Abertura do Ano Judicial cercada de críticas e com cimeira no horizonte

 Abertura do Ano Judicial cercada de críticas e com cimeira no horizonte

(oficialdejustica.blogs.sapo.pt)

Arrancou oficialmente, a 13 de janeiro, o Ano Judicial, em cerimónia no Supremo Tribunal de Justiça, com protesto de funcionários judiciais à porta – convocada pelo Sindicato dos Funcionários Judiciais (SFJ), a que a aderiu o Sindicato dos Oficiais de Justiça (SOJ) –, contra a proposta governamental de revisão da carreira (“Justiça para quem nela trabalha”, lia-se nas t-shirts negras), ao que a ministra da Justiça fez reparo.

(youtube.com/@supremotribunaljusticaPT)

Estrearam-se no evento o procurador-geral da República, Amadeu Guerra, a ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, e o presidente da Assembleia da República (AR), José Pedro Aguiar-Branco.

***

Fernanda de Almeida Pinheiro, bastonária da Ordem dos Advogados (OA) defendeu que a Ordem acompanhou e patrocinou o aparecimento e o desenvolvimento da democracia e é, até aos nossos dias, parte ativa da construção do estado de direito democrático.

Fernanda de Almeida Pinheiro, bastonária da Ordem dos Advogados. (youtube.com/@supremotribunaljusticaPT)

A líder da OA recordou o “ataque” feito à liberdade da profissão, no último ano, quando se lhe impôs uma revisão do seu estatuto profissional que, entre outras alterações, obrigou à criação de um Conselho de Supervisão presidido por um não advogado e abriu a prática de atos próprios da advocacia a não advogados. E frisou que a OA existe, não para a salvaguarda de qualquer interesse egoístico da classe, mas “para garantir que ninguém, sob qualquer circunstância, possa violar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, cidadãs e empresas do nosso país”.

A bastonária alertou que a OA tem desafios internos que “urge resolver”. E não se cansará de o exigir as mesmas mudanças, até que os poderes políticos garantam um tratamento digno no sistema de acesso ao direito e aos tribunais (SADT) e uma previdência digna desse nome “aos nossos e nossas associadas”.

Sobre o SADT, a líder da classe afirmou que este serviço público garantido pela advocacia sempre funcionou. “Não sabemos se podemos dizer o mesmo de qualquer outro serviço público”, atirou, recordando que os honorários pagos aos profissionais que garantem o sistema não são atualizados há mais de 20 anos.

Procurador-geral da República, Amadeu Guerra. (youtube.com/@supremotribunaljusticaPT)

Por sua vez, o procurador-geral da República quer autonomia (também financeira e acesso a fundos comunitários), com os processos-crime sob a sua alçada, e não do governo. “Coloquem-se à disposição do Ministério Público (MP) e dos órgãos de Polícia Criminal […] todos os meios humanos, equipamentos, software de tratamento e análise de prova digital, meios técnicos, periciais (internos e externos) e, depois, peçam-nos responsabilidades”, desafiou.

O novo titular da investigação criminal (e não só) falou da necessidade de Justiça mais célere e mais próxima dos cidadãos e pediu maior mobilização do MP no combate aos novos tipos de criminalidade, bem como a preservação do segredo de Justiça. E referiu “preocupação” pelos crimes de homicídio em cenário de violência doméstica, de branqueamento de capitais, de cibercriminalidade, de criminalidade de gangues e o praticado por menores de 16 anos, bem como pelos crimes de terrorismo, de tráfico de pessoas, de auxílio à imigração ilegal e à criminalidade praticada contra pessoas vulneráveis, em particular os idosos e menores.

Em suma, Amadeu Guerra elegeu quatro “temas estruturantes”: a necessidade da autonomia dos meios financeiros da Procuradoria-Geral da República (PGR); a situação de os dados dos inquéritos do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e os vários departamentos de investigação e ação penal (DIAP) estarem na alçada do Ministério da Justiça (MJ); a falta de magistrados e oficiais de Justiça; e a estratégia do MP para o confisco de bens adquiridos como resultado de crimes.

Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, João Cura Mariano. (youtube.com/@supremotribunaljusticaPT)

Já o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), João Cura Mariano, sublinhou que mergulham no esquecimento “dificuldades problemáticas”. Defendeu que há extensa reforma por fazer na Justiça e que deve ser feita para se poder iniciar uma “nova era”. “Uma reforma que deve ser feita de múltiplas e nevrálgicas alterações legislativas setoriais, a qual deve iniciar uma nova era caraterizada por um reformismo permanente”, referiu.

