Albânia cria microestado soberano para sede da ordem muçulmana sufi
Edi Rama, primeiro-ministro albanês afirma que pretende promover o Islão tolerante, através da criação do Estado-lei. Assim, em Tirana, a capital, será criado um enclave semelhante à Cidade-Estado do Vaticano. Porém, ali a Cidade-Estado será muçulmana.
Efetivamente, o New York Times noticiou, a 21 de setembro, que o primeiro-ministro da Albânia, Edi Rama, vai anunciar planos para um microestado soberano na sua capital, que seguirá as práticas da Ordem Bektashi – uma ordem sufi xiita fundada no século XIII, na Turquia.
Se tudo correr como planeado, o “Estado Soberano da Ordem Bektashi” tornar-se-á o estado mais pequeno do Mundo, com menos de um quarto do tamanho da Cidade-Estado do Vaticano. O pedaço de terra de 10 hectares terá a sua própria administração, passaportes e fronteiras. A administração autorizará o consumo de álcool, permitirá que as mulheres vistam o que quiserem e não imporá regras de estilo de vida, refletindo as práticas tolerantes da Ordem de Bektashi.
Segundo Edi Rama, o objetivo do novo estado é promover a versão tolerante do Islão de que a Albânia se orgulha. “Devemos cuidar deste tesouro, que é a tolerância religiosa e que nunca devemos tomar como garantido”, disse ao The New York Times.
A História dos Bektashis remonta ao Império Otomano do século XIII, mas, há quase um século, a sede da Ordem mudou-se para Tirana, depois de ter sido banida da Turquia por Mustafa Kemal Ataturk, o pai fundador da República Turca.
A Ordem de Bektashi tem longa tradição mística na Albânia. Foi adotada pelos janízaros, os soldados de elite do Império Otomano, recrutados, em grande parte, nas regiões cristãs dos Balcãs. A fé sufi não obriga os devotos a observar os princípios básicos do Islão tradicional.
Porém, a tolerância não se traduziu em proteção contra a perseguição. Durante centenas de anos, os fiéis viram-se sob pressão – quer os seus senhores fossem cristãos quer fossem muçulmanos ou ateus – o que os levou a países vizinhos, como o Kosovo e a Macedónia, desde a conquista dos Balcãs pelo Império Otomano nos séculos XIV e XV.
Os Bektashis são dedicados a homens sábios, conhecidos como dervixes. Um dervixe é um praticante aderente ao islamismo sufista, que segue o caminho ascético da “Tariqah” (ordem religiosa sufi), conhecidos pela sua extrema pobreza e austeridade. Neste aspeto, os dervixes são similares às ordens mendicantes dos monges cristãos e dos sadhus hindus, budistas e jainistas.
O dervixe Baba Mondi, o atual líder espiritual da ordem, conhecido dos seguidores pelo seu título oficial, Sua Santidade Haji Dede Baba, deverá ser o líder do “Estado Soberano da Ordem Bektashi”. Diz que as decisões serão tomadas com “amor e bondade”. Numa entrevista à Euronews, em 2018, afirmou: “Ser um Bektashi significa ser humano. Construímos a nossa comunidade com base nos princípios da paz, do amor e do respeito mútuo.”
Uma equipa de peritos está a trabalhar na legislação que define o estatuto de soberania do novo estado dentro da Albânia. O Partido Socialista de Rama, no poder, também terá de a aprovar.
Baba Mondi manifestou a esperança de que os Estados Unidos da América (EUA) e outras potências ocidentais reconheçam a soberania do seu estado. “Merecemos um Estado”, disse ao The New York Times. “Somos os únicos no Mundo que dizem a verdade sobre o Islão” e “não o misturam com a política.”
Segue-se um excursus de conceitos conexos com este ramo tolerante do Islão.
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O Sufismo é a escola de sabedoria no interior do islamismo, definida, ora como “misticismo islâmico”, ora como “esoterismo islâmico”. Todavia, sufismo é isso e mais: é escola espiritual que busca a verdade espiritual como objetivo último a alcançar por todo o ser consciente. Essa busca só pode acontecer com a compreensão da realidade como ela é, sem véus, mentiras ou ilusões. E, quando o sufismo fala de conhecimento, refere-se ao perfeito autoconhecimento que leva à compreensão do Divino. Esse princípio lógico é baseado num dito fundamental do profeta Maomé: “Quem se conhecer a si mesmo conhecerá o seu Senhor.”
No Irão, por exemplo, a grande maioria dos mulás xiitas opõe-se ao sufismo. Também, entre os sunitas, a imensa maioria dos ulemás está mais interessada na interpretação literal do Alcorão e nas suas correlações jurídicas do que nas especulações morais e metafísicas dos sufis, por eles consideradas suspeitas. Eis porque, face a tanta oposição, os seguidores do sufismo preferem manter-se na penumbra, trabalhando sem alarde e, sobretudo, sem fazer publicidade dos seus atos.
