Abomino a aposição de rótulos a pessoas
Sim, abomino rótulos expressamente colados a pessoas, a não ser numa avaliação muito sintética das qualidades da pessoa, em contexto académico e com a necessária e adequada explicação. Fora desse contexto, a rotulagem pode ser falsa, inadequada, parcelar e até ofensiva. Di-lo quem já foi rotulado com as mais diversas marcas políticas e não só.
Numa cidade onde vivi em regime de independência, em relação à instituição que servia e à família, era rotulado de comunista, pois o cabelo relativamente comprido “o denunciava” e, como participava em algumas sessões de dinamização sociocultural e dinamizava outras, não era inteligível que fosse de outro modo.
Era complicado falar às pessoas de igualdade de direitos e de deveres, de liberdades e de garantias sociais, de igualdade entre homens e mulheres ou da necessidade de abolir a condição social e familiar de filhos ilegítimos. Ainda não tinha sido publicado o Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro, a primeira grande reforma do Direito de Família. Abordar a necessidade da partilha cristã de bens, embora não obrigatória por lei, era obstruir o exercício do sagrado direito de propriedade. Porém, a culpa não era minha. Talvez fosse do seminário ou do Concílio Vaticano II, cujos documentos, na edição portuguesa, tinham sido objeto de alguma censura política. Porém, nós sabíamos Latim…
Além disso, secretariava reuniões de agricultores orientadas por técnicos do Instituto de Reorganização Agrária (IRA), assessoradas por três advogados, com vista à sensibilização para o associativismo agrário, nomeadamente na modalidade de cooperativismo e do emparcelamento de terras, a rotulação pareceria a mais adequada. Na verdade, o diretor do Centro de Promoção Social Rural, que organizava as ditas reuniões, conotado com a direita política, era intocável. Havia três advogados a assessorar as reuniões: um socialdemocrata, um centrista e um comunista. Ora, as pessoas que não estavam nas reuniões só me viam lá a mim e ao advogado comunista.
Efetivamente, durante o processo revolucionário em curso (PREC), quem proferisse asserções díspares das que emolduravam a ação governativa era tido como fascista e reacionário. Também o fui. Ou não tivesse frequentado o seminário até ao fim. E quem proferisse determinadas asserções desalinhadas do pensamento do caciquismo local ou andasse de cabelo comprido era considerado comunista. Também paguei para este peditório, ainda, para mais, andava rodeado de rapazes e de raparigas no quotidiano; por outro lado, quando eu estava na igreja, as pessoas anciãs estavam de olhos fechados e não me viam.
Na manhã de um determinado dia, fui surpreendido com um convite, dito urgente, para fazer uma palestra à Liga Agrária Católica com um paralelo entre os princípios programáticos dos partidos políticos e a doutrina social da Igreja (DSI). Isto, porque o palestrante escolhido se escusara à última da hora, por motivos de força maior. Muni-me dos materiais que chegavam à redação do semanário de que era colaborador e preparei a palestra. À hora aprazada, palestrei e dispus-me para responder às questões que iam sendo levantadas, num serão de cerca de duas horas e meia. Pareceu-me que o auditório ficara bastante esclarecido e satisfeito. Contudo, gente que ali não estava adivinhou “comunismo”.
Na vila, onde passei a residir, rotularam-me, no mesmo mês, de comunista (era preciso rezar por mim), de socialista, de socialdemocrata e de democrata-cristão. Viram-me, sem eu estar presente, fisicamente ou em fotografia, em comícios dos respetivos partidos, quando, em dois dos casos, estava de cama com gripe e, nos outros dois, me encontrava fora da vila, em fim de semana.
