Barba-Azul
Barba-Azul é a personagem central de um famoso conto, que nada tem de infantil, sobre um nobre violento e a sua esposa curiosa. Com o título de “La Barbe-Bleue”, foi escrito por Charles Perrault e publicado, pela primeira vez, no livro que ficou conhecido como “Contes de ma mère l’Oye” (“Contos da minha mãe Ganso”), de 1697.
Em jeito de sinopse, recordamos que Barba-Azul era um rico nobre, de aspecto assustador por ser muito feio, com uma horrível barba azul. Ele já tinha casado seis vezes, mas ninguém sabia o que tinha acontecido com as esposas, que desapareceram. Quando o Barba-Azul visitou um dos seus vizinhos e pediu para casar com uma das suas filhas, a família ficou apavorada. Mas Barba-Azul acabou por convencer a filha mais nova e foram viver no castelo.
Pouco tempo depois, Barba-Azul avisou a sua jovem esposa de que iria viajar por uns tempos. E entregou-lhe todas as chaves da casa, incluindo a de um pequeno quarto que ele a havia proibido de entrar. Logo que ele se ausentou, a mulher começou a sofrer de grande curiosidade sobre o quarto proibido. Após alguns dias, pensando no que lá se encontraria, a mulher resolveu bisbilhotar o que havia no quarto. Aí, descobriu o macabro segredo do marido: o chão do quarto estava todo manchado de sangue e os corpos das ex-esposas do Barba-Azul estavam pendurados na parede. Diante do quadro macabro, deixou cair a chave, que ficou manchada de sangue. Inutilmente, tentou limpá-la, pois a chave é encantada (assinalando a presença do elemento maravilhoso no conto). Apavorada, foge do quarto.
Quando o Barba-Azul regressou, percebeu imediatamente o que sua esposa tinha feito. Cego de raiva, ele ameaçou-a. Mas ela conseguiu escapar e trancar-se junto da irmã, na torre mais alta do castelo. Quando o Barba-Azul, armado com uma espada, tentava derrubar a porta, chegaram dois irmãos das raparigas. Os irmãos mataram o nobre enlouquecido e salvaram as suas familiares.
Sobre esta personagem, há várias histórias a respeito da autenticidade da sua existência. Entre elas, lendas relacionadas com indivíduos históricos da Britânia ou aquela, mais famosa, que atribui a esta personagem a pessoa de Gilles de Rais, (cerca do ano 1405–1440), cavaleiro e senhor da Bretanha, Anjou e Poitou, líder do exército francês e companheiro de armas de Joana d’Arc. Na designação moderna, este seria um “serial killer” confesso de uma série de assassinatos de crianças, cujas vítimas chegam a centenas. Os assassinatos terminaram, precisamente, no ano de 1440.
Depois de julgado pelos seus crimes, foi condenado a ser executado por enforcamento e queimado na fogueira, numa quarta-feira, 26 de Outubro. O seu corpo foi esquartejado antes de ser consumido pelas chamas.
Lembrei-me deste conto, que (volto a repetir) é pouco ou nada de infantil. Quando li as notícias de que Gisèle Pelicot depôs, pela última vez, em tribunal. Acusada de não conseguir condenar totalmente o ex-marido, garantindo que as acções sofridas não têm perdão.
Num texto jornalístico assinado por Marina Ferreira e publicado no Observador, a 19 de Novembro de 2024, lemos: “Defesa de agressor [o seu marido] tentou descredibilizar mulher violada em série acusando-a de não condenar totalmente o seu principal agressor. […] Foi uma manhã tensa e agitada no tribunal de Avignon, no sul de França, durante o depoimento final de Gisèle Pelicot, a mulher que foi drogada e violada durante dez anos pelo seu marido e dezenas de homens que se deslocavam à casa do ex-casal para consumar as agressões sexuais que decorriam enquanto estava inconsciente.”
As primeiras notícias sobre este caso começaram a aparecer no mês de Setembro. Recorremos, novamente, a um outro texto da autoria de Marina Ferreira, publicado no Observador, em 4 de Setembro: “Gisèle Pelicot foi violada por mais de 80 homens entre 2010 e 2020. O crime que está a chocar [a] França envolveu um planeamento detalhado dos a[c]tos de violência sexual pelo próprio marido. Dominique Pelicot drogou sucessivamente a mulher, colocando-a num estado de inconsciência total, e convidou estranhos, que conhecia online, para a violarem na casa de ambos. ‘Pu-la a dormir, ofereci-a e filmei“, confessou o agressor quando foi detido.”
