Aproveitando esta aberta do racismo
Vim a pé até ao supermercado (hiper, mas dos pequenotes)1. Deve ser coisa para um quilómetro desde casa, pertinho, portanto, e magnífico para esticar as pernas. Aproveitei e fiz uma videochamada para as minhas garotas. Das três, atenderam duas. Lindas, suaves, islandesas. Contei-lhes como se perde um e-reader sem sequer saber que dele se era dono. Jazia incógnito num saco de papel, juntamente com livros que me foram ofertados na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a propósito do livro “O Senhor Cogito”, de Zbigniew Herbert2. Roubado o saco, entretanto, do meu carro, no posto de carregamento.
Mas agora, no supermercado, o pretexto do texto: duas caixas abertas apenas e para cada uma a respectiva interminável fila; eu acabadinho de chegar e a ouvir o providencial alto-falante reclamando novo “caixa”. Adivinhei a abertura de caixa e ajeitei-me, prevenido e com não mais do que três coisas nas mãos – dava quase para as esfregar de contentinho. A funcionária, pacífica, sentou-se e avisou que se fosse avançando em exclusivo para pagamentos com cartão. Por mim, fiz uma pausa educada antes de me adiantar (seria o primeiro). Uma portuguesa, cabelo encaracolado, hesitou um pouco, olhou mesmo para mim (estava numa das filas e, portanto, à minha frente). Dei-lhe a entender que passaria à minha frente e a isentava de ver o assunto como coisa de vida ou morte.
Nisto, um tipo (português, desembaraçado, alto, de meia-idade) saiu disparado de uma das filas, alardeou algo heróico, adiantou-se e passou-nos a perna, mas, nessa altura, uma senhora brasileira (que falava Castelhano e se achava com o marido, espanhol, mailo3 colossal carro de compras) não se conteve e começou a invectivar o tipo metediço que avançara, no seu Português do Brasil. A senhora à minha frente hesitou de novo, olhando-me, mas avançou, e a brasileira passou assim a ser a terceira. Fiquei, então, atrás do (auto)carro de compras, enquanto a brasileira zurzia o homem em Português e tentava atiçar o marido espanhol em Castelhano (este, quem sabe, apanhado por ela numa golpada de sorte). O homem, o portuga, lá foi pagando e respondendo, e pagando na mesma moeda (“está para aí a falar alto não sei para quê, tanta coisa para nada”). A brasileira, por sua vez, não se calava, ardendo em mui altas flamas, ora clamando de raiva contra o espertalhote do português, ora contra a inapta da “caixa” (portuguesa também, intranquila), enquanto o seu espanhol permanecia mudo, no centro do escândalo, e me lançava um ou outro olhar furtivo de terror e amparo. A outra portuguesa, a dos caracóis, entretanto, foi pagando, olhos baixos, enfiados nas compras, evitando atoardas e embaraços. Chegada a minha vez, comentei em voz baixa, com a senhora da caixa, que “tudo se faz, não há azar, a vida pede calma”. Lançou-me então um olhar amistoso de alívio (percebi que merecia isso, um pouco de tranquilidade). Feito o pagamento, deparei na rua, junto ao carro deles, com a brasileira a descompor o espanhol, que se mantinha mudo, tranquilo na aparência (talvez pensando “el sexo, carajo, não vale ni un segundo de todo eso”).
E segui com os meus botões, feliz da vida e a pensar que àquela hora há gente que não quer saber de merdinhas destas e se prepara para trabalhar, pro bono, para e pelos outros, sem olhar a quem e com que cor, noite inteira, a servir mais de 400 refeições e a lavar tabuleiros. Vocês percebem porque é que eu gosto assim destas pessoas que dão qualquer coisa de si? É porque pertencem a outro mundo. A um mundo de que também quero fazer parte. Não do dos espertos.
E continuei o meu caminho a pensar que, ainda ontem, noutro hipermercado, vi avalanches de gente a confeccionar embrulhos para o Natal. Sim, eles conseguiram, os apregoadores do Capital: de sujeitos converteram-nos em consumidores.
E remato com as frases finais: tenho, desde os anos 80, a convicção de que o racismo é sistémico em Portugal; eu mesmo posso ser, em parte, racista ou xenófobo ou outra merda dessas (sempre me confrontei com sérias ambiguidades). O que não suporto é alguém dizer que não há racismo em Portugal, que este é um país de brandos costumes e que fomos os mais tolerantes em África, para não falar na miscigenação e toda essa cangalhada que doura a pílula. É como dizer que não há baleias nos oceanos. Nem filhos da mãe nas filas dos hipermercados. A toda a hora.
Ah, a propósito do Zbigniew Herbert, comprai mas é a “Poesia Quase Toda”, em edição da Cavalo de Ferro e tradução da Teresa Fernandes Swiatkiewicz. O Diogo Madre Deus sabe daquilo e também sabe que o raio do polaco é mesmo uma maravilha.
Viva o Natal. Sacanas. Lixaram-nos bem.
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Notas da Redacção:
1 – Este artigo de António Jacinto Pascoal foi escrito nos primeiros dias de Novembro de 2024.
2 – Refira-se que, no âmbito do concurso de poesia organizado pela Associação Polaco-Ibérica Arendi Cultural e inspirado na personagem literária Senhor Cogito, integrado na comemoração do centenário do nascimento do poeta e ensaísta polaco Zbigniew Herbert, António Jacinto Pascoal obteve uma menção honrosa, em Setembro de 2024.
3 – Como regista a página electrónica Cantigas Medievais Galego-Portuguesas, “maiolo/a” significa “mais o/a”.
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12/12/2024