Quando assumi a paroquialidade de três freguesias, entre alegrias e preocupações, entre aplausos e suspeitas, surgiram também os rótulos. Se entrava na tasca ou no café, obviamente não me chamavam aquário; se punha as pessoas a rezar ou se fazia procissões, era beato ou “aquilo era uma seca”. Se me viam com determinadas pessoas, era comunista; se me viam com outras, ou não reparavam ou chamavam-me fascista. Criticavam-me por não fazer avisos sobre atividades de partidos políticos, “nem pelos nossos” (AD – Aliança Democrática). Condenava os incêndios, mas não dizia que eram os comunistas que os provocavam (eu sabia que não era bem assim); condenava determinadas doutrinas, mas não as atribuía aos comunistas e aos socialistas (sabia que eram transversais); não fiz campanha pela TVI, a TV da Igreja, antes a desaconselhei (sabia que uma sociedade anónima dispersa em bolsa não ficaria vinculada a determinada instituição).
Mais tarde, como sempre insisti no relacionamento institucional, independentemente da cor partidária dos seus dirigentes, colaborava com a câmara municipal (centrista) da vila sede do concelho em cuja área geográfica trabalhava e com a (socialdemocrata) da vila sede do concelho em cuja área geográfica residia. Assim, era tido como centrista, num concelho, e como socialdemocrata no outro. Ainda bem. Passava por entre as pingas da chuva.
Numa segunda-feira, pela manhã, ia a conduzir, vestido à civil, para o aquartelamento militar onde exercia as funções de capelão. Ao passar em frente do posto da Guarda Nacional Republicana (GNR) de uma vila, um militar da GNR mandou-me parar e perguntou se ia para a cidade e podia levar um senhor que ali estava. Respondi que sim e seguimos. Mais adiante, passou por nós uma série de viaturas militares e saudei o respetivo comandante. Porém, o senhor que me acompanhava, lendo, no painel do porta-luvas, o nome do proprietário do veículo (ao tempo, era obrigatório), comentou: “Ó Sr. A…! Há três tipos de pessoas que eu não gramo, nem a tiro!”
Eu retorqui: “Diga lá, que podemos ter a mesma opinião!”
Ao que adiantou: “Militares, padres e comunistas!”
E eu atirei: “Apanhou-me em duas…”
“Não me diga que é militar e comunista!”, reagiu.
“Não”, concluí, “sou militar e padre!”
É de referir que, ao longo da viagem, não disse mais palavra e, à despedida, nem sequer disse: “Até à próxima!”
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Este já longo comentário pessoal e político, rematado com um episódio real que parece anedótico, surgiu-me a propósito da pretensa e sumaríssima caraterização, pelo Presidente da República (PR), do perfil do atual e do ex-primeiro ministro, que se tornou o assunto mais discutido no país político, na véspera do cinquentenário do 25 de Abril. E isso fez-me lembrar de quando, em jornais, Marcelo Rebelo de Sousa, feito professor, avaliava, pretensiosamente, com notas, como na academia, os políticos que estavam na berra, nem sempre de forma ajustada.
Agora, o PR vê António Costa como alguém lento e reflexivo, fruto da ascendência “oriental”, enquanto Luís Montenegro é “completamente diferente”, pois tem um perfil “rural” apressado.
O chefe de Estado não deixou de se autoanalisar neste aspeto, definindo-se como “um ocidental apressado”. De presunção e de água benta, cada um toma o que quer.
As declarações presidenciais, que tiveram grande repercussão, durante todo o dia 24 de abril, foram prestadas, inicialmente, num jantar com jornalistas estrangeiros que trabalham em Portugal, no qual também estavam presentes alguns jornalistas portugueses.
As declarações sobre o líder do Partido Social Democrata (PSD) surgiram quando o PR explicava como via a mudança de governo, antes do previsto. “Ele [Luís Montenegro] é uma pessoa que vem de um país profundo, urbano-rural, com comportamentos rurais. É muito curioso, difícil de entender, precisamente por causa disso. Agora, é completamente independente, não influenciável, não populista e improvisador”, explicou.
O chefe de Estado acrescentou que “estaria feliz” e acostumado com a governação de António Costa, até 2026, mas a dissolução do Parlamento foi necessária ante a demissão como primeiro-ministro (PM) e como secretário-geral do Partido Socialista (PS). “Não imaginam como é difícil adaptar-me a um novo começo”, disse, em referência ao novo governo. E salientou que se estava a habituar com o estilo do líder do PSD e que o recomeço “é estimulante” e “dá muito trabalho”.
