Amadú Dafé: “A Guiné-Bissau é um país de uma pluralidade quase impronunciável”

 Amadú Dafé: “A Guiné-Bissau é um país de uma pluralidade quase impronunciável”

“Ser apresentador do ‘Mar de Letras’ tem sido uma escola de humildade”, reconhece Amadú Dafé. (rtp.pt)

Amadú Dafé é natural da Guiné-Bissau. Atualmente, a residir em Portugal, apresenta o programa “Mar de Letras” do canal televisivo RTP África. É cofundador da Casa da Cultura da Guiné-Bissau, em Lisboa, membro efetivo da Associação de Escritores da Guiné-Bissau (AEGUI) e do Centro PEN Guiné-Bissau. Em 2021, organizou a publicação do livro “Florbela Espanca – Alma Sonhadora, Irmã Gémea de Fernando Pessoa”, obra vencedora do “Prémio Livro do Ano Bertrand 2021”, na categoria reedição. São da sua autoria os livros “Magarias”, “Ussu de Bissau” – obra finalista do “Prémio Literário Fundação Eça de Queiroz e Fundação Millennium BCP” (em 2021) –, “Jasmim”, “A Cidade que Tudo Devorou” e “A Selva Mágica das Sarnadas de Ródão”. É ainda coautor da obra “Fora de Jogo”. Venceu o “Concurso Lusófono da Trofa – Prémio Matilde Rosa Araújo” (em 2012) e o “Prémio Literário José Carlos Schwarz” (em 2015 e em 2017).

Amadú Dafé começou a frequentar as oficinas em língua portuguesa, na Guiné-Bissau, e apaixonou-se pela língua de Camões. (rtp.pt)

Lurdes Breda – sinalAberto (sA) – Parece consensual a ideia de que as suas obras agregam a busca e a afirmação da identidade, da multiculturalidade e do transcendente que habita grande parte da cultura africana. O enredo das histórias que escreve, à mistura com o aspeto literário e ficcional, retrata e expõe igualmente a realidade social e política da Guiné-Bissau. O Amadú Dafé partilha da opinião de que também ao escritor cabe a responsabilidade de exercer a sua cidadania naquilo que podemos designar de uma “literatura implicada”?

Amadú Dafé (AD) – Partilho, sim. E, mais do que isso, assumo essa responsabilidade. Não o faço, porém, como quem carrega uma bandeira para o campo da batalha, mas apenas porque não me sei calar. Porque encontrei, no verbo, o único abrigo possível contra a vergonha do silêncio. No início, confesso, escrevia, sobretudo, por fascínio. Fascínio pelas estórias contadas nas varandas da minha aldeia, pelos mitos que escapam ao tempo e sobrevivem nos corpos das avós, pelos nomes que carregam mais do que identidade, carregam memória. A Guiné-Bissau é um país de uma pluralidade quase impronunciável. Mais de trinta línguas, tantas culturas, tantos modos de ver o mundo como há rios a escorrer para o Geba. E eu quis, talvez ingenuamente, ser um arquivo ambulante disso tudo. Recolher, organizar, recontar. Como quem acredita que partilhar a nossa diversidade é uma boa forma de enriquecer a Humanidade inteira. Mas a literatura, quando é verdadeira, cresce connosco. Um dia, percebi que contar histórias não bastava. Até porque não se pode ser guineense e ser indiferente ao estado em que o país está. Não se pode escrever da Guiné-Bissau e fingir que não se vê a degradação institucional, a falência moral, a trágica banalização da violência, da corrupção, do saque, da impunidade. Não se pode olhar para o desmoronar de uma nação inteira e continuar a escrever apenas sobre o encantamento da vida das tabancas. Isso seria traição. Ou covardia. Eu comecei, na verdade, a escrever por necessidade. Por desejo de domar a Língua Portuguesa, que, aliás, nem era a minha língua materna. Tinha vinte anos, para aí, e ainda me custava ordenar uma ideia com fluidez em Português. Foi no ensino secundário, com o apoio do projeto PASEG – Programa de Apoio ao Sistema de Ensino Português, que me ofereceram uma coisa rara: tempo e paciência. Os professores portugueses em Bissau que corrigiam os meus textos, incentivavam-me a continuar, faziam-me sentir que talvez valesse a pena insistir. E eu insisti. Comecei a escrever mais. Os contos vieram. Vieram os prémios. E com eles, as editoras, os leitores, as responsabilidades. Hoje, vejo como os meus primeiros livros eram meros exercícios de aprendizagem, de domínio da linguagem, quase de sobrevivência linguística. Com o tempo, o que era apenas técnica foi ganhando consciência. E com a consciência veio a raiva, a urgência. O que era mero relato transformou-se em denúncia. O que era partilha de tradição tornou-se combate. Porque escrever, hoje, para mim, já não é só um ato de beleza, é também uma resistência. A minha literatura, se quiser ser útil, tem de ser implicada. E se não for militante, que, ao menos, seja insubmissa. Porque o Mundo merece mais do que contos bonitos.

“Um dia, percebi que contar histórias não bastava. Até porque
não se pode ser guineense e ser indiferente ao estado em que o
país está”, manifesta Amadú Dafé. (odemocratagb.com)

sA – Como é referido, aquilo que escreve espelha muito da herança cultural identitária guineense, pela inclusão de crenças, de tradições e de valores. Num mundo cada vez mais globalizado e tecnológico, que relevância tem a transmissão desse conhecimento para as gerações vindouras?

