Ana Laíns: “Um país é o que fizermos por ele e não o que dizemos sobre ele”

Ana Laíns (Direitos reservados)
Ana Laíns iniciou a sua carreira no fado e nos ritmos da música tradicional portuguesa. O trabalho de contemporaneidade que desenvolveu a partir daí levou a que se tornasse aclamada nacional e internacionalmente. Na Grécia, por exemplo, apelidaram-na de “Diva de um Fado Diferente” e na França chamaram-lhe “Virtuosa do Palco”. Em Portugal, gosta de ser conhecida como “Cantora Colorida”. Em 2009, foi convidada pelo músico Boy George para gravar, com ele, o tema “Amazing Grace”. Partilhou o palco, com nomes como Ivan Lins, Fafá de Belém, Luís Represas, Mafalda Arnauth, Aline Frazão, Celina Pereira e Paulo de Carvalho, entre outros. Tem editados os álbuns “Sentidos” (em 2006), “Quatro Caminhos” (em 2010), “Portucalis” (em 2017) e “20 Anos – Ana Laíns e Convidados ao Vivo no Casino do Estoril” (em 2021).

Áustria, em 2014. (Direitos reservados)
sinalAberto – Tanto o fado quanto a música tradicional portuguesa são uma metáfora para a portugalidade. Podemos dizer que a opção de construir uma carreira artística baseada nestes dois estilos musicais, aliada ao facto de se autodefinir como “Cantora Colorida” – colorida pelas cores de um país que é a sua paixão, segundo diz –, expressam o amor a Portugal e às raízes do povo português. À semelhança do que escreveu Fernando Pessoa, a Língua Portuguesa é a sua pátria?
Ana Laíns –Nascer num determinado lugar não é uma escolha. É, sim, uma condição. Nasci na condição de portuguesa e essa condição confere-me responsabilidade para com a comunidade em que estou inserida. O respeito por essa condição levou-me à imensa curiosidade sobre o que nos define enquanto povo. E foi essa curiosidade que culminou numa profunda paixão pelo nosso ADN, com tudo o que de bom e de negativo isso comporta. Sou, assumidamente, patriota (mas não nacionalista) e trabalho no sentido de mostrar às pessoas que um país, seja ele qual for, será sempre melhor, se todos nós respeitarmos e compreendermos a condição da nacionalidade com que nascemos. Repito, muitas vezes, este mantra: “Um país é o que fizermos por ele e não o que dizemos sobre ele.”

sA – Tempos houve – e, se calhar, ainda acontece – em que a música tradicional tinha uma conotação negativa ou era vista com um certo preconceito e inferioridade relativamente a outros estilos musicais. Talvez como conjuntura da época ou o reflexo do trabalho de alguns artistas, para quem o termo “popular” levava a opções menos cuidadas, musicalmente. Houve, inclusive, quem a desencorajasse de seguir essa via. Conseguiu, todavia, manter-se coerente com aquilo que abraçou e, mais do que isso, reinventou a música popular, num cruzamento entre o tradicional e o contemporâneo, criando uma sonoridade inovadora. Qual foi a reação inicial do público e também de outros artistas portugueses ao surgimento do seu trabalho?
AL – Desde sempre, senti-me um peixe fora de água. E ainda hoje, 25 anos depois, noto que tenho de fazer um esforço adicional para ser aceite. No entanto, invariavelmente, quando me dão oportunidade de mostrar ao que venho, a qualidade dos músicos que me acompanham e me “constroem” todos os dias, bem como as minhas escolhas musicais, acabam por convencer (maioritariamente) as pessoas que me ouvem.
Quanto aos meus colegas, na realidade, não sei bem o que pensam sobre o meu trabalho. Mas também nunca fui muito próxima da minha classe. Vivo muito fechada e afastada do meio, não necessariamente por gostar, mas porque tenho dificuldade em sair da minha toca. O que admito ser um contrassenso. Sempre achei muito redutor que se fale de Portugal apenas por causa do fado, do futebol e de Fátima. Durante décadas foi este “conceito” que o Estado Novo ajudou a implementar. E, na realidade, ainda persiste.

