“Ainda Estou Aqui”: obra-prima em defesa da memória e da justiça

 “Ainda Estou Aqui”: obra-prima em defesa da memória e da justiça

(adorocinema.com)

A 20 de Janeiro de 1971, um grupo de facínoras invadiu a casa de Rubens Paiva. O engenheiro civil, que fora deputado do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), pediu-lhes que guardassem as armas, vestiu “terno e gravata” e “dirigiu o seu próprio carro até ao quartel da III Zona Aérea” do Rio de Janeiro. Ali, Rubens Paiva foi torturado até à morte, mas o seu corpo nunca foi encontrado.

O Brasil vivia, então, os anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985). Rubens Paiva1 foi uma das 50 mil pessoas presas e um dos 20 mil cidadãos torturados. Foi preciso esperar 25 anos para que fosse reconhecida, oficialmente, a sua morte. Tal aconteceu, em 1996, por via da chamada Lei dos Desaparecidos, do então presidente Fernando Henrique Cardoso. O atestado de óbito, passado pelo Cartório da Sé, asseverava que a morte de Rubens não foi natural, foi violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.

A actriz Fernanda Torres, no filme “Ainda Estou Aqui”. (cinemaemportugal.pt)

É a história de vida e de luta da família de Rubens Paiva que Walter Salles Jr. dá a conhecer em “Ainda Estou Aqui”, a obra-prima que realizou a partir do livro escrito, em 2015, pelo escritor e dramaturgo Marcelo Rubens Paiva2, filho do antifascista. Com “Ainda Estou Aqui” (publicado pela Editora Alfaguara), Marcelo ganhou o seu terceiro Prémio Jabuti. Nele, o escritor destaca o papel de sua mãe, Eunice Paiva, que denunciou o desaparecimento do marido, ano após ano, envolvendo-se, também, na luta pelos direitos indígenas, após licenciar-se em Direito aos 48 anos de idade – Eunice é representada por Fernanda Torres e por Fernanda Montenegro3 no filme, enquanto Selton Mello representa Rubens Paiva.

“Ainda Estou Aqui” é uma obra-prima da Sétima Arte. Um filme que urge ver. Pela história que narra e pela interpretação soberba de Fernanda Torres. Também pela defesa que faz da memória e da justiça.

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Notas:

Marcelo Rubens Paiva. (pt.wikipedia.org)

1 – Segundo Chico Paiva Avelino, neto de Rubens Paiva, o então deputado e futuro presidente Jair Bolsonaro terá cuspido num busto em homenagem a Rubens que foi inaugurado na Câmara, em 2014. Bolsonaro terá interrompido o discurso de familiares gritando: “Rubens Paiva teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!”

2 – Em 1992, a companhia portuense “Seiva Trupe” levou a cena a peça “Feliz Ano Velho”, obra que Marcelo Rubens Paiva escreveu após ter tido um acidente que o deixou tetraplégico. Com texto de Alcides Nogueira sobre a obra do escritor brasileiro, a peça teve direcção e encenação de Júlio Cardoso, cenários e figurinos de Acácio de Carvalho, assistência de cenografia de Jorge Carvalho, assistência de figurinos de Manuela Bronze, coreografia de Mário Calixto, música de João Loio, e as interpretações de Rui Oliveira, Glória Férias, Jorge Vasques, Mário Moutinho, Adriano Martins, Augusta Silva, Cristina Alves, Luciano Nogueira, Carla Maciel, Rute Miranda, Nuno Miguel e Isabel Millet.

(adorocinema.com)

3 – Fernanda Montenegro, nome artístico de Arlette Pinheiro Monteiro Torres, aparece apenas por uma vez no filme de Walter Salles Jr., já na ponta final da história, em cadeira de rodas, e interpretando Eunice Paiva. Não diz uma única palavra. Mas a forma como fala com o seu olhar confirma a sua condição de “grande dama da dramaturgia brasileira” e de “a maior atriz da história do Brasil”. Fernanda Torres, sua filha, herdou os seus genes. Não admira que esteja nomeada para os Óscares na categoria de Melhor Actriz, pelo seu desempenho como Eunice Paiva, depois de já ter vencido um Globo de Ouro. “Ainda Estou Aqui” está, igualmente, nomeado para Melhor Filme Internacional. A 3 de Março, saberemos se a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, fundada em Los Angeles, no ano de 1927, também distingue a obra de Walter Salles e a actriz Fernanda Torres.

Fontes consultadas: Wikipédia e sítio electrónico da companhia “Seiva Trupe”.

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10/02/2025

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Soares Novais

Porto (1954). Autor, editor, jornalista. Tem prosa espalhada por jornais, livros e revistas. Assinou e deu voz a crónicas de rádio. Foi dirigente do Sindicato dos Jornalistas (SJ) e da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP). Publicou o romance “Português Suave” e o livro de crónicas “O Terceiro Anel Já Não Chora Por Chalana”. É um dos autores portugueses com obra publicada na colecção “Livro na Rua”, que é editada pela Editora Thesaurus, de Brasília. Tem textos publicados no "Resistir.info" e em diversos sítios electrónicos da América Latina e do País Basco. É autor da coluna semanal “Sinais de Fogo” no blogue “A Viagem dos Argonautas”. Assina a crónica “Farpas e Cafunés”, na revista digital brasileira “Nós Fora dos Eixos”.

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