AD – A relevância é total. Porque não se trata apenas de preservar o que nós somos, mas de garantir que continuamos a sê-lo num mundo que insiste em apagar as diferenças. Num mundo em que as grandes narrativas tentam homogeneizar os sonhos, os corpos, os sabores, as línguas e os desejos. A tradição deixa de ser apenas um legado e passa a ser uma frente de resistência. A cultura, entendida como aquilo que herdamos, sim, mas também como aquilo que escolhemos ser, torna-se um ato de afirmação e, mais do que isso, de soberania, de identidade. A Guiné-Bissau, como se sabe, é um país plural, onde convivem, às vezes em silêncio, às vezes em fricção, dezenas de povos com cosmovisões distintas. Cada um com o seu sistema simbólico, com as suas formas de organização social, com a sua noção de justiça e com a sua ligação ao invisível. E há uma sabedoria aí, antiga, ancestral, que nunca foi escrita, mas foi sendo vivida e transmitida de geração em geração. Transmitida de boca em boca, de gesto em gesto. O problema é que estamos a perder essa transmissão. E não por culpa do Mundo, que é como é, mas por culpa também nossa, que vamos apagando os nossos próprios fogos com as mãos do esquecimento. Se a juventude guineense de hoje já não fala a língua da sua avó, já não entende o que quer dizer uma história contada ao luar, não é porque lhe falta inteligência. É porque lhe falta o acesso. Falta-lhe a mediação, a valorização e o incentivo. E isso é uma responsabilidade coletiva, das famílias, das escolas, dos líderes. Se não criarmos pontes entre o que fomos e o que somos, acabaremos por viver como gente desenraizada, com um nome imposto, uma fé importada, um ideal de vida que não nos pertence. A literatura é um dos poucos instrumentos que podem contrariar esse processo. Escrever sobre o que é nosso, ainda que com vírgulas tortas e gramáticas alheias, é uma forma de dizer que não abdicamos do direito de sermos diferentes em nome da globalização.

Amadú Dafé, um nome cimeiro de uma nova geração
de intelectuais da Guiné-Bissau, integrou a delegação
de escritores para a Feira do Livro de Leipzig, que decorreu entre
21 e 24 de março de 2024. (mileniofm.info)

sA – A sua escrita abarca tal-qualmente pensamentos e questões de cariz filosófico, sobretudo, no que à condição humana diz respeito. É uma forma de levar as pessoas a refletirem e a questionarem-se mais sobre a vivência na(s) nossa(s) sociedade(s)?

AD – É. E talvez seja isso o que me move: fazer da escrita um espelho, ainda que baço, onde cada um possa reconhecer qualquer coisa de si e se atrever a perguntar-se: “Porque sou assim?” Viver, nos dias que correm, e nos que já correram antes, não é apenas uma sucessão de noites e de dias; é uma sucessão de equívocos, de medos camuflados, de desejos inconfessáveis e, sobretudo, de fugas. Fugimos da responsabilidade, da memória, da lucidez. Fugimos de nós. E se escrevo – e escrevo cada vez mais – é porque acredito que há perguntas que já não cabem nos discursos formais, nem nas arengas políticas, nem sequer nos manuais de Filosofia. Precisam de ser colocadas num outro tom. Talvez com mais ternura ou mais ironia, talvez com poesia ou com raiva, mas precisam de ser feitas. A minha escrita não oferece respostas. Eu, aliás, desconfio de quem anda por aí a distribuí-las como quem distribui panfletos. A escrita serve, isso sim, para incomodar, para desalojar o pensamento, para desarrumar as certezas. E quando falo da condição humana não o faço como quem carrega uma bandeira de superioridade moral. Faço-o enquanto alguém que tropeça nos mesmos dilemas todos os dias: o medo da solidão, o cansaço da injustiça, o desejo de amar sem condições, a vontade de mudar o mundo e a inércia que nos mantém colados à cadeira.

“Se escrevo – e escrevo cada vez mais – é porque acredito que há
perguntas que já não cabem nos discursos formais, nem nas
arengas políticas, nem sequer nos manuais de Filosofia”, sublinha
Amadú Dafé. (Direitos reservados)

sA – Qual é a importância da intertextualidade nas suas obras?

AD – A intertextualidade, se quisermos, é como o fumo que denuncia o lume: está lá, ainda que ninguém o veja. E não é que o faça por intenção técnica ou por cálculo estético, mas porque escrever, para mim, é um diálogo constante com os vivos e com os mortos. Com os que escrevem de cá e os que escreveram de lá, com os que souberam sonhar e os que apenas resistem. Não me lembro de um único texto que tenha escrito sem ter ouvido vozes alheias a sussurrarem dentro de mim… Vozes de outras geografias e temporalidades, que me ajudam a pensar o Mundo de forma mais indisciplinada. Cito pouco, é verdade, mas converso muito com os livros, com os provérbios, com as canções antigas. Com os poemas que a minha mãe nunca leu, mas que viveu. A intertextualidade é, para mim, apenas uma ferramenta estilística. É, principalmente, uma forma de reconhecimento de que eu sou o que leio, o que oiço contar… Na Guiné-Bissau, onde as histórias quase nunca são escritas, essa teia de vozes é ainda mais importante. É quase um dever ético. As avós, o griô, o cronista oral, todos eles vivem dentro de mim. E escrever é prestar-lhes homenagem, é dizer que a palavra escrita não tem o monopólio da memória. Tudo isso permite-me situar o leitor num lugar de encruzilhada. Porque é aí, na encruzilhada, que as grandes escolhas acontecem. É ali que o leitor tem de decidir se fica ou se avança, se ouve ou se desliga, se reconhece a metáfora ou se é atravessado por ela sem se aperceber.