Por outro lado, o sufismo não é um movimento unitário. Cada instrutor sufi possui um grupo de discípulos atraídos pela reputação dos mestres. Estes admitem, no máximo, pertencerem a uma “confraria” fundada, por sua vez, por algum famoso “mestre sufi”, em tempos remotos.
A espiritualidade desenvolvida pela tradição sufi é, em muitos aspetos, bastante original. Na sua visão, a aproximação a Deus acontece por degraus. Primeiro, há que respeitar as leis do Alcorão, o que é só um degrau que não leva, necessariamente, à compreensão de Deus e do Mundo. As práticas ritualísticas não servem para nada, se não se conhece o seu significado secreto.
Apenas com uma iniciação a pessoa obtém a possibilidade de ver através da aparência das coisas. Por exemplo, o homem é um microcosmo, no qual é possível encontrar a imagem do universo inteiro, o macrocosmo. Assim, para o sufismo, é natural que, ao nos aprofundarmos no conhecimento do homem, aprofundemos o nosso conhecimento de Deus. Uma coisa leva à outra.
De acordo como os sufis, toda a existência vem de Deus e apenas Deus é real. O Mundo criado é um reflexo do Divino: “O Universo é a sombra do Absoluto.” A habilidade para discernir a presença real de Deus por trás dos véus das coisas exige pureza de alma: “O homem é um espelho que, polido, reflete Deus.” O Deus que os sufis descobrem é, sobretudo, um Deus de Amor, e a via que leva a Ele é a via do Amor: “Aquele que conhece Deus ama-O; aquele que só conhece o Mundo afasta-se Dele.” “Se quiser ser livre, torne-se prisioneiro do Amor.”
Ao postular valores como esses, o sufismo aproxima-se da mística cristã. Nesse sentido, é curioso observar as similaridades entre o sufismo e outras correntes filosóficas e religiosas.
Originariamente, o sufismo foi influenciado pelo pensamento pitagórico e pelo zoroastrismo, antiga religião da Pérsia. Os ritos de iniciação sufi, destinados a abrir no fiel a possibilidade do renascimento espiritual, são similares ao batismo cristão e têm claros pontos de encontro com o budismo, como na fórmula sufi: “O homem é não existente diante de Deus”.
A mesma diversidade e a mesma imaginação são encontradas nas diferentes técnicas espirituais do sufismo. Em algumas ordens sufis, como a dos dervixes, a busca de Deus por meio do simbolismo passa pela música e pela dança, que transcendem o pensamento. Noutras correntes sufis, o simbolismo é um exercício intelectual em que se medita a respeito do valor numérico das letras, como fazem os judeus cabalistas. Outras vezes, a prática consiste na interminável repetição da invocação dos nomes de Deus, como o fazem hinduístas e budistas, com os seus mantras.
O sufismo traz ao Islão dimensões poéticas e místicas impossíveis de serem encontradas nas análises intelectuais dos textos do Alcorão, feitas pelos exegetas islâmicos. Essa é uma das razões pelas quais muitos destes últimos procuram marginalizar o sufismo. É também a razão pela qual os sufis insistem em remontar as suas posturas ao profeta Maomé. Afirmam que Maomé recebeu, simultaneamente com o Alcorão, revelações esotéricas que expôs só a alguns dos companheiros. Assim, para ganharem mais autenticidade, quase todos os mestres sufis ligam os seus ensinamentos a uma longa linhagem de predecessores.
De qualquer modo, é inegável que os princípios do sufismo são todos baseados nas regras e ensinamentos do Alcorão e nas instruções deixadas por Maomé. Para um sufi, não há separação entre todas as formas criadas e o Criador. Se a maior parte das pessoas não percebe essa unidade fundamental, é por conta dos nafs, as impurezas de toda ordem que carregamos dentro de nós, e pelas limitadas ferramentas físicas, emocionais e mentais de que a Humanidade dispõe.
Se o homem fosse livre das limitações da matéria, seria capaz de testemunhar essa imensa e eterna unidade do Ser. Mas há uma hipótese para a Humanidade ascender a tal nível de compreensão, um caminho que pode ser percorrido pela purificação e meditação. Quando o coração da pessoa está purificado, as manifestações do Divino refletem-se no espelho do seu coração. Só então o homem ascende do nível da sua natureza animal para o nível de ser humano real.
Como todos os princípios contidos nos ensinamentos sufis são baseados no Alcorão, é impossível dizer-se que o sufismo está conectado a qualquer outra religião, além do Islão. Porém, o sufismo é escola universal, na medida em que a busca da compreensão verdadeira do Mundo e da existência e a busca do conhecimento abstrato da realidade constituem preocupações universais.
