Buscando um rosto

 Buscando um rosto

Casa de Vania e de Theotonio, hoje, um museu que guarda memórias. (Direitos reservados)

Assistindo ao vídeo com o depoimento de Nadia Bambirra, filha de Vania e de Theotonio, ela contou um episódio que me emocionou de maneira avassaladora. No Chile, sob o golpe1 em 1973, centenas de pessoas foram buscar asilo na pequena Embaixada do Panamá.

(correiocidadania.com.br)

Nadia lembra que um dos funcionários da embaixada usou uma técnica perigosa para evitar que os soldados de Augusto Pinochet atirassem nas pessoas que saíam da casa em direção ao outro imóvel – cedido por Vania e por Theotonio para abrigar os mais de 200 asilados. Como os milicos2 não podiam atirar enquanto os refugiados estivessem no solo da embaixada, ele juntava as pessoas em grupos dentro de uma corda, unidos em círculo, e ia no meio, com a bandeira do Panamá nas mãos erguidas, assinalando que aquele círculo dentro da corda era território panamenho. Assim, de grupo em grupo, conseguiu tirar as mais de 200 pessoas do pequeno prédio da embaixada, levando-os para a casa de Vânia e de Theotonio, onde se abrigaram por um tempo e depois conseguiram sair do país.

Essa cena me comoveu às lágrimas. E fiquei curiosa de saber quem era esse homem extraordinário que colocou a sua vida em risco por gente que nem conhecia. Afinal, quem garantia que os milicos não iam atirar? Comecei a pesquisar e cada texto que eu encontrava falando sobre esse assunto fazia referência ao papel importante da Embaixada do Panamá, salvando gente, inclusive brasileiros, mas nada do nome da pessoa.

(outraspalavras.net/author/correiodacidadania)

Busquei nas páginas do governo panamenho, liguei para pessoas no Chile, liguei para a atual embaixada do Panamá no Chile e nada. O meu amigo Maicon Cláudio da Silva ajudou na pesquisa e viu que, em 1973, quem governava o Panamá era o general Omar Torrijos, um homem comprometido com as ideias socialistas. Estava mais ou menos explicado aquele ato heroico do funcionário da embaixada. Era um homem de Torrijos. Era alguém que apoiava Salvador Allende contra o golpe. Provavelmente, um socialista. Fiquei ainda mais impactada com aquele homem sem rosto, erguendo a bandeira do seu país, salvando pessoas. Um torrijista!

Seguia buscando o seu nome, sem sucesso, quando um comentário da própria Nadia, no vídeo que agora também divulgamos, abriu caminho para o reconhecimento desse homem bom. Quem levara os grupos dentro do círculo de cordas, com a bandeira na mão não era o cônsul nem o embaixador, era o secretário da embaixada, o diplomata José Guillermo Stoute. De novo, fui envolvida por intensa emoção. Sabia agora o seu nome e ele pode ser colocado no seu lugar na História como aquele que, com extrema coragem, usou o seu corpo para salvar mais de 200 almas: José Guilhermo Stoute Aguilar.

Mas, esse ainda é um nome sem rosto. Fui, novamente, para a Internet e coloquei lá o seu nome, diplomata, 1973. Apareceu o nome de uma mulher3 que é a sua filha. Essa página diz que ele nasceu em 1916 e que morreu em 1994. Fora isso nenhuma outra referência. Nenhuma foto. Mais uma vez, fui às lágrimas. Ele encantou sem que pudéssemos dizer o quanto somos gratos pelo seu gesto repleto de humanidade. Um panamenho torrijista, ainda sem rosto.

Mas, eu não desisto. Vou continuar buscando. Penso que haverei de encontrar o seu rosto, para que todos o conheçam e para que possamos reverenciar sua memória. Um homem que, no meio do terror desatado pelo maldito Pinochet, protegeu com o seu corpo e a bandeira do seu país os nossos companheiros.

¡Gracias, querido José Guilhermo Stoute Aguilar!

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Notas da Redacção:

1 – O golpe de Estado de 11 de Setembro de 1973, ocorrido no Chile, foi um golpe militar que derrubou o regime democrático constitucional daquele país, depondo o então presidente, Salvador Allende.

2 – “Milico” é um substantivo masculino, pejorativo, atribuído a qualquer militar, geralmente um soldado.

3 – Cecibel María Stoute Escala.

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24/08/2023

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Elaine Tavares

Jornalista e educadora popular. Editora da «Revista Pobres e Nojentas», com Miriam Santini de Abreu. Integra o coletivo editorial da «Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos». Coordenadora de Comunicação no Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (no Brasil).

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