No âmbito dessa reforma, está a alteração do regime de ingresso nas magistraturas, a revisão do regime de acesso ao STJ e mudanças no Código de Processo Penal (CPP) e do Código de Processo Civil (CPC). Sobre as regras de ingresso na magistratura, Cura Mariano sustenta que se justifica aditar à proposta de lei em discussão a dispensa dos exames escritos dos alunos que obtiveram, na universidade, as mais altas notas na licenciatura e no mestrado, mantendo-se a sujeição às provas orais. E defende a necessidade de a lei ser “rapidamente aprovada”, pois “um novo concurso de acesso às magistraturas deveria ter o seu início no mês de janeiro em curso”.

Quanto à minúscula alteração ao Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), tão necessária a inverter o ciclo de progressivo envelhecimento dos quadros do STJ, criticou o facto de ainda não ter entrado na AR qualquer iniciativa legislativa, sem que se consiga “descortinar uma explicação para tal atraso, face à gravidade da situação”.

O presidente do STJ lembrou que, nos próximos seis anos, se reformarão cerca de 600 juízes e que o número de juízes já não é suficiente para preencher os quadros, “sendo o drama dos tribunais sem juízes, por ora, solucionado através de um indesejável regime de acumulação de funções de grande exigência para quem se disponibiliza a trabalhar para além do serviço que lhe está distribuído”. Assim, é necessário repor, nos próximos anos, o número de juízes que se vão reformando, “o que só se conseguirá com o ingresso e [com] uma formação, de cerca de uma centena de novos juízes, por ano, o que traz acrescidas exigências para o Centro de Estudos Judiciários [CEJ]”, que deve ser dotado dos meios necessários para tal empreendimento.

***

Por seu turno, Rita Alarcão Júdice optou por elencar um conjunto de medidas que estão ou estarão brevemente no terreno: o regime de confisco de bens, o combate aos expedientes dilatórios, a criação do grupo de trabalho para melhorar a celeridade processual, a digitalização dos tribunais financiada pelos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a alteração das regras de juízes ao STJ, a assessoria aos tribunais e a revisão das regras dos advogados oficiosos.

Rita Alarcão Júdice, ministra da Justiça. (youtube.com/@supremotribunaljusticaPT)

E, sobre os protestos dos funcionários, considerou: “É uma forma democrática e legítima de protesto. Mas os Oficiais de Justiça já tiveram provas da determinação e da boa-fé do governo em resolver os problemas da classe, nos últimos meses: no aumento do suplemento de recuperação, decidido e pago, logo em 2024, na revisão do Estatuto Profissional, em curso, e no recrutamento de quase 600 novos profissionais, em apenas seis meses. Os funcionários judiciais sabem que têm na ministra da Justiça uma aliada. Mas uma aliada não é alguém que distribui dinheiro público na proporção do ruído ou do número de notícias. É alguém que conhece o valor do seu trabalho, que move montanhas para que os tribunais tenham computadores, sistemas informáticos, ar condicionado, segurança, elevadores, rampas de acesso, salas onde não chova.”

Presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco. (youtube.com/@supremotribunaljusticaPT)

Do seu lado, o presidente da Assembleia da República acredita que muita coisa tem mudado, ao longo dos anos, mas sustenta que “é preciso agir”, envolvendo todas as partes interessadas. “Quem não reforma, é reformado. Quem não transforma, é transformado. Quem não apresenta soluções, torna-se parte do problema”, vincou, referindo que as soluções “impõem olhar a Justiça, não para nos juntarmos ao eco sobre uma crise, mas para a importância sobre a necessidade de uma maior compreensão interdisciplinar da realidade”, e frisando que os agentes da Justiça não são inimigos.

Considera que a Justiça não precisa de marketing nem de conferências, mas de uma reunião de trabalho. “E é isso que faremos já no mês de fevereiro na sala do Senado”, disse, avançando que essa reunião (ou cimeira) “será com convidados representantes dos diferentes agentes do sistema judicial e com os grupos parlamentares, pretendendo-se que seja momento para se encontrarem pontos de convergência. “Gostava que, desta reunião de trabalho, pudéssemos extrair dez propostas simples, dez mudanças com as quais todos concordamos e que possam servir de base para uma revolução cultural na Justiça”, salientou.

Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. (youtube.com/@supremotribunaljusticaPT)

A encerrar, o Presidente da República (PR), assumindo que há uma oportunidade renovada para olhar mais para o futuro, defendeu que a Justiça, em todas as suas dimensões, surge como apelo de valores, necessidade de princípios, mas também, num virar de ciclo, “de expectativa, incentivo, justificação e frustração de limitadas e exageradas exigências pessoais e coletivas”. 