“A escrita serve, isso sim, para incomodar, para desalojar o
pensamento, para desarrumar as certezas”, afirma Amadú Dafé.
(youtube.com/c/CláudioAntónioRumal)

sA – Os livros “A Selva Mágica das Sarnadas de Ródão” e “Ussu de Bissau” abordam, ambos, o universo infantil e juvenil. O primeiro sai da esfera guineense para falar da amizade, da ternura, das brincadeiras, da imaginação e da magia. O segundo regressa à Guiné-Bissau para, através da personagem de uma criança talibé e de uma história ficcionada, descrever a realidade chocante de milhares de crianças sujeitas a maus-tratos, mendicidade e miséria. Foi um teste às suas emoções e à sua versatilidade de escritor, urdir as tramas literárias destas duas obras tão antagónicas? Fale-nos da construção e dos objetivos de cada um dos textos.

(Direitos reservados)

AD – Talvez o mais difícil, nisto da escrita, seja aceitar que o que tomamos por “infantil” não seja senão uma mera linguagem, uma ideia. Uma forma de ver o Mundo que, no fundo, exige uma atenção quase espiritual, uma disponibilidade emocional que rasga. Por isso, entre “Ussu de Bissau”e“A Selva Mágica das Sarnadas de Ródão”, não houve propriamente um salto, como quem muda de continente. Houve sim uma travessia, um mergulho em diferentes águas da mesma consciência. Ambos são livros sobre a infância. Porém, não sobre a mesma infância. Um é uma espécie de memória encantada, o outro é uma denúncia. Um é sonho, o outro é pesadelo. Ambos, de formas distintas, são verdadeiros. “A Selva Mágica” foi escrito, em 2021, quando fui passar um fim de semana a Vila Velha de Ródão, em casa de uns amigos, com a promessa de descanso, talvez uma conversa mansa. Bastaram poucas horas para perceber que a verdadeira faísca daquela visita não estaria na paisagem, nem no silêncio das Sarnadas de Ródão, mas na Leonor (a Nonô), uma menina de sete anos, dona de um mundo inteiro. As histórias que me foi contando sobre a escola, a melhor amiga, as personagens que inventava, tudo aquilo me foi prendendo de tal forma, que acabei por deixar os adultos à conversa e passei o Halloween ao lado dela, escrevendo entre travessuras e magias. O livro começou aí, quase como quem faz um pacto com a ternura. Quando voltei para Lisboa, já com o esboço em mãos, senti que tinha em mim a obrigação de o transformar numa narrativa. Pesquisei mais sobre as Sarnadas de Ródão, tentei captar as texturas do lugar, os cheiros, os sons e fui compondo a história como quem tece um manto. Reuni os nomes dos colegas da Nonô, os recantos preferidos, os animais improváveis e deixei que fosse a imaginação da criança a ditar o rumo. Não é um livro meu. É dela. É de todas as infâncias que ainda podem correr entre as árvores sem medo, sonhar sem censura e conversar com gatos que falam. É um manifesto a favor do tempo lento, da liberdade interior, do direito à fantasia como forma de resistência. Já “Ussu de Bissau” foi escrito em 2017, quando regressei ao meu país para trabalhar. Dei-me de frente, numa certa tarde, com a outra infância, aquela que nos apaga o riso. Saía de um supermercado em Bissau quando uma criança talibé, de mão estendida, me abordou. O gesto era pequeno, quase automático, mas o que me atravessou foi o peso de uma história antiga. Porque eu sabia o que aquilo significava. Eu próprio andei em escolas corânicas durante a minha infância. Conhecia os calos daquele chão, o silêncio das madrugadas, o frio das chibatadas e o peso da vergonha. O Ussu, esse menino que eu inventei, é feito de muitos meninos reais. Ele é a fusão da miséria com a fé, da submissão com o abandono. Escrevê-lo foi um ato de coragem e de dor. Porque, mesmo quando escrevemos sobre selvas mágicas e festas de Halloween, sabemos que há crianças que não sabem o que é brincar. Que não têm um quarto, nem um colo. Que são mandadas e não amadas. Que aprendem a viver com medo e a mendigar como destino. “Ussu de Bissau” não foi uma escolha. Foi uma urgência. Um livro escrito contra o esquecimento. Contra a banalização da violência espiritual e física a que o Estado, cúmplice, fecha os olhos. É claro que há um abismo entre os dois livros, mas esse abismo é o retrato do país. Da vida. Da distância entre o que somos e o que gostaríamos de ser. Entre o mato encantado e o Alcorão que chicoteia. Entre o brincar e o sangrar. A minha escrita apenas fez o que pôde: escavou. Procurou uma ponte. E se a encontrou, não sei. Mas tentou. Porque uma infância feliz só pode ser um direito real quando se luta contra as infâncias mutiladas. Talvez tenha sido, sim, um teste à minha versatilidade. Mas, antes disso, foi um teste à minha integridade. Escrever não é, para mim, um exercício de estilo. É o modo que encontrei de respirar. E se me é dada a possibilidade de tocar vidas com palavras, então que essas palavras estejam à altura da dor e da alegria do Mundo. Que sejam espelho. Que sejam denúncia. Que sejam, como o próprio Ussu ou a própria Nonô, sementes. Porque é nas pequenas sementes que a árvore da esperança começa a nascer.

