Benita Prieto: “O contador urbano pode estar em qualquer espaço cultural”
Benita Prieto é escritora, contadora de histórias, curadora, consultora, produtora e mediadora de projetos de leitura. Nesta entrevista conduzida pelo sinalAberto, admite que é, principalmente, “uma artista da palavra, que tem o privilégio de poder estar em [muitos] lugares, criando pontes para dar a conhecer a rica cultura falada e escrita que [existe] no Brasil”
sinalAberto – Iniciou, oficialmente, como contadora de histórias em 1991, no “Grupo Morandubetá”, no Brasil, onde nasceu. Em que consiste este projeto e como é que, passados 30 anos, continua ativo e dinâmico?
Benita Prieto – Quando começámos essa iniciativa era para mostrar a importância da narração oral no contexto urbano. O Brasil, por ser um caldeirão cultural, tem no interior do país, nas populações ribeirinhas, nas áreas quilombolas e indígenas, os contadores de histórias como fonte de entretenimento, de sabedoria e de património vivo. Porém, nas grandes cidades, isso havia desaparecido, ficando restrito ao ambiente escolar. A nossa missão foi mostrar que o contador urbano pode estar em qualquer espaço cultural. Essa proposta se espalhou e, hoje, temos uma rede de contadores de histórias por todo o território brasileiro.
sA – Integradas no projeto, conta já com cerca de duas mil apresentações um pouco por todo o Brasil, mas também em Portugal, na Espanha, no Uruguai, na Colômbia, na Venezuela, em Cuba, no Chile, na Argentina e em Moçambique, com o intuito de dar a conhecer parte da tradição oral e da literatura brasileira. Considera-se, de alguma forma, embaixadora da cultura do Brasil no mundo?
BP – Acho que sou uma artista da palavra, que tem o privilégio de poder estar em todos esses lugares, criando pontes para dar a conhecer a rica cultura falada e escrita que temos no Brasil. Creio que todos os artistas são embaixadores de suas regiões. Essa é a nossa função e desejo, quando estamos viajando: mostrar de onde somos e quais as particularidades que nos forjaram. Eu não acredito na globalização da cultura, sempre seremos representantes de nossas aldeias físicas ou metafóricas.
sA – Em muitos países africanos, a oralidade das histórias assume enorme relevância, sobretudo, pela dificuldade em documentar esses testemunhos vivos, no que à edição em livro diz respeito. O contador deveria ter também o mesmo estatuto de património (i)material da Humanidade, que muitas histórias têm, pela preservação e divulgação dessa herança cultural junto das gerações mais novas?
BP – Acredito que em muitos países já tem esse status. Lembrei-me dos “griots” e “griottes” da África Ocidental, os repentistas do Nordeste brasileiro, os xamãs presentes em vários povos originários do Mundo. Esses portadores da palavra são fundamentais para as sociedades onde vivem. Muitas vezes, a própria comunidade os referencia e respeita. No Brasil, isso acontece muito com contadores de histórias que são artesãos, ceramistas. Temos até o conceito de “Mestres da Cultura Popular” que os mapeia e classifica, inclusive muitos ganham um salário vitalício em respeito à contribuição que dão para a preservação das suas raízes culturais. A questão é que não é um tipo de contador de histórias, são múltiplos.
sA – Ao narrar uma história, o contador pode adotar certas ferramentas e características próprias ou estudadas que passam, por exemplo, pelo vestuário, pelos adereços, pelo cenário, pela colocação da voz, pelos efeitos sonoros ou visuais e etc., para melhor chegar ao público. Apesar de muitas histórias terem um cunho tradicional e de estarem incluídas no folclore, a sua narração é uma arte em constante evolução?
BP – Todas as ferramentas são apêndices, fazem parte da “performance”. O que importa mesmo é a história contada, quando se cria o ambiente mágico que funde a palavra do contador com a imaginação do ouvinte. É por isso que essa arte evolui constantemente, pois cada geração traz questionamentos e propostas de escuta diferentes da anterior. Somos impactados pelo mundo que nos rodeia, mas as questões internas, os medos, os desejos serão sempre semelhantes. Por isso, a tradição oral se perpetua na Humanidade.
sA – O seu trabalho envolve a narração de contos, mas também é formadora e participa em colóquios e em oficinas sobre a arte de contar histórias, a par da partilha de práticas para incentivo à leitura. Sendo a promoção e a divulgação do livro e da leitura um assunto transversal a vários países, fale-nos dessa experiência, face à realidade cultural dos diversos locais onde já esteve.
BP – Esta sua observação dá uma tese de doutorado. Em cada país, a estratégia é diferente, pois depende de muitos fatores, nomeadamente políticos, económicos e sociais. Creio que, se todos esses países trabalhassem para terem a tríade livros, bibliotecas e mediadores, o avanço na promoção do livro e da leitura aconteceria. Infelizmente, sempre falta um item do tripé e, normalmente, é o dos mediadores de leitura. Por isso, gosto de fazer formações para estimular e para que as pessoas percebam a importância na indicação dos livros, da apresentação de autores e do fomento à fruição do texto. Acho que precisamos de bibliotecas atraentes e modernas, livros diversos e mediadores que busquem várias formas de captar leitores. Esse seria o melhor dos mundos.
sA – Enquanto produtora cultural, organizou feiras do livro, eventos literários e espetáculos de narração de histórias, com destaque para o “Simpósio Internacional de Contadores de Histórias”, promovido pelo SESC Rio, desde 2002, com a chancela da UNESCO, pela preservação do património imaterial da Humanidade. Em que medida esta distinção contribui para a importância do evento e dos contadores de histórias, relativamente ao seu papel na promoção e incentivo à leitura?