“A Justiça sistema, urgência e realidade todos os dias, passou a ser vivida como escolha entre passado e futuro”. E realçou questões centrais, que não podemos ignorar. Desde logo, um novo ciclo, com novas lideranças: na presidência da AR, no governo, na presidência dos tribunais superiores, no MJ, na PGR e até as lideranças da oposição. E, nisto, diz o chefe de Estado, “há uma oportunidade renovada para olhar mais para o futuro”. Enfim, o PR apelou à convergência entre atores políticos e judiciários para mudanças na Justiça e apontou duas possibilidades, “a ambição de um pacto de Justiça”, como propôs no início do primeiro mandato, ou “de passos mais pequenos e por áreas de maior urgência de intervenção”.

***

Personagem do livro e do filme “Senhor dos Anéis”: Gandalf, o
Cinzento. (pt.wikipedia.org)

Feita a súmula dos principais conteúdos das diversas intervenções, tecidas de reivindicações e de acusações da parte dos operadores da Justiça e de apelos dos poderes políticos stricto sensu, talvez sejam de focar alguns pormenores dos discursos que são motivos de preocupação. 

Ao criticar a “inércia política” que “enferma” o poder judiciário, o presidente do STJ, lembrou palavras de Gandalf, personagem do livro e do filme “Senhor dos Anéis”, que afirmava não nos ser dado “escolher o tempo em que vivemos”, “mas apenas o que fazer com os tempos em que nos foi dado viver”. Isso ilustra o descontentamento do juiz conselheiro pela falta de ação dos governos e da AR, em relação à Justiça. Se esta é lenta, “que dizer do tempo da feitura das leis?” “Os diagnósticos são acertados, os planos de tratamento são adequados, mas a prestação dos cuidados necessários tem tardado sem que se perceba a demora”, diz o presidente do STJ, que focou deficiências no funcionamento dos tribunais na 1.ª instância, com significativos atrasos no cumprimento dos despachos dos juízes, com adiamentos e constrangimentos na marcação e na realização das audiências de julgamento, devido, sobretudo, à escassez, ao descontentamento e à desmotivação dos funcionários judiciais.

(acegis.com)

Já a ministra da Justiça focou o caso de uma mulher de 46 anos morta pelo marido, em casa, à frente dos filhos menores, de 6 e 14 anos. “O que tem a Justiça a dizer a estes filhos, aos avós, aos tios, aos primos, aos amigos, aos professores dos filhos, aos vizinhos, a outras mulheres vítimas de violência doméstica, a todos nós que vimos as notícias?”, questionou, frisando que a queixa da vítima, apresentada em 2022, foi arquivada no ano seguinte e sustentando que as vítimas de crimes devem ocupar “um lugar cimeiro” do sistema judicial.

E não se trata só das vítimas do crime de violência doméstica (que é nefando), mas das vítimas de todos os crimes contra as pessoas ou contra o património, bem como das vítimas de crimes económicos e financeiros, que ficam com as vidas desfeitas. “Também o Estado, e, por conseguinte, todos nós, cidadãos que pagam impostos, somos vítimas colaterais de tais crimes”, considerou, aproveitando para anunciar algumas medidas, como a conclusão, em janeiro, do trabalho que reformula o instituto da perda alargada de bens (o “confisco”) obtidos pela via da corrupção, bem como um grupo de trabalho para promoção da celeridade processual e de combate aos expedientes dilatórios.

(maisliberdade.pt)

Amadeu Guerra falou dos oficiais de Justiça. Segundo apontou, “o maior constrangimento com que se depara a administração da Justiça” é a carência e a falta de motivação de oficiais de justiça, bem como a não aprovação de um Estatuto dos Oficiais de Justiça que contribua para “melhorar o seu estatuto profissional” e crie mecanismos para “tornar a carreira mais aliciante e atrativa”.

O presidente da AR prometeu a sessão para encontrar pontos de convergência sobre “dez medidas simples” que lancem “uma revolução cultural da Justiça”. E, ironizando que a reforma da justiça é promessa mais antiga do que a do novo aeroporto, espera que a reforma “possa descolar”.

***

É possível, em tempos de maioria relativa na AR e de governação precária, construírem-se consensos. Aconteceu, em 1986, com a Lei de Bases do Sistema Educativo. Acontecerá agora com a reforma da Justiça? Não basta mudar lideranças, é preciso mudar de políticas!

.

20/01/2025

Siga-nos:
fb-share-icon

Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

Outros artigos

Share
Instagram