A música tradicional portuguesa está intimamente ligada ao trabalho, aos operários, aos agricultores, ao interior e infelizmente… à pobreza. Acredito que este é o ADN que a transforma no parente pobre da cultura, em Portugal. Por outro lado, nos anos 80 e 90, logo após a queda da ditadura, as bandas conotadas com a música tradicional portuguesa (MTP) ou música popular portuguesa (MPP) eram o mainstream. Bandas como a Brigada Victor Jara, a Ronda dos Quatro Caminhos ou nomes como Júlio Pereira e Rão Kyao…
Por sua vez, o fado viveu uma fase mais escura, em que, inclusivamente, muitos cantores acabaram por se dedicar a outros estilos, para poderem subsistir. Não há dúvida de que os ciclos das artes estão diretamente relacionados com o contexto sociopolítico. Embora não me considere uma cantora de intervenção, a verdade é que me movo numa área que, ainda, é conotada com a esquerda e com um posicionamento político (sendo que defendo um sistema apartidário). Isso, naturalmente, dificulta muito as coisas, do ponto de vista comercial. E não me sentindo habilitada para esta dissertação, na minha ótica, as pessoas preferem músicos e artistas, de um modo geral, que não tenham opinião, que não usem a sua arte para passar uma mensagem. Preferem ter quem os entretenha, em vez de quem os faça pensar. Portanto, estarei sempre em maus lençóis, porque as pessoas que compreendem a arte como uma forma de busca pelo pensamento e pela evolução serão, sempre, uma minoria. Mas eu vivo bem com isso. Só não viveria bem com a minha falta de honestidade intelectual.

operários, aos agricultores, ao interior e infelizmente… à pobreza”,
considera Ana Laíns. (Direitos reservados)
sA – Ao longo dos anos, tem trabalhado consigo um conjunto de diferentes profissionais ligados à música, essenciais para a elaboração dos temas que canta. Um pouco no seguimento da questão anterior, foi fácil fazer com que “acreditassem” em si e no projeto que foi idealizando? Sente que abriu novos horizontes a alguns destes profissionais e até a outros cantores?
AL –Não sei se tenho resposta para esta questão. Apenas sei que os músicos que vão entrando na minha vida são pessoas que me têm “acontecido” ao longo do caminho. Acho fascinante esta teia que se vai construindo e a música que vai nascendo da naturalidade dos encontros. Felizmente, estas pessoas com quem me tenho cruzado no caminho têm trabalhado comigo sem qualquer tipo de pressão comercial nem necessidade de grandes negociações.
A certeza, porém, é a de que todos têm acrescentado valor ao meu trabalho e à minha vida. Não sei se terei aberto novos horizontes a alguém, mas acredito que, da mesma forma que estas pessoas me têm acrescentado valor, de algum modo, também terei adicionado valor a algumas delas. Se estivermos abertos à constante metamorfose que é o nosso crescimento, estaremos disponíveis para absorver o que os outros têm para nos dar.

conhecidos. E não convido ninguém para trabalhar comigo sem que os seus
direitos sejam cumpridos. Todos são remunerados”, frisa Ana Laíns, que
vemos ao lado da cantora guineense Karyna Gomes.
(Créditos fotográficos: Ben do Rosário)
sA – Muitos dos seus espetáculos contam com a participação de artistas identicamente consagrados. Estas presenças atestam, de alguma forma, o respeito e a consideração que, paulatinamente, tem conquistado no meio musical?
AL –Não tenho a menor dúvida de que a colaboração com músicos como Ivan Lins ou Mafalda Arnauth, só para dar alguns exemplos, me confere credibilidade. Mas acho importante salientar que nenhuma destas pessoas colaborou ou virá a colaborar comigo por motivos comerciais ou de construção do meu estatuto. Na realidade, eu não tenho nada para lhes oferecer, sei disso, a não ser dignidade e a devida remuneração nas nossas colaborações. Considero fundamental respeitar o trabalho de todos, conhecidos ou não conhecidos. E não convido ninguém para trabalhar comigo sem que os seus direitos sejam cumpridos. Todos são remunerados. Por que faço questão de falar sobre isto? Porque me incomoda que a maioria dos meus colegas convide outros colegas para colaborações a custo zero. Isto é prática corrente. Ora, se todos sabemos que a sociedade tem dificuldade em ver os músicos como trabalhadores, que sentido faz nós não sermos os primeiros a dar o exemplo?
Posto isto, e respondendo mais diretamente à sua pergunta, eu acredito que a credibilidade do meu trabalho tem sido construída com base na qualidade da música que fazemos e na forma como encaro a minha profissão: com respeito e dignidade. Claro, quando pautamos a evolução da nossa carreira em aspetos que são invisíveis aos olhos do público, tudo se torna mais lento. Na realidade, acho até que sou prejudicada, muitas vezes, pelo facto de não abdicar da dignidade da minha profissão. E isso seria um problema se eu fosse uma cantora com muita ambição. Na realidade, a minha única ambição é poder pagar as minhas contas e cumprir a minha missão como comunicadora através da música.

