Benita Prieto: “O contador urbano pode estar em qualquer espaço cultural”

 Benita Prieto: “O contador urbano pode estar em qualquer espaço cultural”

Escritora Benita Prieto. (Direitos reservados)

Benita Prieto é escritora, contadora de histórias, curadora, consultora, produtora e mediadora de projetos de leitura. Nesta entrevista conduzida pelo sinalAberto, admite que é, principalmente, “uma artista da palavra, que tem o privilégio de poder estar em [muitos] lugares, criando pontes para dar a conhecer a rica cultura falada e escrita que [existe] no Brasil”

“Creio que todos os artistas são embaixadores de suas regiões”, observa
Benita Prieto. (Créditos fotográficos: Ricardo Schopke)

sinalAberto – Iniciou, oficialmente, como contadora de histórias em 1991, no “Grupo Morandubetá”, no Brasil, onde nasceu. Em que consiste este projeto e como é que, passados 30 anos, continua ativo e dinâmico?

Benita Prieto – Quando começámos essa iniciativa era para mostrar a importância da narração oral no contexto urbano. O Brasil, por ser um caldeirão cultural, tem no interior do país, nas populações ribeirinhas, nas áreas quilombolas e indígenas, os contadores de histórias como fonte de entretenimento, de sabedoria e de património vivo. Porém, nas grandes cidades, isso havia desaparecido, ficando restrito ao ambiente escolar. A nossa missão foi mostrar que o contador urbano pode estar em qualquer espaço cultural. Essa proposta se espalhou e, hoje, temos uma rede de contadores de histórias por todo o território brasileiro.

sA – Integradas no projeto, conta já com cerca de duas mil apresentações um pouco por todo o Brasil, mas também em Portugal, na Espanha, no Uruguai, na Colômbia, na Venezuela, em Cuba, no Chile, na Argentina e em Moçambique, com o intuito de dar a conhecer parte da tradição oral e da literatura brasileira. Considera-se, de alguma forma, embaixadora da cultura do Brasil no mundo?

BP – Acho que sou uma artista da palavra, que tem o privilégio de poder estar em todos esses lugares, criando pontes para dar a conhecer a rica cultura falada e escrita que temos no Brasil. Creio que todos os artistas são embaixadores de suas regiões. Essa é a nossa função e desejo, quando estamos viajando: mostrar de onde somos e quais as particularidades que nos forjaram. Eu não acredito na globalização da cultura, sempre seremos representantes de nossas aldeias físicas ou metafóricas.

Eu não acredito na globalização da cultura”, declara Benita Prieto. (Direitos reservados)

sA – Em muitos países africanos, a oralidade das histórias assume enorme relevância, sobretudo, pela dificuldade em documentar esses testemunhos vivos, no que à edição em livro diz respeito. O contador deveria ter também o mesmo estatuto de património (i)material da Humanidade, que muitas histórias têm, pela preservação e divulgação dessa herança cultural junto das gerações mais novas?

BP – Acredito que em muitos países já tem esse status. Lembrei-me dos “griots” e “griottes” da África Ocidental, os repentistas do Nordeste brasileiro, os xamãs presentes em vários povos originários do Mundo. Esses portadores da palavra são fundamentais para as sociedades onde vivem. Muitas vezes, a própria comunidade os referencia e respeita. No Brasil, isso acontece muito com contadores de histórias que são artesãos, ceramistas. Temos até o conceito de “Mestres da Cultura Popular” que os mapeia e classifica, inclusive muitos ganham um salário vitalício em respeito à contribuição que dão para a preservação das suas raízes culturais. A questão é que não é um tipo de contador de histórias, são múltiplos.

“Somos impactados pelo mundo que nos rodeia, mas as questões internas, os medos, os desejos serão sempre semelhantes. Por isso, a tradição oral se perpetua na Humanidade”, considera Benita Prieto. (Créditos fotográficos: Biblioteca Municipal de Loulé)

sA – Ao narrar uma história, o contador pode adotar certas ferramentas e características próprias ou estudadas que passam, por exemplo, pelo vestuário, pelos adereços, pelo cenário, pela colocação da voz, pelos efeitos sonoros ou visuais e etc., para melhor chegar ao público. Apesar de muitas histórias terem um cunho tradicional e de estarem incluídas no folclore, a sua narração é uma arte em constante evolução?

BP – Todas as ferramentas são apêndices, fazem parte da “performance”. O que importa mesmo é a história contada, quando se cria o ambiente mágico que funde a palavra do contador com a imaginação do ouvinte. É por isso que essa arte evolui constantemente, pois cada geração traz questionamentos e propostas de escuta diferentes da anterior. Somos impactados pelo mundo que nos rodeia, mas as questões internas, os medos, os desejos serão sempre semelhantes. Por isso, a tradição oral se perpetua na Humanidade.

