As pandemias e o acaso no sentido da História

 As pandemias e o acaso no sentido da História

(Créditos de imagem: David Ortega – Pixabay)

É cada vez mais frequente a existência de situações dramáticas que nos fazem “girar sem destino”, com “o sentimento de exílio” e o “desejo inconsistente de voltar atrás ou, pelo contrário, de acelerar a marcha do tempo”. Assim constato. E, neste momento, socorro-me de expressões e de frases soltas do livro que procuro ler devagar e que me remete para a dolorosa experiência do isolamento social a que fomos sujeitos na recente crise pandémica que, além dos sintomas mais comuns de febre, de tosse seca e de cansaço, matou muitos dos nossos e nos deixou marcas individuais e comunitárias que perduram.

(planocritico.com)

No seu romance “A Peste”, Albert Camus (que faria 111 anos na próxima quinta-feira, 7 de Novembro) fala-nos da doença infecciosa aguda que se propagava, traiçoeiramente, na cidade e que deixava as pessoas desamparadas, ociosas e entregues “aos jogos amargos da recordação”. De facto, a dor repete-se e transfigura-se nestes nossos dias frequentemente sem sentido, mas que nos fazem entrever ou mesmo experimentar “o sofrimento profundo de todos os prisioneiros e de todos os exilados que vivem com uma memória que para nada serve”.

(rmblf.be)

Este pensamento reforça argumentos na simples pergunta de uma criança não tão ingénua quanto se supõe: “Papá, explica-me, para que serve a História?” A referida questão abre o livro “Apologie pour l’histoire ou Métier d’historien”, ensaio inacabado (escrito entre o final de 1940 e os primeiros meses de 1943) da autoria de Marc Bloch, um indispensável historiador do século XX para compreendermos o regime nazi e a irresponsabilidade de muitos intelectuais que se mantiveram em silêncio ou que aderiram à deterioração do espaço cívico, sobretudo europeu. Bloch quis legitimar o esforço intelectual dos historiadores, sem inocentar os colaboracionistas nem a passividade colectiva perante o nazismo, forma de fascismo que despreza a democracia liberal e que, através do massificado culto da violência, persegue e mata os estranhos aos ideais da nação hitleriana.

Os contextos críticos e, talvez, o rasto dos tempos pós-pandémicos possibilitam as sementes das ditaduras e das políticas que restringem a participação popular, fazendo crescer o neonazismo e novas geopolíticas. Embora isso não seja tão determinante, oxalá esses testemunhos nos sirvam, ao menos, para repensarmos o presente e para rejeitarmos a falácia de que, também nos dias seguintes ao de hoje, os “superiores” se possam achar no direito de dominar e de eliminar os indivíduos alegadamente “inferiores”!

(Créditos de imagem: Pete Linforth – Pixabay)

Na sua interpretação da História, a propósito de Donald Trump e da “doença americana” – “porque votar em Trump significa ser cego, surdo e mudo, cruel e violento” –, José Pacheco Pereira reconhece haver “várias coisas que são muitas vezes polémicas no trabalho da história, no seu duplo sentido, no modo como funciona aquilo a que chamamos história; e nos debates dos historiadores sobre esse movimento dos acontecimentos a que chamamos história”. Em torno das controvérsias sobre como funciona a causa-efeito na História, o cronista e investigador nota que “Trump parece ser um exemplo de como os indivíduos moldam a história introduzindo um factor subjectivo na sua interpretação, e reforçando o papel do acaso na evolução da história”.

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Nota:

O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 3 de Novembro) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.

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04/11/2024

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Vitalino José Santos

Jornalista, cronista e editor. Licenciado em Ciências Sociais (variante de Antropologia) e mestre em Jornalismo e Comunicação. Oestino (de Torres Vedras) que vive em Coimbra.

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