Barba-Azul

 Barba-Azul

(historiasdeamoremorte.wordpress.com)

Barba-Azul é a personagem central de um famoso conto, que nada tem de infantil, sobre um nobre violento e a sua esposa curiosa. Com o título de “La Barbe-Bleue”, foi escrito por Charles Perrault e publicado, pela primeira vez, no livro que ficou conhecido como “Contes de ma mère l’Oye” (“Contos da minha mãe Ganso”), de 1697.

Ilustração em guache de um manuscrito de “Contes de ma Mère l’Oye”, de
Charles Perrault, do final do século XVII. (fr.wikipedia.org)

Em jeito de sinopse, recordamos que Barba-Azul era um rico nobre, de aspecto assustador por ser muito feio, com uma horrível barba azul. Ele já tinha casado seis vezes, mas ninguém sabia o que tinha acontecido com as esposas, que desapareceram. Quando o Barba-Azul visitou um dos seus vizinhos e pediu para casar com uma das suas filhas, a família ficou apavorada. Mas Barba-Azul acabou por convencer a filha mais nova e foram viver no castelo. 

Pouco tempo depois, Barba-Azul avisou a sua jovem esposa de que iria viajar por uns tempos. E entregou-lhe todas as chaves da casa, incluindo a de um pequeno quarto que ele a havia proibido de entrar. Logo que ele se ausentou, a mulher começou a sofrer de grande curiosidade sobre o quarto proibido. Após alguns dias, pensando no que lá se encontraria, a mulher resolveu bisbilhotar o que havia no quarto. Aí, descobriu o macabro segredo do marido: o chão do quarto estava todo manchado de sangue e os corpos das ex-esposas do Barba-Azul estavam pendurados na parede. Diante do quadro macabro, deixou cair a chave, que ficou manchada de sangue. Inutilmente, tentou limpá-la, pois a chave é encantada (assinalando a presença do elemento maravilhoso no conto). Apavorada, foge do quarto.

Barba-Azul está prestes a cortar a garganta da sua esposa, mas os seus irmãos surgem correndo a cavalo para salvá-la. Podemos ver a irmã Anne no topo da torre. Gravura de Antoine Clouzier decorando a primeira edição de Contes de ma Mère l’Oye , Paris, publicada por Barbin, em 1697. (fr.wikipedia.org)

Quando o Barba-Azul regressou, percebeu imediatamente o que sua esposa tinha feito. Cego de raiva, ele ameaçou-a. Mas ela conseguiu escapar e trancar-se junto da irmã, na torre mais alta do castelo. Quando o Barba-Azul, armado com uma espada, tentava derrubar a porta, chegaram dois irmãos das raparigas. Os irmãos mataram o nobre enlouquecido e salvaram as suas familiares. 

Gilles de Rais (© Corbis – francebleu.fr)

Sobre esta personagem, há várias histórias a respeito da autenticidade da sua existência. Entre elas, lendas relacionadas com indivíduos históricos da Britânia ou aquela, mais famosa, que atribui a esta personagem a pessoa de Gilles de Rais, (cerca do ano 1405–1440), cavaleiro e senhor da Bretanha, Anjou e Poitou, líder do exército francês e companheiro de armas de Joana d’Arc. Na designação moderna, este seria um “serial killer” confesso de uma série de assassinatos de crianças, cujas vítimas chegam a centenas. Os assassinatos terminaram, precisamente, no ano de 1440.

Depois de julgado pelos seus crimes, foi condenado a ser executado por enforcamento e queimado na fogueira, numa quarta-feira, 26 de Outubro. O seu corpo foi esquartejado antes de ser consumido pelas chamas. 

Miniatura representando o julgamento de Gilles de Rais. (Biblioteca Nacional da França, século XVII – pt.wikipedia.org)

Lembrei-me deste conto, que (volto a repetir) é pouco ou nada de infantil. Quando li as notícias de que Gisèle Pelicot depôs, pela última vez, em tribunal. Acusada de não conseguir condenar totalmente o ex-marido, garantindo que as acções sofridas não têm perdão.

Num texto jornalístico assinado por Marina Ferreira e publicado no Observador, a 19 de Novembro de 2024, lemos:Defesa de agressor [o seu marido] tentou descredibilizar mulher violada em série acusando-a de não condenar totalmente o seu principal agressor. […] Foi uma manhã tensa e agitada no tribunal de Avignon, no sul de França, durante o depoimento final de Gisèle Pelicot, a mulher que foi drogada e violada durante dez anos pelo seu marido e dezenas de homens que se deslocavam à casa do ex-casal para consumar as agressões sexuais que decorriam enquanto estava inconsciente.”