sA – A Ana Laíns faz questão de enaltecer e de agradecer o apoio do público como algo fundamental no seu percurso. A verdade é que conta já com mais de 20 anos de carreira e são às centenas os concertos realizados, quer em Portugal quer em muitos outros países, espalhados pelos vários continentes. Leva consigo, através da sua música, a Língua Portuguesa, mas também a cultura e a etnografia do povo português. Para lá do aspeto musical, temos, por isso, a destacar o exercício pedagógico e de cidadania que faz nos locais onde passa, sobretudo, no estrangeiro. Nesse contexto, o que representam, para si, os diversos convites institucionais relacionados com a Língua Portuguesa e com a lusofonia? A título de exemplo, referimos a digressão que fez em 2015, por diversas universidades dos Estados Unidos da América. Ainda no mesmo ano, destacamos a produção do concerto de encerramento da “Celebração dos 8 séculos de Língua Portuguesa”. Em 2017, assinalámos a sua participação, com honras de abertura, no festival “Şefika Kutluer”, em Ancara, por solicitação da Embaixada de Portugal na Turquia e do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua. E, em 2022, realçamos o convite da Embaixada de Portugal no Brasil para a produção do concerto oficial de celebração do “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”.

AL – Eu fico muito feliz por ser um nome tido em consideração por estas instituições. São instituições que têm um compromisso com a Língua Portuguesa, com a sua defesa e prática, um pouco por todo o Mundo. Logo, ter a oportunidade de apresentar o meu trabalho a convite das embaixadas, do Instituto Camões e de outras associações ou instituições ligadas ao ensino e à nossa identidade cultural, ajuda-me a ter força para seguir este caminho. Sempre vi a minha carreira de uma forma mais multidisciplinar do que comercial, ainda que uma abordagem não anule a outra. E o meu currículo é a minha grande medalha de mérito, porque fala por si. Gosto do que tenho construído. Tenho muito brio no meu caminho e não associo o sucesso à visibilidade mediática (que não tenho). Insisto: não podemos confundir cultura com entretenimento. Ainda que, em palco, eu seja uma cantora que gosta de “entreter” ao mesmo tempo que “cultiva”, acredito que o meu caminho estará sempre relacionado com esta pedagogia da Língua (das línguas e dos dialetos) e das etnografias, porque conta a História de quem somos.

sA – É do conhecimento comum, a afetividade que as comunidades portuguesas e lusodescendentes de diferentes países dispensam aos artistas portugueses. Mas o seu trabalho vai mais além e consegue, igualmente, a admiração de diversos outros povos por onde passa, nomeadamente, a aclamação por parte da imprensa internacional especializada e não só. Acha que artistas como a Ana Laíns estão a contribuir para uma imagem mais valorizada de Portugal no estrangeiro? Já agora, a contemporaneidade do seu trabalho é, também, de alguma forma, responsável pela mudança de paradigma, no que concerne ao interesse das gerações mais novas, em relação ao fado e, principalmente, à música tradicional portuguesa?
AL – Sim, efetivamente, tenho tido a oportunidade de apresentar o meu trabalho a um espectro de público muito alargado, que não se confina ao público português. E afirmo, categoricamente, que sempre senti um grande interesse pela nossa cultura identitária. No entanto, é muito frequente que se identifique o meu trabalho e o meu concerto com a palavra “fado”. Isso é algo que me incomoda profundamente por não ser verdade. Também noto que, a duras penas, tenho conseguido chamar a atenção do público e de quem me contrata para uma multiculturalidade a que se convencionou chamar “portugalidade”. A verdade é que a sociedade nos induz no sentido de nos colocarmos dentro de gavetas para alcançar o sucesso profissional.

Sempre me debati pela defesa da minha liberdade criativa, bem como pela liberdade criativa de todos à minha volta. Por vezes, a única coisa que nós precisamos é que surjam pessoas assim. Pessoas que não cabem dentro das gavetas e que não abdicam da sua liberdade, com todas as consequências que daí advenham. E fico muito feliz por ter conhecimento do impacto que esta postura também vai tendo junto de alguns novos artistas que me procuram para saber como é que eu faço para “existir” fora da caixa. Não há fórmulas de sucesso. O que existe é uma série de convenções que “castram” o desenvolvimento. E isto acontece em todas as áreas.