(camoesberlim.de)

sA – Nos seus livros, sobressai uma multiplicidade de culturas e de rituais que coexistem e se misturam muito mais do que se separam. Apesar das inúmeras situações de injustiça social que a sua escrita “denuncia”, devemos, contudo, acreditar que há esperança na Humanidade?

AD – Claro que sim. Acredito por convicção prática, porque se não acreditasse, não escreveria. A escrita, no meu caso, é um ato de denúncia, sim, mas é também um gesto de esperança. Um lugar onde posso reorganizar o Mundo à luz da justiça, nem que seja na ficção. Nos meus livros, há uma multiplicidade de culturas, sim, porque essa é a realidade de onde venho. A Guiné-Bissau é, apesar de tudo, um país de coexistências. Nem sempre harmoniosa, mas real. E essa convivência – entre rituais, línguas e cosmovisões – é a prova de que, mesmo perante injustiças, desigualdades e cicatrizes do passado, como o colonialismo, ainda há forças que resistem. A oralidade que sobrevive. As línguas que persistem. As avós que contam histórias ao luar, quando já não têm quem as escute. A esperança que tenho por mim não é abstrata. É concreta. Está em cada vez que a literatura abre uma fresta para que se diga o que o sistema quer calar. A esperança, para mim, é uma tarefa. Não é um estado de espírito. É trabalho. É construção. E a literatura pode ser uma das ferramentas desse ofício, se for honesta com as suas raízes, com a sua terra e com o seu tempo. Claro que há dias em que o cansaço vence, em que o desencanto se instala. Mas, mesmo nesses dias, escrevo. Porque escrevendo, manifesto-me, resisto. Se a Humanidade ainda tiver salvação, será pela capacidade de se comover com o outro. Por reconhecer que há vozes que nunca tiveram vez e que está na hora de lhes dar página. Palavra. Mundo.

“A escrita, no meu caso, é um ato de denúncia, sim, mas é também
um gesto de esperança. Um lugar onde posso reorganizar o
Mundo à luz da justiça, nem que seja na ficção”, expressa Amadú
Dafé. (Créditos fotográficos: João Carlos/DW)

sA – O Amadú Dafé é membro de várias associações de índole cultural com ligação à Guiné-Bissau. Que género de iniciativas são aí desenvolvidas e em que medida estas associações, principalmente aquelas que estão sediadas noutros países, contribuem para a disseminação das crenças e das tradições guineenses?

AD – As associações culturais ligadas à Guiné-Bissau, como a Casa da Cultura da Guiné-Bissau, em Lisboa, a Associação de Escritores da Guiné-Bissau (AEGUI) ou o Centro PEN Guiné-Bissau, a que pertenço, são, para mim, mais do que estruturas formais: são espaços de resistência simbólica, de memória e de afirmação cultural. Promovemos atividades que vão da literatura à gastronomia, da música à reflexão política. Sempre com o objetivo de manter viva a complexidade cultural guineense, sobretudo, junto das novas gerações e da diáspora. Estas organizações, especialmente as que atuam fora do país, funcionam como embaixadas afetivas e ferramentas de contranarrativa. Recusam a ideia de que a tradição é coisa do passado. Insistem em mostrar que os nossos rituais, mitos e sistemas de pensamento são, também, formas legítimas de filosofia e do Mundo. Divulgamos, sim, mas, fundamentalmente, contextualizamos e politizamos, porque contar uma história guineense, hoje, é um ato de soberania cultural. No fundo, cada atividade, por mais pequena que pareça, é uma maneira de dizer que a Guiné-Bissau existe, pensa, sente e tem o direito de imaginar o seu futuro com dignidade. E isso, para mim, é tão urgente quanto escrever.

A UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) recebeu o lançamento do livro “A cidade que tudo devorou” de Amadú Dafé. (uccla.pt)

sA – Atualmente, na Guiné-Bissau, tal como noutros países de Língua Oficial Portuguesa, um grande número de pessoas continua a falar as línguas nacionais, em detrimento do Português. Sendo a Língua Portuguesa cada vez mais universal, acha que o facto de estas pessoas não a falarem, ou não a dominarem completamente, obsta a que, na esfera profissional, cultural e até social, percam determinadas oportunidades e fiquem restritas a uma espécie de “gueto” face ao resto do Mundo?

