Ainda há alunos sem aulas!
Terminou, no dia 18 de Dezembro, o primeiro período lectivo. Sabemos que cerca de 300 mil alunos estiveram, pelo menos, entre três semanas a um mês, sem algum professor no primeiro período. Estas informações foram dadas pela Federação Nacional dos Professores (Fenprof). Números que nos devem preocupar. Se não são números rigorosos, andarão muito perto da verdade, embora a própria tutela ministerial tenha dúvidas sobre eles. Não deixa de ser estranha esta dúvida! A tutela ministerial tem obrigação de saber, com rigor, o que se passa nas escolas! Não estamos no reino do “achismo”. Aqui, como em tantos outros campos, o país precisa de ter números rigorosos ou exactos.
O que podem significar estes números, apresentados pela Fenprof? Supostamente, significam, apenas, a falta de eficácia do Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI), que continua incapaz de resolver cabalmente o problema, mas também a prova de que a diferença relativamente ao ano lectivo anterior é mínima. A Fenprof admitiu, até, que a situação poderia ser bem pior. E se não o é, foi porque o MECI recorreu a alguns expedientes para disfarçar o problema. Entre tais expedientes, encontramos a atribuição de horas extraordinárias a vários docentes, recurso que, apesar de tudo, pode ser o menos mau, embora signifique maior sobrecarga para a classe docente. Mas o pior expediente parece ser o de apostar na colocação de professores sem formação em ensino, os quais têm apenas habilitação própria, e de técnicos especializadas com “formação científica adequada”, mas sem a exigida formação psicopedagógica.
Segundo os números avançados pela Fenprof, até ao momento, já foram contratados mais de quatro mil docentes com habilitação própria. São docentes que têm créditos em cursos superiores na área em que dão aulas, mas não têm formação pedagógica, adquirida num mestrado em ensino, o que representa um número recorde.
Sabemos também que outro expediente para resolver o problema foi o convite feito aos professores aposentados para regressarem às escolas, mas poucos terão aceitado o desafio. O MECI desejava, pelo menos, o regresso de 200 professores. No entanto, consta que só terão respondido ao convite 63 docentes. O que, digamos, em abono da verdade, se pode considerar uma bonita decepção!
Outro recurso foi o pedido feito aos docentes para que adiassem a sua aposentação, mediante o pagamento de um suplemento remuneratório, que poderia chegar aos mil euros e, afinal, acabou em 285 euros! Este expediente não terá dado bons resultados, já que os docentes viram que as promessas feitas não foram cumpridas, cabalmente.
Um outro recurso, ainda, foi a colocação, no sistema, de novos professores. Consta que foram abertas 2309 vagas para as escolas mais carenciadas, mas foram apenas recrutados 265 novos professores, porque outros já eram professores contratados que estavam a dar aulas.
Ouvimos, igualmente, falar do recurso a docentes do ensino superior, de investigadores, de doutorados e até de professores imigrantes devidamente qualificados. Porém, sobre o efeito deste recrutamento, as conclusões não são até gora conhecidas.
O que devemos pensar desta situação?
Em Setembro, o ministro da Educação, Ciência e Inovação, Fernando Alexandre, declarou: “Eu diria que é a falha mais grave do nosso sistema educativo e da escola pública porque aquilo que ela tem de fazer que é garantir o acesso a todos, e em particular às crianças de meios socioeconómicos mais desfavorecidos, [mas] não está a cumprir esse papel.”
Mais tarde, o mesmo governante assumiu responsabilidade por ter avançado, ao semanário Expresso, dados errados sobre o número de alunos sem aulas a, pelo menos, uma disciplina, explicando que qualquer comparação com o último ano lectivo era, afinal, impossível. E, nessa altura, confirmou que tinha pedido uma “auditoria externa aos dados sobre alunos sem aulas no passado ano lectivo”. Alguém conhece os resultados desta auditoria? Servirão para alguma coisa? Ou serão, somente, mais um dado para continuar o “bate-boca” entre os dois partidos do arco da governação?