sA – Em janeiro de 2020, celebrou os seus 20 anos de carreira. Pelo palco do Salão Preto e Prata do Casino do Estoril, passaram convidados especiais para um concerto repleto de diversidade, com casa absolutamente cheia. Como resultado desse evento memorável, em maio de 2021, foi lançado o álbum “20 Anos – Ana Laíns e Convidados ao Vivo no Casino do Estoril”. Refere-se a este disco como “uma carta de amor”, mas, afirma tal-qualmente que “não é fácil entregar um coração inteiro a um país”. É legítimo interpretar estas suas palavras como orgulho de pertença e, ao mesmo tempo, como frustração ou desilusão por situações que têm ficado aquém, perante a sua entrega? Uma carreira como artista, com mais de duas décadas de longevidade num país como Portugal, é sinónimo de resiliência e teimosia ou, pelo contrário, há espaço e condições para “vingar” com relativa facilidade?
AL – Sem querer, acredito que acabei por responder a esta questão nas questões anteriores. Fazer as escolhas que tenho feito tem sido motivo de muitas conquistas, mas simultaneamente de muitas dificuldades. Seria hipócrita da minha parte afirmar que essas dificuldades me são indiferentes e que não me magoam. É claro que magoam e que me levam a colocar-me, muitas vezes, em causa. Se tivesse uma nota de cem euros por cada vez que chorei de tristeza, ou sempre que tive de me “defender” perante os paladinos do mercado da música em Portugal, com certeza, teria muito dinheiro debaixo do colchão.
A verdade é que o facto de me colocar em causa, em perspetiva, vivendo os meus dias a observar o resultado das minhas escolhas, acaba por me conferir toda a legitimidade de ser uma cantora confiante no seu caminho. É o meu caminho. Não tem de ser igual ao caminho de ninguém. Contudo, sinto-me, muitas vezes, desvalorizada pelo meu país. E isso não é fácil de suportar. Por exemplo, sempre que preciso de divulgar algum concerto ou algum disco, tal como todos os outros artistas, eu contrato uma assessora de comunicação para que possamos chegar aos media (imprensa, rádio e TV) e, não raras vezes, sou barrada. Ou seja, não tenho prioridade em muitos meios de comunicação.
É importante que se fale disto abertamente. Há um lóbi impenetrável das editoras multinacionais e dos grandes managers e bookers dos artistas mainstream, com o qual compactua a maioria dos profissionais em posição de decisão. Isto acontece a muitos artistas em Portugal, principalmente aos independentes, mas poucos falam nisto, porque têm medo das represálias. Ora, a verdade é esta. Muito se fala em igualdade, em oportunidade, mas a realidade é que estas pessoas que têm poder de decisão não são generosas e não têm qualquer preocupação deontológica no papel que desempenham. O jornalismo e, em particular, o jornalismo cultural (que é quase inexistente) está completamente subjugado à vaidade e aos feudos.