AD – Não, não penso assim. E se pensar é, talvez, apenas para contrariar, mas não a contrariando a si, pois percebo bem a sua pergunta. Por norma, sou desconfiado e não me alinho muito na lógica dominante das coisas, muito menos quando essa lógica serve a velha missão civilizadora disfarçada de exigência meritocrática. A questão da língua, sobretudo num país como a Guiné-Bissau, não pode ser abordada sem a consciência histórica, sem olhar para as raízes, para os contextos, para os corpos que falam e os corpos que são calados. A língua não é apenas um instrumento de comunicação, é também, e antes de tudo, uma forma de habitar o Mundo. A pergunta parece simples, mas é armadilhada. Pressupõe que o Português seja, por definição, um passaporte para oportunidades, enquanto as línguas nacionais seriam apenas dialetos da marginalidade, do gueto. E é aqui que devemos parar, respirar e contrariar. A Língua Portuguesa, na Guiné-Bissau, não é uma língua de uso corrente para a maioria da população. Nunca foi. Nem depois da independência. É uma língua oficial, sim, mas essa oficialidade não lhe confere superioridade moral. A maioria do povo fala Crioulo, fala Mandinga, fala Balanta, fala Fula, fala Papel, fala Bijagó. E o que essas línguas carregam não é apenas o som, é o pensamento. É a cultura. A cosmovisão. Achar que quem não fala Português está condenado ao gueto é esquecer que o verdadeiro gueto é construído por quem impõe uma língua única como condição de cidadania. A Língua Portuguesa é importante, claro, mas ela só se fortalece, só pode ser instrumento de libertação, se estiver ao serviço da pluralidade, se for veículo e não barreira, se abrir portas e não construir muros. A Língua Portuguesa deve ser aprendida, sim. Deve ser dominada, sim. Mas não à custa da morte das línguas nacionais. E não como imposição que subalterniza quem não a domina. O verdadeiro desafio está em construir uma sociedade onde todas as línguas sejam vistas como veículos válidos de conhecimento e de expressão. Onde o Crioulo possa ser falado no Parlamento sem que alguém torça o nariz. Onde se possa ensinar Matemática em Balanta ou contar contos em Bijagó. Isso, para mim, seria a verdadeira revolução linguística: uma nação poliglota e consciente, onde ninguém precisa de se anular para se sentir parte do todo. Se o Português for ponte, que se atravesse. Mas se for muro, que se derrube. Afinal, o Mundo é demasiado vasto para caber numa só gramática. E a Guiné-Bissau, por mais pequena que pareça no mapa, é grande demais para se render à monocultura do verbo.

Para Amadú Dafé, a “questão da língua, sobretudo num país como a Guiné-Bissau, não pode ser abordada sem a consciência histórica, sem olhar para as raízes, para os contextos, para os corpos que falam e os corpos que são calados”. (uccla.pt)

sA – No seguimento da questão anterior, será, no entanto, a aprendizagem e o uso da Língua Portuguesa contraproducente? Ou seja, se por um lado o Português tem a virtude de abrir um leque de novas oportunidades, por outro lado, pode contribuir para um maior distanciamento relativamente às línguas maternas e, por conseguinte, à perda da identidade cultural dos diferentes povos?

AD – A aprendizagem da Língua Portuguesa, por si só, não é um problema. O problema, o verdadeiro problema, é a forma como essa aprendizagem se impõe. Como se naturaliza a ideia de que o Português é a língua materna da Guiné-Bissau. Como se todas as crianças guineenses nascessem a falar Camões no berço, quando a verdade é que, muitas delas, senão a maioria, chegam à escola sem nunca terem ouvido uma frase inteira em Português. Imaginemos uma criança de sete anos, numa tabanca, que cresceu a ouvir Mandinga, Balanta, Fula, Bijagó ou Papel. Uma criança que aprendeu a falar com a avó, a cantar com a mãe, a brincar com os irmãos em Crioulo. Essa criança chega à escola e, no primeiro dia de aulas, é-lhe pedido que aprenda Matemática, Ciências, Cidadania e Moral, tudo em Português — uma língua que lhe é tão estrangeira quanto o Francês ou o Chinês. O resultado é um trauma silencioso. Uma humilhação pedagógica. Uma criança que não entende o que lhe dizem não é uma criança burra, é uma criança violentada. Uma criança arrancada à sua língua, ao seu mundo, à sua possibilidade de aprender. Ensinar Português como se fosse a língua materna é um erro de Estado. Um erro que se repete todos os dias nas salas de aula do país, com a bênção dos currículos herdados e com a cumplicidade de uma elite que continua a acreditar que ser guineense é saber conjugar verbos em Português e não contar histórias em Crioulo. Essa pedagogia colonial não beneficia ninguém. Nem a criança, que se sente excluída, nem o Português, que é ensinado à força, como se fosse uma farda, e não uma ferramenta. Resultado? Muitos alunos acabam por não aprender bem, nem o Português, nem as matérias. Crescem com uma relação tensa com a escola e acabam por procurar outros caminhos. Vão para o Senegal, para Dacar, para as universidades francófonas. E o que temos? Um país oficialmente lusófono, onde a juventude culta se expressa melhor em Francês do que na tal “língua oficial”. A ironia é brutal. Não, o Português não é o inimigo. Mas a forma como o estamos a ensinar é. Porque, em vez de valorizarmos a pluralidade linguística da Guiné-Bissau, optámos por fingir que ela não existe. E é esse fingimento que está a matar a educação, a matar o gosto pela leitura, a matar o próprio Português, que poderia ser uma ponte, mas é tratado como um muro. Se quisermos, de facto, construir uma nação livre, temos de começar por respeitar a língua das suas crianças. Ensinar Português, sim, mas com transição, com mediação, com sensibilidade. Começar pelo que a criança já sabe, para, então, lhe apresentar o que ainda não sabe. Isso é pedagogia libertadora. Isso é justiça linguística. O contrário é um atropelo à infância, uma amputação silenciosa da cidadania. Aprender Português deve ser uma oportunidade, nunca uma imposição. E nenhuma língua se fortalece à custa da morte das outras. Se quisermos mesmo ver o Português florescer na Guiné-Bissau, temos de deixar as outras línguas respirar. Porque onde há liberdade linguística, há futuro. E onde há futuro, há país.

Amadú Dafé apresenta o programa “Mar de Letras”. (rtp.pt)

sA – Haverá uma situação ideal para que a Língua Portuguesa – apesar de maioritária – e o Crioulo da Guiné-Bissau, no caso específico, consigam ser ponte entre si, de modo a fortalecer os laços inter e multiculturais de povos distintos, mas em que ambas as línguas têm, nalguns aspetos, uma “miscigenação linguística”? É onírico acreditar que a Língua Portuguesa possa contribuir para o conhecimento e para o respeito por outras línguas e para a multiculturalidade inerente a estas?