Para Benita Prieto,o que importa mesmo é a história contada,
quando se cria o ambiente mágico que funde a palavra do
contador com a imaginação do ouvinte”. (Direitos reservados)

sA – O seu trabalho envolve a narração de contos, mas também é formadora e participa em colóquios e em oficinas sobre a arte de contar histórias, a par da partilha de práticas para incentivo à leitura. Sendo a promoção e a divulgação do livro e da leitura um assunto transversal a vários países, fale-nos dessa experiência, face à realidade cultural dos diversos locais onde já esteve.

BP – Esta sua observação dá uma tese de doutorado. Em cada país, a estratégia é diferente, pois depende de muitos fatores, nomeadamente políticos, económicos e sociais. Creio que, se todos esses países trabalhassem para terem a tríade livros, bibliotecas e mediadores, o avanço na promoção do livro e da leitura aconteceria. Infelizmente, sempre falta um item do tripé e, normalmente, é o dos mediadores de leitura. Por isso, gosto de fazer formações para estimular e para que as pessoas percebam a importância na indicação dos livros, da apresentação de autores e do fomento à fruição do texto. Acho que precisamos de bibliotecas atraentes e modernas, livros diversos e mediadores que busquem várias formas de captar leitores. Esse seria o melhor dos mundos.

“Gosto de fazer formações para estimular e para que as pessoas percebam a importância na indicação dos livros, da apresentação de autores e do fomento à fruição do texto”, expressa a escritora e contadora de histórias Benita Prieto. (Direitos reservados)

sA – Enquanto produtora cultural, organizou feiras do livro, eventos literários e espetáculos de narração de histórias, com destaque para o “Simpósio Internacional de Contadores de Histórias”, promovido pelo SESC Rio, desde 2002, com a chancela da UNESCO, pela preservação do património imaterial da Humanidade. Em que medida esta distinção contribui para a importância do evento e dos contadores de histórias, relativamente ao seu papel na promoção e incentivo à leitura?

BP – Você tocou num ponto muito interessante. A importância de instituições respeitadas darem a sua chancela para projetos, mostra a seriedade da proposta e a efetiva importância no cenário onde está inserida. Normalmente, como espectadores, não observamos esses apoios, mas deveríamos. Essa chancela foi um grande incentivo e nos mostrou que estávamos no caminho certo. Foi uma injeção de ânimo.

sA – Além deste simpósio, de carácter multicultural, foi também convidada para a produção do “II Festival de Contadores dos Países de Língua Portuguesa”, em 2003, na cidade de Maputo, em Moçambique. Têm sido, aliás, vários, os festivais e encontros em que tem participado juntamente com narradores de outros países de língua oficial portuguesa. Sente que existe, nesses eventos, um verdadeiro sentimento de lusofonia?

BP – Foi um prazer fazer esse festival em Maputo, pois conheci contadores locais urbanos e os populares, além de ter sido a minha primeira viagem à África. Estar num país que fala Português, mas de uma forma diferente, é fascinante. E perceber as diversas etnias que existem e convivem em Moçambique é de uma riqueza cultural imensa. Acho que, mais do que um sentimento de lusofonia, nesses eventos, descobrimos as particularidades de cada um desses povos, buscando respeitar suas singularidades.

“Estar num país que fala Português, mas de uma forma diferente, é fascinante”, diz a escritora e mediadora de projectos de leitura Benita Prieto. (Direitos reservados)

sA – Entre tantas outras coisas, integrou o Grupo de Estudos em Literatura Infantil e Juvenil (GELIJ) do Instituto Interdisciplinar de Leitura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), que escolhe os livros para o Selo Cátedra, no Brasil. Como congénere, em Portugal e sob a sua coordenação técnica, nasceu o Selo Caminhos de Leitura, numa parceria com a referida entidade brasileira, mas igualmente com a Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, com a Rede de Bibliotecas Escolares e com o Centro de Investigação em Estudos da Criança. Elucide-nos sobre a ligação entre ambos os selos, aquilo que representam, como funcionam e também a que finalidade se destinam.

BP – Eu já não participo do GELIJ, pois vivo em Portugal. Mas vim com o propósito de trazer essa boa prática do Brasil para cá e achei o terreno fértil em Pombal. Como o “Caminhos de Leitura” é um evento consolidado, acharam que seria o momento de investigar sobre a literatura infantil e juvenil, daí surgiu o “Observatório de Leitura”, para difundir e promover a literatura para a infância e juventude, bem como os escritores, os ilustradores e os editores, proporcionando a troca de conhecimento editorial e projetando os autores nos territórios da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Uma das funções é atribuir o “Selo Caminhos de Leitura” que vai para a sua terceira edição em 2024. São 10 grandes especialistas da área que tenho o prazer de coordenar.