E a jornalista Marina Ferreira prossegue: “O julgamento do caso começou esta segunda-feira no Tribunal de Avignon, no sul de França, e prevê-se que dure quatro meses. Dominique Pelicot, de 71 anos, e os outros 50 arguidos podem ser condenados a 20 anos de prisão se forem condenados pelo crime de violação agravada. Os investigadores do caso não conseguiram, até agora, identificar e localizar mais de 30 outros homens que surgem nas gravações dos atos de violência sexual.”
Nesta história real, haverá quartos fechados, chaves e manchas de sangue delatoras. Todo o processo de violação consecutiva é uma enorme mancha de vergonha inimaginável numa sociedade que se julga evoluída e culta como a francesa, mas que “banaliza a violação”!
Poderão os tribunais franceses trazer honra e justiça a esta mulher, Gisèle, que, ao contrário do conto “La Barbe-Bleue”, tem nome?
A propósito, relembro as notícias sobre violência doméstica divulgadas a 25 de Novembro, assinalando o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres.
A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) registou 15 mil crimes de violência doméstica no primeiro semestre do ano. Ou seja, neste ano, já foram mortas 18 pessoas pelos companheiros.
A APAV alerta, também, que as situações de homicídio e os pedidos de ajuda por violência doméstica aumentam no Natal e na passagem de ano, por causa da pressão das festas natalícias.
Por sua vez, o jornal espanhol El País (na sua edição também de 25 de Novembro, com um texto assinado por Beatriz Lecumberri), informa: “Todos os dias, 140 mulheres e meninas são assassinadas pelo parceiro ou por um familiar, o que significa um feminicídio a cada 10 minutos, segundo relatório da ONU Mulheres e do Gabinete das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, publicado esta segunda-feira). por ocasião do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres.
Em todo o mundo, 85 mil mulheres foram assassinadas em 2023 e 60% destes homicídios, ou seja, cerca de 51 mil, foram cometidos por companheiro ou familiar, número superior aos 48,8 mil registados em 2022, afirma o estudo Femicídios em 2023.”
Voltando ao ponto de partida, lembro que sobre o tema original de Barba-Azul existem várias versões e diversos trabalhos a partir desta personagem. Vejamos alguns exemplos.
A ópera “O Castelo de Barba-Azul”, ópera em um acto e a única de autoria do húngaro Béla Bartók, composta em 1911. O libreto foi escrito pelo crítico e poeta Béla Balázs, também húngaro e amigo de Bartók. A obra acentua os aspectos simbolistas, utilizando apenas dois cantores acompanhados por uma grande orquestra, de mais de noventa músicos. Utilizei partes deste texto e da música, no conto dos irmãos Grimm na minha adaptação de “À Procura do Medo” para a encenação com o Teatro Art´Imagem (em colaboração com o Goethe-Institut), numa tradução de Ilse Himmel.
Tão consequente com a sua ironia e irreverência, Jacques Offenbach, o célebre compositor e violoncelista alemão radicado na França compõe, em 1866, a sua obra “Barbe-Bleue”, uma ópera-bufa ou opereta em três actos (quatro cenas), a partir de um libreto francês de Henri Meilhac e de Ludovic Halévy. Tive a feliz oportunidade de ver uma versão desta opereta na Ópera Cómica de Berlim.
Um dos filmes mais incompreendidos de Charles Chaplin é “Monsieur Verdoux” (em Portugal, “O Barba-Azul”), de 1947. Trata-se de uma comédia de humor negro, realizada e protagonizada por Chaplin, apresentando-se como uma crítica severa e polémica ao capitalismo e ao militarismo, associando os seus mentores a assassinos comuns e considerando-os piores do que estes.
Aguardando execução pelos seus crimes, Verdoux diz a um jornalista: “Um assassinato faz um vilão… milhões um herói. Os números santificam, meu bom amigo.” O argumento do filme inspira-se nos factos reais da história do assassino em série Henri Désiré Landru, sentenciado à morte em 21 de Novembro de 1921 e executado na guilhotina em 25 de Fevereiro de 1922.
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05/12/2024