sA – Das variadas características incluídas neste trabalho, importa destacar a inclusão do Mirandês que, apesar de minoritária e desconhecida de uma grande parte dos Portugueses, é outra das línguas oficiais de Portugal. Para quem, à partida, possa pensar que a língua mirandesa está em “oposição” à língua portuguesa, podemos, contudo, asseverar que uma língua é ponte para a outra e que ambas fazem parte da nossa História e da nossa nacionalidade? Existiu também da sua parte o intuito de divulgar e de promover o Mirandês, enquanto língua “ameaçada” e, com ela, toda uma rica e genuína cultura de tradições?
AL – Sem dúvida. O Mirandês é língua oficial de Portugal desde 1999. Porém, só em 2021 é que a Carta Europeia das Línguas Minoritárias foi assinada. Essa carta atribui responsabilidade na defesa e preservação das línguas regionais e minoritárias, mas, ainda assim, pouco tem sido feito. Confesso que considero que também deveria haver outra postura por parte do povo mirandês (que eu adoro e respeito profundamente), no que diz respeito a este assunto, que, a meu ver, também contribui para um afastamento do resto do país. Recordo-me que, quando fui a Miranda do Douro para gravar uma série de pequenos vídeos sobre o Mirandês, algumas pessoas se referiram ao Português como língua fidalga, falada por fidalgos. Acredito que isto não abona para a criação de pontes. A partir do momento em que o Mirandês deixou de ser um dialeto para ser uma língua oficial, ela passou a ser de todos os portugueses.
Traduzir todas as canções para Mirandês no meu disco de 20 anos de carreira, foi uma chamada de atenção para algo que é património de todos. A verdade é que são poucos milhares os falantes de Mirandês e acredito que, em uma ou duas gerações, a língua mirandesa acabará por se extinguir, se nada for feito. Não podemos permitir. A diversidade acrescenta valor, abre portas e enriquece a multiculturalidade fundamental na compreensão do Mundo e da nossa História, em particular.
sA – Salientamos a sua interpretação em textos de autores como Florbela Espanca, António Ramos Rosa, Natália Correia, Rubén Dário ou Carlos Drummond de Andrade. A escolha destes poetas aconteceu porque fazem parte do seu universo e gosto pessoal e por esteticamente se enquadrarem no seu trabalho ou há um cariz mais didático, no sentido de levar os seus nomes e a sua poesia aos “quatro cantos do Mundo”? Entretanto, no seu álbum “Quatro Caminhos”, editado em 2010, estreou-se como autora da letra “Não sou nascida do fado”. Fale-nos dessa experiência. É tomada por uma maior emoção quando interpreta uma letra da sua autoria?
AL – Os poetas que eu canto entraram na minha vida de várias formas e em vários momentos. Alguns faziam parte das minhas escolhas literárias, mas outros surgiram ao contrário. Isto é, primeiro surgiu a ideia da mensagem sobre a qual eu queria cantar e isso levou-me à pesquisa de quem pudesse ter escrito sobre essa temática. Outros poemas, simplesmente, aconteceram-me. Invariavelmente, os poemas que escolhi para gravar ou para estarem no alinhamento do meu concerto são poemas que me desafiam e me instigam, me fazem querer ser uma melhor intérprete. E funcionam na minha vida como “oráculos” entre a minha humanidade e a divindade a que as palavras nos podem transportar. Muitos deles continuam a ser um desafio depois de mais de 25 anos. Eu não tenho o dom da escrita. Quis Deus ou o Diabo que eu tenha nascido sem esse talento. Gosto de escrever e sei que consigo exprimir-me escrevendo. Mas não de uma forma organizada e estruturada para ser musicada. Esse fado que escrevi para o álbum “Quatro Caminhos” foi um milagre, porque ainda hoje não sei como consegui. Acho que foi a raiva que me inspirou. Essa letra é um grito de revolta sobre o “purismo” do meio fadista com que nunca me identifiquei. Depois escrevi também o “Sou Dual”, em parceria com a Mafalda Arnauth, e a “Charanga do Tempo”, também com a supervisão da Mafalda. Mas não é algo que faça com naturalidade. Continuarei a tentar e continuarei consciente de que não escrevo poemas belíssimos.

sA – A Língua Portuguesa é uma das línguas mais faladas no Mundo. Nos últimos anos, o sentimento de lusofonia tem vindo a acentuar-se ou, pelo menos, a haver uma maior consciência da multiplicidade de culturas em Português. A nível de eventos artísticos, existe já algum evento suficientemente firmado que inclua a participação oficial de artistas dos diversos países lusófonos? Se fosse convidada a produzir algo mais “fora da caixa” nesse âmbito, o que gostaria de fazer?
AL –Produzi recentemente o concerto “Mulheres da Lusofonia”, numa parceria com a cantora Fafá de Belém, outra grande encorajadora da lusofonia, que aconteceu no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, no dia 15 de maio de 2024, no âmbito do Dia Mundial da Língua Portuguesa. Isto, além de ter produzido o concerto de encerramento das comemorações de “8 Séculos de Língua Portuguesa”, em 2015, e o concerto de encerramento das “Festas do Mar”, em Cascais, no ano de 2018. Estes eventos aconteceram em estreita colaboração com músicos e cantores de todos os países de Língua Portuguesa.

Pretendo continuar a produzir conteúdos que vão ao encontro desta premência de contribuir para a união dos povos de Língua Portuguesa. Temos uma História feia que nos une, mas também temos uma união multicultural, um ADN que nos liga para sempre. No entanto, para que possamos conviver pacificamente e construir um futuro profícuo para todos, acredito que é fundamental instigar a uma maior defesa e respeito pelos crioulos que são falados e parte estrutural da identidade cultural de toda a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Isto é, por muito que a Língua Portuguesa seja uma mais-valia que nos une, acho fundamental que se trabalhe no sentido de valorizar a cultura e a identidade de cada um dos países da CPLP, que se instigue a construção da sua própria História, sob pena de persistir uma ideia de subjugação que não abona a favor das nossas relações diplomáticas e do dia a dia. Somos, todos nós, o resultado de uma extraordinária miscigenação e não me parece saudável que a cultura portuguesa (que também está profundamente miscigenada) se imponha. Não temos de caminhar em fila. Temos de caminhar lado a lado.
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03/02/2025