“Esse caminho de ida e de volta Portugal/Brasil já deu frutos”, reconhece Benita Prieto. (Direitos reservados)

Durante o ano, recebemos os livros enviados pelas editoras, fazemos a triagem com a equipa da Biblioteca [Municipal] de Pombal. Posteriormente, os livros são lidos, resenhados e selecionados pelos especialistas em reuniões presenciais. O resultado é divulgado no dia 23 de abril (exceto o “Selo Brasil”), com as seguintes categorias:

  • “Selo Distinção” (considerados os melhores livros do ano) – 10 livros;
  • “Selo Seleção” (livros que não podem faltar em qualquer biblioteca, com diversidade de autores, de editoras e de temáticas) – até 40 livros;
  • “Selo António Torrado” – Menção Honrosa (livro que se destaca em todas as categorias) – um livro; e
  • “Selo Brasil” (selecionados a partir dos livros premiados com o Selo Cátedra 10 – Cátedra da Unesco para a Leitura da PUC-Rio) – até cinco livros.

Todas as resenhas e livros premiados podem ser vistos no “site” Caminhos de Leitura.

Tem sido um trabalho árduo, mas, desde o primeiro ano, a repercussão é positiva. E esse caminho de ida e volta Portugal/Brasil já deu frutos com a publicação de livros vencedores do “Selo Caminhos de Leitura”.

“Como o ‘Caminhos de Leitura’ é um evento consolidado, acharam que seria o momento de investigar sobre a literatura infantil e juvenil, daí surgiu o ‘Observatório de Leitura’, para difundir e promover a literatura para a infância e juventude”, refere Benita Prieto. (Direitos reservados)

sA – É autora e organizadora de variadas obras. Em 2022, coordenou o livro “Bendito e Louvado, Conto Contado: Contos Populares Portugueses”, que reúne textos escritos por 14 narradores portugueses. A riqueza deste projeto passa, desde logo, pela diversidade dos contos incluídos, mas também pelas características de cada um dos narradores. A obra foi publicada simultaneamente em Portugal e no Brasil. Como mentora do projeto e conhecida por, ao nível da narração, estabelecer pontes entre os dois países, quais foram os principais objetivos para a elaboração do livro? Saíram reforçados os laços narrativos e afetivos entre Portugal e o Brasil?

(gruponarrativa.pt)

BP – Sempre me afligiu a falta de projetos de cooperação, entre os nossos países, na área artística. Pelo facto de viver agora em Portugal, vi que poderia ser a oportunidade de criar uma ponte. Daí foi encontrada a parceria certa da Editora Aletria (do Brasil) e Grupo Narrativa (editora de Portugal). É um livro que tem dado muitas alegrias. E tenho certeza de que esses laços se estreitam a cada inciativa como esta.

sA – A narração e a figura do narrador são cada vez mais valorizadas, não só relativamente à promoção e ao incentivo à leitura, mas também na preservação da identidade cultural dos povos. O que, na sua perspetiva, tem contribuído para esta mudança de paradigma?

BP – Acho que isso vai depender do país, ainda temos muito para evoluir. E, infelizmente, tudo é cíclico. Essa radicalização que vemos no Mundo pode afetar enormemente o trabalho que fazemos. Onde não há liberdade, a palavra é aprisionada e isso, de alguma maneira, já vem afetando o nosso ofício com a censura a livros e ao encerramento de eventos. A resistência é necessária e sempre fica o ensinamento de Xerazade que conseguiu cativar o sultão Shariar.

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03/10/2024

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Lurdes Breda

http://www.lurdesbreda.wordpress.com/

Lurdes Breda escreve, sobretudo, para crianças e jovens. É autora de dezenas de obras, algumas das quais integram o Plano Nacional de Leitura e estão editadas em Portugal, no Brasil e em Moçambique. Em 2005, foi distinguida com o Prémio “Mulheres de Valor” e, em 2014, recebeu a Medalha de Mérito Municipal Cultural, em Montemor-o-Velho. Em Maio de 2024, recebeu a “Comenda Dom Pedro II – por honra e mérito do seu trabalho, ligado à educação, cultura e bem-estar social”, atribuído pela Literarte – Associação Internacional de Escritores e Artistas, do Brasil. Em 2021, foi uma das mulheres contempladas no projecto “As Mulheres na Cultura e na Salvaguarda do Património Imaterial da Região Centro”, desenvolvido pela Direcção Regional de Cultura do Centro. Participa em actividades inclusivas e de cidadania, bem como na promoção do livro e da leitura, principalmente, em escolas e em bibliotecas de todo o país.

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