AD – Onírico seria continuar a acreditar que uma língua, por si só, transporta valores universais de respeito e entendimento. Nenhuma língua é virtuosa por natureza. O que dá valor a uma língua é o uso que se faz dela, a intenção com que se diz o que se diz e, sobretudo, a política que a sustenta. A Língua Portuguesa pode, sim, ser ponte, mas só se for ensinada, praticada e vivida com humildade histórica, com abertura para a pluralidade e com um compromisso real com a dignidade dos seus falantes, todos os seus falantes. No caso da Guiné-Bissau, o Português e o Crioulo convivem num espaço de permanente tensão e afetividade. Tensão, porque um foi imposto e o outro emergiu da resistência. Afetividade, porque ambos coexistem na boca do povo, muitas vezes entrelaçados, às vezes numa única frase. Há, de facto, uma miscigenação linguística que não é de agora, nem é obra da academia. É o resultado vivo da experiência quotidiana de um povo que aprendeu a criar sínteses. E é nessa síntese que pode estar a solução. A situação ideal, se quisermos falar dela sem lirismos, seria reconhecer institucionalmente o Crioulo como língua nacional de ensino e comunicação. Não como apêndice folclórico da identidade nacional, mas como fundamento real da nossa educação e cultura. Ao mesmo tempo, seria necessário rever a forma como o Português é ensinado: deixar de fingir que é língua materna e assumi-lo como segunda língua para a maioria da população. Isso permitiria uma pedagogia mais honesta, mais eficaz, mais humanizante. O Português ganharia mais espaço se deixasse de ser uma exigência e passasse a ser uma escolha desejada. O respeito pela multiculturalidade nasce do reconhecimento dos outros como legítimos. E as línguas são, talvez, o campo mais fértil para esse reconhecimento. Mas é preciso garantir que o Português não funcione como um rolo compressor das identidades locais. Que seja veículo, e não travão. Que seja uma língua de tradução de mundos e não de anulação de mundos. A multiculturalidade não se faz com declarações de boas intenções, mas com políticas linguísticas sérias, com investimento em literatura local, com rádio em Crioulo, com teatro em Papel, com Matemática em Mandinga. Só assim o Português deixará de ser visto como uma língua de poder e passará a ser uma língua de encontro. Portanto, sim, é possível, não é um sonho. Mas só se houver coragem.

sA – Qual é a realidade da Guiné-Bissau, no que concerne à Cultura em geral e à Literatura em particular?

“A realidade cultural da Guiné-Bissau é, simultaneamente, um
milagre e uma tragédia”, observa Amadú Dafé.
(Direitos reservados)

AD – A realidade cultural da Guiné-Bissau é, simultaneamente, um milagre e uma tragédia. Um milagre, porque, apesar do abandono sistemático por parte dos sucessivos governos, apesar da falta de políticas públicas consistentes, apesar da ausência de investimento, a cultura continua viva, palpitante e teimosa. Sobrevive nos tambores nas tabancas, nas cantigas de “mandjuandadi”, nos contadores de histórias à volta da fogueira, nas roupas tingidas à mão, nos nomes que guardam a genealogia das etnias. Sobrevive na oralidade, na memória dos mais velhos, nas danças que resistem ao esquecimento. É, por isso, uma cultura de resistência, porque foi forjada sob o peso da opressão colonial e continua, ainda hoje, a lutar para não ser engolida pela indiferença institucional e pelo mercado global da banalidade. A tragédia, por outro lado, é precisamente o modo como a cultura é tratada no país. Reduzida a um adereço nos dias de festa nacional, instrumentalizada em momentos de campanha, ignorada no orçamento de Estado. Não há um plano estratégico para a cultura. Não há uma política de incentivo à criação artística. Não há quase nenhum apoio para os escritores, os músicos, os artistas visuais, os cineastas e os artesãos. As bibliotecas, do pouco que há, estão vazias. Os centros culturais caem aos bocados. Os arquivos da nossa história apodrecem ao relento. E, mesmo assim, há quem escreva, há quem pinte, há quem filme. É essa a parte comovente. Quanto à literatura, ela ainda é vista como uma coisa de elites, como se os livros fossem objetos sagrados acessíveis apenas a quem domina perfeitamente a Língua Portuguesa. Uma língua que, como já referi, não é a língua materna para a maioria da população. Isso cria um fosso tremendo entre quem escreve e quem poderia ler. Não temos, ainda, uma política de leitura pública, uma rede de bibliotecas escolares funcional, nem sequer um plano de valorização dos autores guineenses nos currículos do ensino básico e secundário. Apesar disso, há um movimento. Discreto, mas firme. Autores como Tony Tcheka, Odete Semedo e Abdulai Silá, entre outros, foram abrindo caminhos. E uma nova geração começa a aparecer, com vozes diversas, ousadas, comprometidas com a denúncia, com a memória, com a beleza e com a dor.