O PR ainda frisou não ter dúvida de que Montenegro vai “ganhar todos os debates no Parlamento”, pela capacidade de oratória. Ora, todos sabemos que é fácil um PM ganhar um debate parlamentar.
Em relação aos desafios futuros, sustenta que o presidente do PSD terá de lidar com a polarização.
Só lhe faltou dizer que Montenegro era parecido com António Oliveira Salazar, também este de origem rural e de atitudes rurais, que lidou muito bem com a polarização: os dele e os que não eram dele.
Acusar de rural um político, no país global, tem como subjacente a divisão entre urbanos e rurais. Aliás, o PR rotulou o PS de urbano e metropolitano, de origem urbana; e o PSD de rural-urbano, de origem rural. Bem sabe o chefe de Estado que a corte na aldeia não funciona. Todos os partidos têm origem urbana. No limite, têm génese numa casa, prédio urbano, e não num prédio rústico.
Em relação ao ex-primeiro-ministro, é anacrónico o rótulo de oriental. Que se saiba é cidadão português. Não podemos rotular os cidadãos portugueses pela origem étnica ou pela origem continental ou insular. Caso contrário, teremos de questionar se o PR é de origem lisboeta ou minhota. Pelos vistos, uma sua avó era de Celorico de Basto.
Hoje, Portugal é a mescla e, em muitos casos, de produtos de origens diversas. Há, entre nós, muito sangue árabe, judeu, africano, asiático, americano e de diversos países europeus. Puro-sangue lusitano já nem no cavalo existe.
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As declarações aos jornalistas estrangeiros, como se disse, tiveram grande impacto, durante todo o dia 24 de abril. E, quando foi questionado pelos jornalistas portugueses, numa passagem pelo Largo do Carmo, o PR explicou as frases: “O primeiro-ministro tinha muito a ver com o PSD profundo base rural-urbana, e assim foi a raiz do PSD, ao contrário do PS, que é metropolitano, urbano-urbano”, reforçou, afastando a ideia de ter sido ofensivo ou mal interpretado: “Foram muito explicativas para jornalistas estrangeiros.”
A este respeito, o constitucionalista Vital Moreira, no blogue “Causa nossa”, não foi parco na crítica ao PR. Classifica de “insólitas” as suas considerações acerca da personalidade daquelas figuras partidárias, “nomeadamente a qualificação de Montenegro como ‘rural’ e de Costa como ‘oriental’, [que] são manifestamente descabidas no discurso presidencial”.
Com efeito, segundo o constitucionalista, “violam manifestamente um elementar dever de respeito e […] reserva institucional do chefe do Estado”; “embora de índole supostamente psicossocial, elas refletem os preconceitos típicos da elite lisboeta, contra os políticos que vêm da ‘província’ (caso de Montenegro) ou os que têm origem étnica exótica (caso de Costa)”; e “foram proferidas perante a imprensa estrangeira, onde se impunha ainda mais discrição e prudência institucional do PR, no seu juízo sobre os chefes de governo”.
Vital Moreira é perentório: “Uma conduta condenável, sem desculpas nem atenuantes.”
Além disso, o constitucionalista aponta que Marcelo Rebelo de Sousa “esqueceu duas distinções que são essenciais num Presidente da República, como representante de toda a coletividade: a distinção entre aquilo que ele pensa e o que pode dizer e a distinção entre aquilo que ele pode dizer numa tertúlia de amigos de confiança e o que pode dizer publicamente”. Neste sentido, tem de se vincar a distinção entre o político que fala de tudo e de todos e “um PR que respeita a dignidade do seu cargo e a personalidade dos demais servidores da República com quem interage”.
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Não é preciso, nem possível dizer melhor do que Vital Moreira, “sobre o dever de reserva institucional”.
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Nota da Redacção:
Este artigo de Abílio Louro de Carvalho já tinha sido publicado, em 26 de Abril de 2024, no seu blogue, homónimo da rubrica (“Lendo e relendo”) que mantém no jornal digital sinalAberto.
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Nota do Director:
O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.
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22/07/2024