Enquanto durar a Humanidade, a busca por essa compreensão perdurará. A História mostra-nos que toda a nação e toda a religião criam e desenvolvem a sua própria maneira de exprimir essa busca espiritual universal. Surgido do coração do Islão, o sufismo é uma dessas maneiras.
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Bektashiyyah, ordem mística sufi fundada, de acordo com as próprias tradições, por Ḥājjī Bektāsh Walī de Khorāsān, no século XIII. Adquiriu forma definitiva no século XVI, na Anatólia (Turquia) e espalhou-se pelos Balcãs Otomanos, particularmente pela Albânia.
Originariamente uma das muitas ordens sufis dentro do Islão sunita ortodoxo, a ordem Bektashi, no século XVI, adotou princípios do Shiʿah, incluindo a veneração de ʿAlī, genro de Maomé, e os doze imãs. Como muitos sufis, os Bektashis eram negligentes na observância das leis muçulmanas diárias, e tanto as mulheres como os homens participavam em rituais de consumo de vinho e de danças em cerimónias devocionais. Os Bektashis, nos Balcãs, adotaram práticas cristãs como a partilha ritual do pão e a confissão dos pecados. Os escritos místicos de Bektashi deram uma rica contribuição à poesia sufi.
Os Bektashis adquiriram importância política no século XV, quando a ordem dominou os janízaros, corpo militar de elite otomano recrutado em terras cristãs. A sua influência diminuiu depois de 1826, quando os janízaros foram dissolvidos, mas a ordem sofreu um renascimento no final do século, com a reconstrução dos mosteiros e com o florescimento da atividade literária na Turquia e na Albânia.
Depois de 1925, quando todas as ordens sufis foram dissolvidas na Turquia, a liderança Bektashi mudou para a Albânia. Com a proibição da religião na Albânia, em 1967, as devoções Bektashi foram realizadas por comunidades na Turquia, nas regiões albanesas dos Balcãs e nos EUA. As tradições Bektashi foram revividas na Albânia, desde a queda do comunismo, no início da década de 1990.
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Os janízaros eram membros de um corpo de elite do exército permanente do Império Otomano do final do século XIV a 1826. Altamente respeitados pelas suas proezas militares nos séculos XV e XVI, tornaram-se poderosa força política no estado otomano. Nos tempos de paz, foram usados para guarnecer cidades fronteiriças e policiar a capital, Istambul. Constituíram o primeiro exército permanente moderno na Europa.
O corpo de janízaros era originalmente composto por devşirme, sistema de tributo pelo qual jovens cristãos eram retirados das províncias dos Balcãs, convertidos ao Islão e convocados para o serviço otomano. Sujeitos a regras estritas, incluindo o celibato, foram organizados em três divisões desiguais (cemaat, bölükhalkı e segban) e comandados por um ağā.
No final do século XVI, a regra do celibato e outras restrições foram relaxadas e, no início do século XVIII, foi abandonado o método original de recrutamento, abrindo as fileiras aos turcos muçulmanos. Os janízaros eram conhecidos, principalmente, pelo seu tiro com arco, mas, no século XVI, também se tornaram um formidável contingente de poder de fogo.
A suprema destreza e disciplina dos janízaros permitiram tornarem-se cada vez mais poderosos no palácio. A partir do reinado de Bayezid II (1481-1512), exigiam regularmente que os sultões fornecessem pagamentos extras em troca do apoio do corpo. Contudo, os custos de manutenção das forças armadas revelaram-se cada vez mais inacessíveis para o império e aumentaram as tensões crescentes entre os janízaros e o sultão. Uma tentativa de Osman II (1618-1622) de os disciplinar e de lhes reduzir os salários levou à sua execução. Depois, eles frequentemente arquitetaram golpes palacianos. Num caso, conspiraram com funcionários judiciais e derrubaram İbrahim pela sua absoluta incompetência na governação.
No início do século XIX, resistiram à adoção de reformas europeias pelo exército otomano. O seu fim veio em junho de 1826, no Incidente Auspicioso. Ao saber da formação de novas tropas ocidentalizadas, os janízaros revoltaram-se. O sultão Mahmud II declarou guerra aos rebeldes e, diante da sua recusa em se renderem, disparou tiros de canhão contra os seus quartéis. A maioria dos janízaros foi morta e os feitos prisioneiros foram executados.
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Enfim, não há um só Islão. Para lá dos ramos mais fortes (sunitas e xiitas), temos a respeitável Ordem de Bektashi, com a mística do sufismo, que pode, pela via da tolerância, tornar-se um instrumento da paz mundial. Oxalá!
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23/09/2024