No entender do escritor Amadú Dafé, o “respeito pela
multiculturalidade nasce do reconhecimento dos outros como
legítimos”. Assim, “as línguas são, talvez, o campo mais fértil para
esse reconhecimento”. (wook.pt)

A criação da Associação de Escritores da Guiné-Bissau (AEGUI) e a dinamização de eventos como a Feira do Livro de Bissau, o Festival do Livro e da Literatura Infantil e Juvenil, ou o Prémio Literário José Carlos Schwarz, têm contribuído para dar algum fôlego à cena literária nacional. Mas falta quase tudo. Falta a vontade política. Falta a visão estratégica. Falta o financiamento. E, basicamente, falta a consciência de que um país sem cultura é um país amputado. Como diria Amílcar Cabral, a cultura é, ao mesmo tempo, o ponto de partida e de chegada de todas as lutas. Se não cuidarmos dela, se não a colocarmos no centro do nosso projeto nacional, continuaremos a viver num país que se esquece de si mesmo. E não há independência que sobreviva ao esquecimento.

sA – O Amadú Dafé é apresentador do “Mar de Letras”, um dos programas mais emblemáticos do canal televisivo RTP África. Diria que uma das principais razões para o sucesso deste programa – centrado nos autores lusófonos de raiz africana – se deve à presença de inúmeros autores, oriundos dos diversos países de Língua Oficial Portuguesa, que aí encontram um espaço de divulgação literária por excelência? Porque será que, mesmo sendo milhões os falantes, ao nível do universo lusófono, são raros os meios/oportunidades existentes para discorrer sobre Literatura e para o intercâmbio literário?

AD – Creio que essa é, de facto, uma das razões mais fortes para a relevância do “Mar de Letras”: um espaço onde os autores e a literatura em língua portuguesa podem respirar. Respirar, no sentido mais profundo da palavra: serem ouvidos, lidos, pensados e, sobretudo, respeitados como parte integrante e fundadora do que é o universo literário em Língua Portuguesa. O programa não é só um palco de entrevistas; é, antes, uma espécie de território simbólico onde se cruzam geografias, vozes, inquietações, línguas, estéticas e feridas. E talvez o seu mérito esteja precisamente aí: na recusa de reduzir a literatura africana a um apêndice exótico da lusofonia e no esforço constante de a colocar no centro da conversa, com todas as suas complexidades e tensões. A questão que se coloca é: por que motivo, num espaço com mais de 250 milhões de falantes, ainda são tão escassos os meios e as oportunidades para falar de literatura com seriedade e profundidade? Por que razão continua a literatura a ser tratada como um luxo, quando ela é, muitas vezes, o único território onde a nossa memória e a nossa identidade não são negociadas? A resposta é estrutural. O que chama “mundo lusófono” herdou da sua matriz colonial uma estrutura de circulação cultural profundamente desigual. Os centros de decisão, editoriais, mediáticos, académicos, continuam concentrados em Lisboa e, em menor medida, no Brasil, enquanto os países africanos são vistos como fornecedores de matéria-prima simbólica, mas raramente como produtores de pensamento. Os autores africanos são publicados tardiamente, quando são publicados. São debatidos perifericamente, quando o são. E mesmo quando atingem algum reconhecimento, isso acontece, muitas vezes, à margem dos seus próprios contextos. O “Mar de Letras” tenta contrariar esse modelo. Não é apenas um programa sobre livros, é um gesto político. Um exercício de reparação simbólica. E também uma forma de arquivar, no tempo presente, a produção intelectual africana de expressão portuguesa. Receber no programa autores de Angola, de Moçambique, de Cabo Verde, da Guiné-Bissau, de São Tomé e Príncipe, mas também do Brasil e de Portugal, tem sido uma forma de mostrar que, se o mar nos separa, a palavra pode unir-nos. E unir com densidade, com afeto e com pensamento. Falta muito, é certo. Ainda há pouca cooperação real entre os nossos países no que toca ao intercâmbio literário. Os livros circulam mal, as editoras raramente olham para além das suas fronteiras, os programas escolares continuam colonizados por autores canónicos que não dialogam com a realidade dos nossos jovens. Mas acredito que o caminho se faz. E faz-se com programas como o “Mar de Letras”, com políticas culturais transnacionais e, sobretudo, com leitores e leitoras que exigem mais. Que querem ler Amílcar Cabral e Conceição Evaristo na mesma estante. Mia Couto e Ruy Duarte de Carvalho no mesmo parágrafo. Ondjaki e Lurdes Breda num mesmo sopro. É essa a literatura em língua portuguesa que nos interessa: não a que impõe uma língua como única forma válida de existir, mas a que a transforma num instrumento de encontro, de resistência e de criação coletiva. Porque se a Língua Portuguesa sobreviveu à colonização, é porque há nela, ainda, um lugar para os nossos fantasmas e os nossos sonhos. E é essa casa em ruínas, mas nossa, que temos vindo a reconstruir – palavra a palavra, livro a livro, programa a programa.

Amadú Dafé com o artista plástico moçambicano Roberto Chichorro. (Direitos reservados)

sA – Já agora, aproveitamos para perguntar como está a ser a sua experiência enquanto apresentador, especialmente, pelo contacto privilegiado que tem com os mais variados autores, sendo o próprio Amadú Dafé igualmente autor/escritor?

