocupada e até triste. O pai andava nervoso e, ultimamente, tinha arranjado desculpas para escapar aos planos de fim de semana. Não tinham ido pescar, nem tão-pouco andar de bicicleta ao longo do rio. O pai fechava-se em si mesmo e ficava com o olhar vazio, macambúzio, esquecido na penumbra da sala, respirando aquele silêncio incómodo. O olhar observador do menino dizia-lhe que algo se passava. Chegada a hora do jantar, sentaram-se à mesa. O silêncio dos pais era acompanhado de um visível nervosismo. O menino olhava para um e para o outro, tentando descortinar alguma razão para aquele comportamento fora do normal.

A certa altura, hesitante e, ao mesmo tempo, solene, o pai disse: – Temos de conversar, Francisco! O menino assentiu receoso. Pelo tom da voz do pai, era coisa séria. Pensou que talvez tivesse feito algum disparate, mas não se recordava de nada.

– Vivemos tempos difíceis e, embora eu queira o melhor para a nossa família, há coisas que não dependem de mim – prosseguiu o pai. O menino ficou atónito, sem saber o que dizer. Nem parecia o pai, habitualmente tão bem-disposto e confiante. O seu rosto era o espelho da mágoa e as suas mãos inquietas amarrotavam nervosamente o guardanapo.

O pai continuou: – Sabes que, na vida, podem surgir dificuldades e é preciso saber enfrentá-las, encontrar soluções e nunca desanimar!

Francisco olhou para a mãe e viu uma lágrima correr-lhe na face. Ela disfarçou, como era seu hábito, tentando trocar as tristezas por alegrias, mas Francisco, que bem conhecia a mãe, podia ver a angústia estampada nos seus olhos. O pai prosseguiu a tarefa de explicar ao menino a situação da família. Francisco ouviu a palavra “desemprego” e escutou-o com atenção. Percebeu, então, o que se passava. A fábrica onde o pai trabalhava fechara e ele tinha ficado sem o trabalho que era o principal sustento da família, pois a mãe ganhava muito pouco nos arranjos de costura que costumava fazer. “E agora?” – era a pergunta que não lhe saía da cabeça.

Os seus olhos expressivos não escondiam o desalento, e os pais logo se apressaram a animá-lo. Mas o que tinham para lhe dizer, mais uma vez, não era fácil: – Decidimos ir para a aldeia onde vive o avô Daniel. Lá, temos casa, terra para cultivar e a companhia do avô. O pai conseguiu um emprego na vila e a mãe poderá ocupar-se da quinta e dos animais de que tanto gosta. Talvez até possa criar um pequeno negócio. Não será fácil, mas estou certo de que iremos viver melhor!

As palavras do pai ecoavam dentro de si. Apesar de gostar muito do avô e da aldeia onde costumava passar as férias, o menino sentia-se confuso e desiludido. Um turbilhão de ideias invadia a sua cabeça. Pensava no professor José, no João, na bola, nos amigos e amigas da sua escola. Até já sentia a falta dos aviões e dos elétricos, das pessoas de olhar vago e distante, das ruas ruidosas e do seu prédio. Pensava, especialmente, no seu quarto e na janela pela qual espreitava o grande rio com os seus barcos vagando nas águas calmas, fazendo-o sonhar com viagens fantásticas! “Como será viver longe daqui?”, interrogava-se.

A mãe, percebendo a preocupação do menino, procurou serená-lo: – Vais ter muito espaço para brincar, farás novos amigos e poderás crescer num ambiente saudável e tranquilo! Além disso, terás a companhia do Cusco! Sempre gostaste do Cusco!

O Cusco era o cão do avô Daniel. Um rafeiro nascido no meio das pedras, esperto e ágil, sempre a farejar e a abanar a cauda. Quando ia de férias para casa do avô, era uma alegria ver o Cusco. Ao chegar, fazia-lhe uma grande receção. Saltava, lambia-o todo e logo o desafiava para uma boa correria pelos campos. Era um cão lindo, de pêlo castanho-claro e olhos cor-de-mel, muito vivos.

Nessa noite, Francisco tinha dificuldade em adormecer. As aulas estavam quase a chegar ao fim e lá partiria ele para outro lugar. Não imaginava como iria ser. Só pensava no que iria perder. Decidiu não correr as persianas do quarto. A janela deixava entrar a luz viva dos candeeiros da rua. Reparou que não conseguia ver as estrelas e deu por si a imaginar o céu estrelado da aldeia. Entretanto, aninhou a cabeça na almofada e deixou que as lágrimas escorressem livremente.

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(*) In “A Oliveira Mágica”

16/01/2023

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Celeste Almeida Gonçalves

É professora e escritora de obras para a infância e juventude, desenvolve vasta atividade de mediação de leitura em escolas e bibliotecas e dinamiza variados projetos, no âmbito da leitura e da escrita criativa.

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