A terceira razão

(Créditos fotográficos: Christian Bowen – Unsplash)
A polémica em torno da direcção executiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS) não há meio de ter fim. Por uma razão (um diploma feito à medida da personalidade que antecipadamente se sabia que iria desempenhar essas funções) ou por outra (acumulação de cargos do penúltimo director, que levou à sua demissão), não há maneira de os governantes acertarem com as funções que devem ser atribuídas a essa figura, de tal maneira que o expediente encontrado para tentarem situar-lhe o que deverá fazer foi cortar nas competências que estavam originalmente previstas. O ruído que a situação causou deveu-se a várias razões.

Quando se fala em descentralização – e este governo, pela voz dos seus governantes, diz-se um indefectível defensor dessa medida –, surge uma figura que iria centralizar e superintender todo o serviço público de saúde, tendo o primeiro director executivo dado mostras da complexidade do empreendimento ao criar, para o efeito, dez departamentos. Esse dispositivo não chegou a ter tempo para demonstrar a sua operacionalidade e eficácia; contudo, seria provável que uma estrutura com tal dimensão e poderes fosse geradora de conflitos com a tutela, conhecida a tradicional centralização de poderes das equipas ministeriais. Esse facto, por outro lado, criou, nas direcções dos serviços de saúde, bloqueios na maneira de gerirem as instituições sob a sua responsabilidade, uma vez que a linha de comando e controlo tinha sido substancialmente alterada; e porque não estava claro o caminho a percorrer para se chegar à resolução dos assuntos que surgem a cada passo.

A propósito do funcionamento da rede hospitalar do SNS, são conhecidas as disfunções que, entretanto, surgiram, as quais, somadas às existentes, fizeram exorbitar a distância entre o que fora prometido e o verificado, nos ainda poucos meses de existência daquele órgão. Houve um discurso precipitado quanto aos resultados quase milagrosos que as soluções preconizadas pela direcção executiva prometia, mas que foram encaradas com desconfiança pelo sector. Além disso, não foi consensual a existência de tal organismo por parte dos partidos políticos, tendo-se verificado divergências quanto à sua necessidade e utilidade, e olhado com desconfiança os propósitos que perseguia.
Existe uma segunda razão para este organismo ter produzido tanto ruído. Uma vez que as administrações regionais de Saúde (ARS) viram esgotadas as premissas para que tinham sido criadas, não existiu na altura a clarividência para manter a regionalização do SNS, com a redefinição do papel das ARS. Tratava-se de atribuir a cada uma delas os poderes que estavam previstos para a direcção executiva: em vez de ARS passariam a existir cinco direcções regionais de Saúde que seriam as interlocutoras das respectivas unidades locais de Saúde (ULS) e reportavam para a Administração Central do Sistema de Saúde, a qual passaria a deter os poderes que foram atribuídos à direcção executiva central. Ou seja, desdobravam-se as competências daquela figura entre um nível regional e um nível central.

Houve uma terceira razão, porventura a mais difícil de resolver, que está relacionada com as políticas de saúde dos últimos 30 anos. Trata-se da insistência no modelo biomédico da prestação de cuidados de saúde, que se viu reforçado com a criação, nos últimos 20 anos, das unidades locais de Saúde (ULS), tal como actualmente existem. Sabe-se da literatura que os modelos burocráticos, de que as ULS constituem um exemplo, são expeditos em engendrar mecanismos de rejeição da regulação externa, convivendo bem com a desordem causada pelos desajustamentos entre o esperado e o verificado. Estamo-nos a referir ao caso particular do acesso, seja ele referenciado ou espontâneo, nele incluindo a continuidade dos cuidados.

É do conhecimento geral que as ULS não vieram resolver esse problema, cuja cronicidade já fez dele a principal doença do SNS. Tivessem as ULS outra filosofia, as dos sistemas locais de Saúde, por exemplo, e a entropia de que o SNS padece, por constituir uma estrutura fechada, encontraria o seu ponto de equilíbrio, se tivesse a participação de outros actores sociais. Passando a estar representados enquanto prestadores indirectos, nomeadamente da promoção da saúde, seriam eles a trazer para dentro do dispositivo organizacional o conhecimento que faria dele um sistema estável por via do fluxo de informação contínua sobre os resultados observados na população, em consequência do desempenho dos serviços públicos de saúde. Embora existam órgãos de participação, o seu impacto tem sido irrelevante, considerando a contribuição que poderiam dar para a inclusão, no SNS, das valências actualmente omissas – de que a intervenção nos determinantes da saúde é o exemplo por excelência –, uma vez que lhes falta a característica mais útil para o efeito, a de poderem participar nas decisões.

A quarta razão decorre da ausência de capacidade para promover a melhoria contínua dos aspectos organizacionais do SNS, que se faz pelo rastreio e pela solução dos aspectos críticos do seu funcionamento. A acumulação de erros ao longo do tempo constitui a principal razão para este serviço público se ter transformado numa organização entrópica, que viu na criação da figura de director executivo a solução para ajustar a estrutura à sua missão.
A estranheza com que a direcção executiva foi recebida deve-se à impossibilidade de transformação súbita de uma organização já histórica, num contexto social estável. Para que isso pudesse ter êxito, teria sido necessário que as circunstâncias se encontrassem em fase de transformações súbitas, o que não acontece. Essa será a razão desconhecida pelos governantes para lançarem mão daquela solução, na suposição de que esta figura era o tratamento universal para as várias maleitas do SNS. Está à vista que não é. Estará, sim, num plano de mudança incremental, tendo como propósito resolver os aspectos enunciados na terceira razão, representativa das razões de queixa que, diariamente, são lançadas nas caixas das reclamações.
.
06/02/2025