Gisèle Pelicot compareceu a quase todas as audiências do julgamento iniciado
em Setembro de 2024. (Créditos fotográficos: Reuters – bbc.com)

As primeiras notícias sobre este caso começaram a aparecer no mês de Setembro. Recorremos, novamente, a um outro texto da autoria de Marina Ferreira, publicado no Observador, em 4 de Setembro: “Gisèle Pelicot foi violada por mais de 80 homens entre 2010 e 2020. O crime que está a chocar [a] França envolveu um planeamento detalhado dos a[c]tos de violência sexual pelo próprio marido. Dominique Pelicot drogou sucessivamente a mulher, colocando-a num estado de inconsciência total, e convidou estranhos, que conhecia online, para a violarem na casa de ambos. ‘Pu-la a dormir, ofereci-a e filmei“, confessou o agressor quando foi detido.”

E a jornalista Marina Ferreira prossegue: “O julgamento do caso começou esta segunda-feira no Tribunal de Avignon, no sul de França, e prevê-se que dure quatro meses. Dominique Pelicot, de 71 anos, e os outros 50 arguidos podem ser condenados a 20 anos de prisão se forem condenados pelo crime de violação agravada. Os investigadores do caso não conseguiram, até agora, identificar e localizar mais de 30 outros homens que surgem nas gravações dos atos de violência sexual.”

Nesta história real, haverá quartos fechados, chaves e manchas de sangue delatoras. Todo o processo de violação consecutiva é uma enorme mancha de vergonha inimaginável numa sociedade que se julga evoluída e culta como a francesa, mas que “banaliza a violação”! 

Poderão os tribunais franceses trazer honra e justiça a esta mulher, Gisèle, que, ao contrário do conto “La Barbe-Bleue”, tem nome?

A propósito, relembro as notícias sobre violência doméstica divulgadas a 25 de Novembro, assinalando o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres.

(Imagem de divulgação da APAV)

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) registou 15 mil crimes de violência doméstica no primeiro semestre do ano. Ou seja, neste ano, já foram mortas 18 pessoas pelos companheiros.

A APAV alerta, também, que as situações de homicídio e os pedidos de ajuda por violência doméstica aumentam no Natal e na passagem de ano, por causa da pressão das festas natalícias.

Por sua vez, o jornal espanhol El País (na sua edição também de 25 de Novembro, com um texto assinado por Beatriz Lecumberri), informa: “Todos os dias, 140 mulheres e meninas são assassinadas pelo parceiro ou por um familiar, o que significa um feminicídio a cada 10 minutos, segundo relatório da ONU Mulheres e do Gabinete das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, publicado esta segunda-feira). por ocasião do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres.

(Imagem de divulgação da APAV)

Em todo o mundo, 85 mil mulheres foram assassinadas em 2023 e 60% destes homicídios, ou seja, cerca de 51 mil, foram cometidos por companheiro ou familiar, número superior aos 48,8 mil registados em 2022, afirma o estudo Femicídios em 2023.”

Voltando ao ponto de partida, lembro que sobre o tema original de Barba-Azul existem várias versões e diversos trabalhos a partir desta personagem. Vejamos alguns exemplos.

Peça “À procura do Medo”, pelo Teatro Art´Imagem, em 1986. (Direitos reservados)
Jacques Offenbach (pt.wikipedia.org)

A ópera “O Castelo de Barba-Azul”, ópera em um acto e a única de autoria do húngaro Béla Bartók, composta em 1911. O libreto foi escrito pelo crítico e poeta Béla Balázs, também húngaro e amigo de Bartók. A obra acentua os aspectos simbolistas, utilizando apenas dois cantores acompanhados por uma grande orquestra, de mais de noventa músicos. Utilizei partes deste texto e da música, no conto dos irmãos Grimm na minha adaptação de “À Procura do Medo” para a encenação com o Teatro Art´Imagem (em colaboração com o Goethe-Institut), numa tradução de Ilse Himmel.

Tão consequente com a sua ironia e irreverência, Jacques Offenbach, o célebre compositor e violoncelista alemão radicado na França compõe, em 1866, a sua obra “Barbe-Bleue”, uma ópera-bufa ou opereta em três actos (quatro cenas), a partir de um libreto francês de Henri Meilhac e de Ludovic Halévy. Tive a feliz oportunidade de ver uma versão desta opereta na Ópera Cómica de Berlim. 

(Direitos reservados)

Um dos filmes mais incompreendidos de Charles Chaplin é “Monsieur Verdoux” (em Portugal, “O Barba-Azul”), de 1947. Trata-se de uma comédia de humor negro, realizada e protagonizada por Chaplin, apresentando-se como uma crítica severa e polémica ao capitalismo e ao militarismo, associando os seus mentores a assassinos comuns e considerando-os piores do que estes. 

Aguardando execução pelos seus crimes, Verdoux diz a um jornalista: “Um assassinato faz um vilão… milhões um herói. Os números santificam, meu bom amigo.” O argumento do filme inspira-se nos factos reais da história do assassino em série Henri Désiré Landru, sentenciado à morte em 21 de Novembro de 1921 e executado na guilhotina em 25 de Fevereiro de 1922. 

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05/12/2024

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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