AD – Confesso que, no início, não foi nada fácil. Carregar o “Mar de Letras” às costas, com o peso simbólico e político que o título traz, além dos treze anos de antiguidade. Foi, no princípio, mais um susto do que uma honra. Sentia-me engessado, nervoso, como quem andava em casa emprestada. Lembro-me bem da Lurdes e do Roberto Chichorro que passarem pelo programa nessa fase, e eu, engasgado entre perguntas e hesitações, ainda à procura da minha própria voz. Mas sou feito de desafios e gosto do que me obriga a crescer. Com o tempo, fui ganhando confiança. Hoje, sinto-me mais solto, mais inteiro. Aprendi a prestar mais atenção ao estado de espírito dos meus convidados. A conversar sem medo. A permitir que o pensamento flua sem guião. Ser apresentador do “Mar de Letras” tem sido uma escola de humildade. Sentar-me com autores e autoras que admiro é um privilégio que me obriga, constantemente, a crescer como leitor, como escritor e como cidadão. Acima de tudo, tem sido um exercício de atravessar fronteiras, de construir pontes entre vozes que, muitas vezes, não têm outros espaços para se fazerem ouvir. No fim, o que me salva, como sempre, é a palavra. E é isso que o programa me tem ensinado a cultivar: o poder de dizer e de ouvir, com verdade.

“Em vez de valorizarmos a pluralidade linguística da Guiné-Bissau, optámos por fingir que ela não existe. E é esse fingimento que está a matar a educação, a matar o gosto pela leitura, a matar o próprio Português, que poderia ser uma ponte, mas é tratado como um muro”, considera o escritor Amadú Dafé.(rtp.pt)

sA – Desde 2020, é celebrado o “Dia Mundial da Língua Portuguesa”, instituído pela UNESCO como o dia 5 de maio. Na sua perspetiva, qual a importância desta data e o que é que a consagração deste dia veio incrementar ou reforçar nos Países de Língua Oficial Portuguesa e nas comunidades lusófonas espalhadas pelo Mundo, particularmente no que diz respeito à Literatura e às Artes?

AD – A consagração do “Dia Mundial da Língua Portuguesa” pela UNESCO poderá, à primeira vista, não passar de um gesto cerimonial, mais um dia marcado no calendário para discursos solenes, para celebrações protocolares e fotografias com bandeiras ao vento. A verdade é que, se formos honestos, o dia tem, ou pode ter, se soubermos lê-lo com atenção, um significado bem mais profundo. É uma oportunidade rara para nos interrogarmos sobre o que é, afinal, esta língua que nos une, tantas vezes à força, outras tantas por escolha, quase sempre por uma estranha combinação de herança, conveniência e destino. O Português não é uma língua neutra. Carrega séculos de História, de colonização, de violência e de reinvenção. É a língua dos decretos, sim, mas também das cartas de amor e das canções populares. É a língua que oprimiu, mas que também foi apropriada e transformada. É, sobretudo, uma língua que mudou e continua a mudar nas bocas e nas mãos dos povos que a falam. E por isso, quando celebramos o 5 de maio, não estamos apenas a celebrar uma língua comum, estamos, ou devíamos estar, a celebrar a pluralidade que nela habita.

(cultura.cplp.org)

As muitas vozes que dela fazem parte, mesmo quando não são ouvidas. Para mim, enquanto escritor guineense, escrever em Português é, ao mesmo tempo, um desafio e uma responsabilidade. É como usar uma ferramenta que não foi feita para as minhas mãos, mas que fui aprendendo a manusear até fazer dela uma extensão do meu corpo e do meu pensamento. A Língua Portuguesa não é a língua da minha avó, não é a língua do terreiro, nem do mercado, mas é a língua que uso para dizer o que me vai na alma, para denunciar o que me fere, para nomear o que ainda não tem nome. E isso, por si só, já é uma forma de resistência. O “Dia Mundial da Língua Portuguesa” deve, portanto, servir para, mais do que exaltar a grandiosidade do idioma, repensar o nosso espaço comum como um território afetivo, político, literário, onde nenhuma voz seja descartável. E onde as línguas nacionais, os crioulos, os sotaques e as variações não sejam vistos como desvios, mas como corpos legítimos dessa grande casa linguística. Como diria o Mia Couto: “As línguas são casas onde mora o tempo.” Cabe-nos garantir que essa casa não seja um quartel, onde se impõe o silêncio, mas uma praça, onde todos possam falar, escutar e serem escutados. Se esse dia servir para visibilizar os invisíveis, para abrir espaço aos escritores que nunca entram nas listas, para reforçar os laços culturais e artísticos entre os países, para valorizar as línguas que resistem na sombra, então, sim, terá valido a pena. Porque o Português será tanto mais forte quanto mais plural for. E, afinal, o mundo é demasiado vasto para caber numa só gramática. Que se celebre, pois, a Língua, mas com os pés bem assentes na terra e o ouvido atento ao murmúrio de todas as outras línguas que nela habitam.

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01/05/2025

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Lurdes Breda

http://www.lurdesbreda.wordpress.com/

Lurdes Breda escreve, sobretudo, para crianças e jovens. É autora de dezenas de obras, algumas das quais integram o Plano Nacional de Leitura e estão editadas em Portugal, no Brasil e em Moçambique. Em 2005, foi distinguida com o Prémio “Mulheres de Valor” e, em 2014, recebeu a Medalha de Mérito Municipal Cultural, em Montemor-o-Velho. Em Maio de 2024, recebeu a “Comenda Dom Pedro II – por honra e mérito do seu trabalho, ligado à educação, cultura e bem-estar social”, atribuído pela Literarte – Associação Internacional de Escritores e Artistas, do Brasil. Em 2021, foi uma das mulheres contempladas no projecto “As Mulheres na Cultura e na Salvaguarda do Património Imaterial da Região Centro”, desenvolvido pela Direcção Regional de Cultura do Centro. Participa em actividades inclusivas e de cidadania, bem como na promoção do livro e da leitura, principalmente, em escolas e em bibliotecas de todo o país.

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