Abril em Portugal, de novo
A primavera traz esperança de melhores dias, renova as forças e a mente, agita o eco ambiente, mostra as fragilidades do que ainda não foi feito, cria a expectativa do que vai nascer, o canto das aves rejubila, a natureza recrudesce, e “que mil flores desabrochem. E outras nenhumas não” de Manuel Alegre e pelo saudoso Francisco Filipe Martins.
Senti o Maio 68 em França, o 17 de Abril de 69 em Coimbra, as viagens Almeirim/ Benavente/Coimbra para agitprop, a esquerda revolucionária em 71-74, o congresso da Oposição Democrática em 73, a prisão fascista em Outubro de 73, o 16 de Março e o “golpe das Caldas” em 74, o 25 de Abril de luta, emoção e paixão, ainda em 74, com a primavera da juventude, da geração hippie, de Woodstock e Nashville, do Estoril em concerto de rebelião, de Coimbra no jardim da AAC, do encanto não controlado.
Vivi a força dos cartazes que apliquei, a singeleza dos panfletos que distribuí, a crueza dos livros proibidos que adquiri, a “marca” das paredes que pintei, os filmes em caves esconsas a que assisti, as manifestações com grito de alma em que compartilhei, os “meetings” com a pedra no sapato em que participei, as greves interditas em que colaborei, o combate das palavras sem lei nem grei, a dureza da clandestinidade em que agi, as agressões, a violência e as consequências que sofri.
Veio Abril 74, o “25 de Abril” tão-somente, hoje menos valorizado, sem cheiro a alecrim mas com o perfume da Primavera, o PREC com genuinidade, idiossincrasias, excessos e maturidade, os dias que abalaram o meu mundo, a crença de mudar o outro mundo para melhor, sem esquecer que estudar também era uma missão e daí tirei a conclusão.
Seguiu-se a profissão, durante 42 anos, em que quando era novo queria ser velho, ao contrário de hoje que sou velho e não volto para novo (por isso, tendo mais memórias que sonhos), em que o doente era a prioridade absoluta e o aluno era mais uma incumbência com gosto durante 27 anos, em que aprendi a agenda do Desenvolvimento e o paradigma assente no cuidado em 1985 com Maria de Lourdes Pintasilgo, em que despertava novamente a Primavera incólume, seguindo o seu percurso, onde “mil flores com espada” já não eram “cortadas”, nem “mil espadas” floresciam “em cada mão” (Alegre dixit).
E outras Primaveras em outros continentes vieram, de África à América Latina e Ásia, perdendo a característica climática europeia, ganhando a generosidade e a beneficência da ajuda ao desenvolvimento e da ajuda humanitária, organizada e prestada a quem sofre e a quem morre, sem direitos humanos consagrados, minimizando penas, salvando vidas, gerando recursos e qualidade de vida.
Na verdade, durante 23 anos, com o voluntariado em Portugal e no Mundo, percorri as quatro estações de Vivaldi, mais do que a Primavera ou o Verão de Carlos Mendes, “como tudo o que acaba, como pedra rolando duma fraga, como fumo subindo no ar”, mas nunca ficando indiferente, vivendo em hotéis de muitas estrelas ou apenas com estrelas, de S. Vicente a Maubisse, de Porto Alegre à Praia, de Macau a Cabo Delgado, de Pangim a Guangzhou, de Milagres a Buenos Aires, de Salvador ao Tarrafal, de Maputo ao Rio de Janeiro, de Brasília a S. Paulo, de Bangkok a Bali, de Havana a Curaçau, da Cidade da Beira à beira da cidade em Coimbra, dos aeroportos europeus para o fim do mundo, pelos povos.
E em Portugal, sempre pugnando pelos direitos humanos, em grupos vulneráveis e de risco, cooperando na conceção, elaboração, aplicação, desenvolvimento e controlo de projetos para ciganos, para as vítimas de tráfico de seres humanos, para pobres e excluídos, para o outro sexo, para deficientes, para idosos e esquecidos, para doentes e desvalidos, para institucionalizados, para LGBTQI+.
Sempre pela saúde, pela construção, pelo mérito, pela educação, pela arte, pela cultura, pela proximidade, pela comunidade, pelo associativismo, pela paridade, pela vida aos anos e pelos anos à vida, pelo bem-estar e a cidadania, pela sociedade, pela inclusão, pelo Desenvolvimento Sustentável, pelo empreendedorismo, pela igualdade, pela solidariedade, pela ação humanitária, pela provedoria, pela paz, pela utopia.
Sempre contra a discriminação, contra a mercadoria humana, contra a estigmatização, contra a desigualdade, contra a violência, contra a pobreza, contra a frustração, contra a bajulação, contra a corrupção, contra a tristeza, contra a incomunicação, contra a paralisação.
E veio a pandemia. Na Primavera, mais uma vez. Primeiro desconhecida, depois reconhecida embora sonegada pelas circunstâncias e sublimada pela ignorância, então desvalorizada para permitir politicar e esconder fragilidades, mais tarde uma catástrofe real que mudou o mundo, não em dez dias, mas num ano trágico, de morte e destruição, de sofrimento e desorientação, de abalo nos sistemas de saúde e nos alicerces da economia global, de vida parada e saúde mental pouco dimensionada.
E virá a endemia, pós-pandemia, com o alívio dos decisores cujo escrutínio terá menos acuidade, em que as decisões certas e erradas serão menos rememoradas, os exegetas de tudo o que mexe terão outros motivos de análise especulativa e melodramática, valorizando o desvalorizável, com mais uma doença que mobilizará cientistas rapidamente esquecidos do circo mediático e da espada suspensa sobre a sua cabeça.
A luta política vai incendiar opiniões, crenças, juízos, conjeturas e consensos, com a proclamação e mobilização das candidaturas autárquicas, com a necessidade de afirmação dos postulantes à cadeira do poder local e loas emprestadas, com o impacto nacional para marcação de “território” e futuras eleições em que se jogam milhões, com as divergências a suplantar as convergências porque sim.
Teremos política com hombridade, lisura, carácter e tumidez, com propostas sérias, ação criativa e discurso inovador, defendendo os interesses da população e o progresso em direitos humanos, e teremos política com baixeza, sordidez, aviltamento e vitupério, com propostas irrealistas e demagógicas, ação abstrata e discurso ordinário, defendendo os interesses próprios disfarçados, a ânsia de exercício de poder e o elitismo de pacotilha arregimentando mentecaptos e lerdaços.
E teremos Abril em Portugal, de novo. Que me perdoem os leitores, por esta visão tão pessoal e personalizada, num tempo em que todos sabem tudo, tudo é discutido por todos, todos afinal são apenas alguns, e alguns vão papear por todos. E, continuando M. Alegre, “que mil flores floresçam, onde amores fenecem, onde só dores florescem”. A primavera é, por natureza, sinónimo de crescimento, desenvolvimento e alegria, consubstanciado na influência climática, mas também na resiliência que se pretende com o grau de satisfação das pessoas, a redução das vulnerabilidades sociais e as oportunidades de exercício da cidadania. A esperança de melhores dias será conjugada com a ação dos decisores na transição climática e nas respostas sociais e em saúde e bem-estar, e com a intervenção dos cidadãos na proteção e incremento de nova vida, pós crise.