Brasil, trabalho: a escala 6X1 e os trabalhadores
A pauta da diminuição da carga horária no trabalho, hoje concretizada contra a escala 6×1 e que tem levantando centenas de pessoas em luta no país, mostrou uma verdade inabalável: o tema que toca a maioria das gentes é o que diz respeito ao seu quotidiano material.
A vida real, concreta, de quem efetivamente carrega o mundo nas costas a partir do seu trabalho é o que tem poder de mobilizar. Temas como racismo, género e etnia são importantes. É óbvio. E se expressam na vida das pessoas, causando dor e sofrimento, mas também causa dor o transporte ruim, o salário baixo, a escala desumana de trabalho, o posto de saúde que não funciona. Assim que essas pautas precisam de andar juntas. Por isso, quando uma pauta como a da escala 6×1 aparece, consegue tocar muito mais corpos do que as pautas de causas.
A luta pela diminuição da carga horária de trabalho é uma luta histórica dos trabalhadores. Desde o começo do capitalismo, os trabalhadores têm lutado e morrido por isso. Logo, não é uma novidade. A novidade, nesse caso, é ver que políticos visceralmente ligados ao identitarismo foram os que colocaram o tema em foco, o que mostra também que eles, finalmente, compreenderam – espero – que a luta contra o capital é a única que nos unifica como classe. E, portanto, é a que precisa ser feita para que venha, de verdade, a transformação.
Derrubar o capital, e não tentar viver no capitalismo com alguns direitos a mais.
Há muitos anos, temos discutido no Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) da Universidade Federal de Santa Catarina (no Brasil), o tema do identitarismo. Muito provavelmente, o professor Nildo Domingos Ouriques foi um dos primeiros no Brasil a fazer a crítica aos movimentos que decidiram apostar em lutas de causas, deixando de lado (ou obscurecendo) a luta de classe.
Na verdade, já nos anos 1980, o teórico equatoriano Agostin Cueva alertava a América Latina sobre o risco de os trabalhadores passarem a se organizar a partir de causas, bem como o dominicano (a viver no México) Hector Diáz-Polanco discutia os movimentos forjados a partir de etnia e identidade.
Num mundo no qual o capitalismo avançava na exploração, perder o foco da luta de classe parecia um erro. E ao que se nota, foi. Alavancado por financiamento da Fundação Ford e outras instituições estadunidenses – coordenadas pelo Departamento de Estado –, os estudos sobre causas passaram a se proliferar nas universidades: gênero, mulher, etnia, negritude, causa LGBT. Temas verdadeiramente importantes, mas que passaram a ser apresentados completamente esterilizados da luta anticapitalista.
A lógica do individualismo passou a dirigir os temas: meu corpo, minhas regras. Minha comunidade, minha cor, meu isso, meu aquilo. A medida é o eu, o igual. E o diálogo entre diferentes passou a desaparecer, mesmo entre companheiros. Enrique Dussel, em 1970, já mostrava que a lógica filosófica do “o ser é, o não-ser não-é” tinha de ser superada. Não foi. Foi aprofundada a ideia de que o que é diferente de mim, não-é. E, com isso, os trabalhadores se dividiram. Até a solidariedade desapareceu. Os temas ligados à materialidade da vida quotidiana foram capturados pela direita, que começou a sua escalada de sucesso no mundo todo.
Não sei o que vai dar essa batalha contra a escala 6×1. Os trabalhadores vão, aos poucos, percebendo a absurda exploração dos seus corpos, servidos, a cada semana, como sacrifício ao lucro do patrão. Essa é uma pauta que pode crescer e mobilizar as massas. Até porque, aquelas mesmas figuras de sucesso no YouTube e nas redes sociais que até ontem falavam das causas começam a discutir o drama do chamado “chão-da-fábrica”, que é o quotidiano exasperante de quem vende a sua força de trabalho e entrega a alma e o corpo ao capital.
O identitarismo sacou que a classe tem de estar no foco da nossa reflexão. Até quando, não sei. E se vai aprofundar o debate contra o capital, também não sei. Mas, é um bom começo.
Há que lembrar o que disse o “velho” Karl Marx, no seu texto sobre salário, preço e lucro: “O homem que não dispõe de nenhum tempo livre, cuja vida está toda ela absorvida pelo seu trabalho para o capitalista, é menos [do] que uma besta de carga. É uma simples máquina, fisicamente destroçada e espiritualmente animalizada, para produzir riqueza alheia. Os trabalhadores, ao lutarem contra isso cumprem um dever para com eles mesmos e [a] sua descendência”.
“A la carga!”, diria o general uruguaio José Artigas. Lutar contra o capital é a nossa principal batalha.
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21/11/2024