Recentemente, em Novembro, o primeiro-ministro, Luís Montenegro, terá declarado que “estamos praticamente dentro do objectivo; para ser rigoroso, andaremos na casa dos 89% de diminuição”. Como seria previsível, a resposta da oposição, perante estas declarações (que não traduzem rigor, mas se ficam pelas aproximações), logo se fez ouvir. E, por isso, a deputada Alexandra Leitão, líder do grupo parlamentar do Partido Socialista observou que “este governo não gosta de números”, adiantando: “Entre incorrecções e omissões, propositais ou não, falta de transparência… A verdade é que, quando toca a números, este Governo falta à verdade aos Portugueses.”
Qualquer um de nós, certamente, já se interrogou por que motivo faltam docentes. Hoje, sabemos que mais de metade da classe docente estará reformada dentro de 10 anos e que a substituição natural não está a acontecer. Actualmente, a carreira não é atractiva; os cursos mais virados para o ensino, estão sem candidatos que queiram dar aulas; as burocracias encravam procedimentos e afastam muitos.
Consta que, nos próximos cinco anos, cerca de 20% dos professores estará na reforma e que, nos próximos dez anos, se estima que corresponderão a 58%, mais de metade da classe. Esta falta de professores é um problema que se tem agravado, ano após ano, e as consequências podem ser complexas.
Neste momento, a situação é complicada nas áreas da Grande Lisboa e Vale do Tejo, do Algarve e em alguns sítios do Alentejo. Recentemente, Paula Carqueja, presidente da Associação Nacional de Professores (ANP), enunciou algumas explicações para a falta de professores: a não atractividade de uma profissão desgastada e desgastante; a instabilidade de uma colocação constante; as dificuldades dos exigentes horários; o vencimento pouco sedutor; as exigências de resposta a outras actividades que ultrapassam a função docente; a falta de condições laborais; a distância da residência; a falta de apoios financeiros para as deslocações, aquilo que a maioria das profissões têm (as ajudas de custo, a viatura, o seguro de saúde, o seguro de risco, etc.).
Todavia, há mais razões. Entre elas, temos de destacar a falta de investimento dos sucessivos governos na Educação e também de uma acção estratégica concreta e na aplicação de medidas que produzam, efectivamente, o aliciamento dos jovens para a docência. Como considera Paula Carqueja, tal como recorda Sara R. Oliveira, no artigo “Falta de professores: há motivos para preocupações”, no sítio electrónico Escola Virtual, “há um grande desprestígio da profissão”. Segundo a presidente da ANP: “Ser professor é ter muita responsabilidade, muita obrigação e pouca ou nenhuma valorização.” Nesse contexto, Paula Carqueja remata: “Um país sem professores é um país sem desenvolvimento cultural, científico, social e económico. Sendo a Educação de um país a sua riqueza principal e fundamental, podemos considerar que o nosso país será um país empobrecido a todos os níveis.”
Hoje, segundo a presidente da ANP, ninguém parece ter dúvidas de que o decreto-lei que rege o concurso de docentes deve ser reformulado e melhorado para que os futuros professores tenham uma visão global no acesso ao mercado de trabalho da carreira docente. Por isso, Paula Carqueja defendeu que se “torna urgente, e já é tardia, uma reflexão política para serem encontradas e promovidas soluções, para reforçar esta profissão que deve ser uma profissão central para o século XXI”. “Torna-se urgente uma reflexão para que não se repita o que aconteceu nas décadas de 70/80 do século passado, quando houve a necessidade de contratar pessoas com habilitações académicas multidisciplinares, e insuficientemente ou deficientemente qualificados e sem conhecimentos pedagógicos e que eram denominados de docentes”, sublinhou a presidente da ANP.