BP – Você tocou num ponto muito interessante. A importância de instituições respeitadas darem a sua chancela para projetos, mostra a seriedade da proposta e a efetiva importância no cenário onde está inserida. Normalmente, como espectadores, não observamos esses apoios, mas deveríamos. Essa chancela foi um grande incentivo e nos mostrou que estávamos no caminho certo. Foi uma injeção de ânimo.
sA – Além deste simpósio, de carácter multicultural, foi também convidada para a produção do “II Festival de Contadores dos Países de Língua Portuguesa”, em 2003, na cidade de Maputo, em Moçambique. Têm sido, aliás, vários, os festivais e encontros em que tem participado juntamente com narradores de outros países de língua oficial portuguesa. Sente que existe, nesses eventos, um verdadeiro sentimento de lusofonia?
BP – Foi um prazer fazer esse festival em Maputo, pois conheci contadores locais urbanos e os populares, além de ter sido a minha primeira viagem à África. Estar num país que fala Português, mas de uma forma diferente, é fascinante. E perceber as diversas etnias que existem e convivem em Moçambique é de uma riqueza cultural imensa. Acho que, mais do que um sentimento de lusofonia, nesses eventos, descobrimos as particularidades de cada um desses povos, buscando respeitar suas singularidades.
sA – Entre tantas outras coisas, integrou o Grupo de Estudos em Literatura Infantil e Juvenil (GELIJ) do Instituto Interdisciplinar de Leitura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), que escolhe os livros para o Selo Cátedra, no Brasil. Como congénere, em Portugal e sob a sua coordenação técnica, nasceu o Selo Caminhos de Leitura, numa parceria com a referida entidade brasileira, mas igualmente com a Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, com a Rede de Bibliotecas Escolares e com o Centro de Investigação em Estudos da Criança. Elucide-nos sobre a ligação entre ambos os selos, aquilo que representam, como funcionam e também a que finalidade se destinam.
BP – Eu já não participo do GELIJ, pois vivo em Portugal. Mas vim com o propósito de trazer essa boa prática do Brasil para cá e achei o terreno fértil em Pombal. Como o “Caminhos de Leitura” é um evento consolidado, acharam que seria o momento de investigar sobre a literatura infantil e juvenil, daí surgiu o “Observatório de Leitura”, para difundir e promover a literatura para a infância e juventude, bem como os escritores, os ilustradores e os editores, proporcionando a troca de conhecimento editorial e projetando os autores nos territórios da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Uma das funções é atribuir o “Selo Caminhos de Leitura” que vai para a sua terceira edição em 2024. São 10 grandes especialistas da área que tenho o prazer de coordenar.
Durante o ano, recebemos os livros enviados pelas editoras, fazemos a triagem com a equipa da Biblioteca [Municipal] de Pombal. Posteriormente, os livros são lidos, resenhados e selecionados pelos especialistas em reuniões presenciais. O resultado é divulgado no dia 23 de abril (exceto o “Selo Brasil”), com as seguintes categorias:
- “Selo Distinção” (considerados os melhores livros do ano) – 10 livros;
- “Selo Seleção” (livros que não podem faltar em qualquer biblioteca, com diversidade de autores, de editoras e de temáticas) – até 40 livros;
- “Selo António Torrado” – Menção Honrosa (livro que se destaca em todas as categorias) – um livro; e
- “Selo Brasil” (selecionados a partir dos livros premiados com o Selo Cátedra 10 – Cátedra da Unesco para a Leitura da PUC-Rio) – até cinco livros.
Todas as resenhas e livros premiados podem ser vistos no “site” Caminhos de Leitura.
Tem sido um trabalho árduo, mas, desde o primeiro ano, a repercussão é positiva. E esse caminho de ida e volta Portugal/Brasil já deu frutos com a publicação de livros vencedores do “Selo Caminhos de Leitura”.
sA – É autora e organizadora de variadas obras. Em 2022, coordenou o livro “Bendito e Louvado, Conto Contado: Contos Populares Portugueses”, que reúne textos escritos por 14 narradores portugueses. A riqueza deste projeto passa, desde logo, pela diversidade dos contos incluídos, mas também pelas características de cada um dos narradores. A obra foi publicada simultaneamente em Portugal e no Brasil. Como mentora do projeto e conhecida por, ao nível da narração, estabelecer pontes entre os dois países, quais foram os principais objetivos para a elaboração do livro? Saíram reforçados os laços narrativos e afetivos entre Portugal e o Brasil?
BP – Sempre me afligiu a falta de projetos de cooperação, entre os nossos países, na área artística. Pelo facto de viver agora em Portugal, vi que poderia ser a oportunidade de criar uma ponte. Daí foi encontrada a parceria certa da Editora Aletria (do Brasil) e Grupo Narrativa (editora de Portugal). É um livro que tem dado muitas alegrias. E tenho certeza de que esses laços se estreitam a cada inciativa como esta.
sA – A narração e a figura do narrador são cada vez mais valorizadas, não só relativamente à promoção e ao incentivo à leitura, mas também na preservação da identidade cultural dos povos. O que, na sua perspetiva, tem contribuído para esta mudança de paradigma?
BP – Acho que isso vai depender do país, ainda temos muito para evoluir. E, infelizmente, tudo é cíclico. Essa radicalização que vemos no Mundo pode afetar enormemente o trabalho que fazemos. Onde não há liberdade, a palavra é aprisionada e isso, de alguma maneira, já vem afetando o nosso ofício com a censura a livros e ao encerramento de eventos. A resistência é necessária e sempre fica o ensinamento de Xerazade que conseguiu cativar o sultão Shariar.
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03/10/2024