Manuel Pereira, na qualidade de professor, de director escolar e de presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), manifestou o que, para todos, é uma evidência: “[…] só quem anda muito distraído não terá ainda percebido que a falta de professores não é um problema de hoje, é um problema que se arrasta e que piora de ano para ano.” O presidente da ANDE acrescentou que “as Escolas Superiores de Educação estão vazias e [que] quem entra não coloca a docência como primeira opção”, concluindo que “a Educação não pode sobreviver com legionários que vão para cursos de docência porque não têm outra solução”.
O mesmo dirigente da ANDE refere outros constrangimentos que condicionam o nosso presente, notando que grande parte dos professores não aceitam horários incompletos ou temporários, que, em alguns casos, mal dariam para pagar as deslocações. E acrescenta que “se o sistema está com dor de cabeça, precisa de aspirina”. Manuel Pereira repara, até, que a tutela, em áreas muito carenciadas, como a da Grande Lisboa, devia considerar completos os horários incompletos, à semelhança do que já se fez noutras zonas de Portugal. Não podemos ter é situações de docentes que não ganham para aquilo que gastam em deslocações e residência. O mesmo docente defende ainda que “as autarquias e as associações de municípios deviam arranjar formas de cativar professores para os seus territórios, à semelhança do que foi feito quando não havia médicos no interior do país”.
Na mesma linha de pensamento, se pronunciou também Filinto Lima, professor e director escolar e presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), referindo que “há um problema estrutural, de fundo, e um problema conjuntural que pode ser resolvido de imediato, por exemplo, através da contratação de escolas, nas chamadas reservas de recrutamento, contornando uma espera que pode durar duas semanas e duas rejeições de horários”. Ainda na opinião de Filinto Lima, “não houve investimento na carreira docente, na profissão.” Por conseguinte, a seu ver, os “ministérios não deram valor, até desvalorizaram a função de professor e a respectiva carreira”.
Toda esta situação da falta de professores é, para o docente Paulo Guinote, “uma tempestade anunciada”, uma vez que “a falta de professores resulta de uma política errada de gestão dos recursos humanos ao longo dos últimos 20 anos, porque se associou uma desconsideração pública dos professores à proletarização crescente da sua condição material. Ainda há poucos anos tínhamos dezenas de candidatos ao concurso externo que ficavam por colocar”. E Paulo Guinote recorda ainda que, com o argumento de que os professores eram caros, as condições de trabalho dos docentes tornaram-se cada vez mais precárias. Isto para não falar, já, da progressão na carreira que os professores viram estrangulada, nem do desaparecimento de anos completos de trabalho realizado.
Neste quadro, Paulo Guinote defende que, mais do que nunca, a profissão docente tem de ser atractiva e sem estrangulamentos artificiais. Por isso, advoga que é importante “dignificar o trabalho dos professores contratados, reduzindo a precariedade que leva a que tenham de ser colocados em duas ou três escolas para completarem um horário”. E acrescenta que não se podem mudar as regras dos concursos, sempre no sentido de dificultar a vinculação ou de conseguir horários completos na contratação. Na sua perspectiva, é fundamental “alterar um discurso político que menoriza de forma sistemática os professores, como se fossem peças facilmente substituíveis”, quando todos nós já percebemos que não são! E os resultados, diremos nós, estão presentemente à vista.
Esperamos ter fornecido um conjunto de dados que possam permitir, a quem nos lê, uma cabal análise desta grave situação. Contudo, como expressa o professor Alexandre Henriques, autor do blogue ComRegras, talvez “a questão que se deva colocar não é o motivo para a falta de professores, mas, sim, quais os motivos para que, até hoje, nada tenha sido feito para resolver este problema. Estamos perante um caso grave de negligência onde os responsáveis pertencem a vários governos e ministros da Educação”.
Quando é que os vários responsáveis por esta situação que se arrasta assumirão as suas responsabilidades?
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Nota da Redação:
Este texto de José Vieira Lourenço é uma versão mais alargada de um artigo de opinião com igual título e que foi também publicado na rubrica “Olhares sobre a Educação” do Jornal Mirante, de Miranda do Corvo, em Janeiro de 2025.
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02/01/2025