Cantar com as aves, bem cedo

 Cantar com as aves, bem cedo

Créditos: António Granado

Uma das primeiras consequências pessoais da pandemia do ‘novo coronavírus’ (SARS-Cov-2 para os mais exigentes ou preciosistas) foi, ironicamente, passar a conversar regularmente com as aves do vale em frente. Bem cedo de manhã. Passo a explicar-me.

São cinco horas e abro a porta da varanda. Lá está o coro da madrugada. Ainda está bem escuro e os machos aproveitam o tempo para se fazerem ouvir, marcando o território e saudando as fêmeas. Ei, oiçam o meu timbre de vocalista e não se esqueçam. Não há ruídos de fundo e as notas soltam-se, límpidas. Locatelli ou Paganini a tocar as cordas vocais, em despique com os irmãos. Desperta e aviva a mente.

Despertar a mente com as aves passou a ser um ritual. Sou um short sleeper de sempre e passei a ser um early bird. De ocasião ou não ainda não sei, mas a coisa parece séria. O culpado é o SARS-CoV-2. Dantes tinha as minhas urgências, mas o trabalho podia começar a uma hora decente. Agora não. A urgência institucionalizou-se e o trabalho aperta mais do que nunca.

De modo que canto com as aves, para começar. Outros fazem yoga ou meditação matinal. (Pousar a mente no alegre e doce murmúrio das aves não deixa de ser uma forma de meditação, aliás bem especial.) Bom dia, aves. Bom dia, mundo. O mundo abre-se.

E o trabalho começa com energia. Primeiro as coisas urgentes, aquilo que não pode mesmo ser adiado. Um email que grita por resposta, uma aula que é preciso compor com rédea curta, um artigo que exige ser lido, uma pergunta de exame que pede correção, um… Enfim, o bread and butter. O melhor vem depois.

O depois é o tempo de fundo, o tempo que não acaba, o tempo que sustenta a vida. É o tempo do festina lente. Dantes não havia, agora há. Tempo para pensar o mundo enquanto o mundo dorme.

Tempo para ler, estudar e investigar, investigar sempre. Investigar para viver. Investigar para fazer ciência e investigar para ensinar. (Mente quem diz que não são necessárias grandes investigações para ensinar. Referem-se provavelmente ao ensino de assuntos triviais, que não exige grande esforço e provavelmente não vale a pena.)

(As aves já não cantam, mas não é preciso. A aurora levanta-se e silenciou-as. Dedicam-se agora a outras coisas, como buscar comida. Atenção, o pequeno-almoço espera. Preparo uma malga de cereais integrais, nozes, avelãs, framboesas, mirtilos, amoras, sementes, canela de Ceilão e leite de arroz. É o meu primeiro pequeno-almoço da manhã. O cérebro explode.) De modo que uma das primeiras consequências pessoais do SARS-Cov-2 foi, ironicamente, começar a ter tempo para tudo apesar de o trabalho ter aumentado para níveis sem precedentes. Ter tempo para tudo significa ter tempo para os projetos adiados, os projetos de fundo. Os projetos que assim deixam de ser projetos. Festina lente.O SARS-CoV-2 pode ser ameaçador e mesmo devastador. Mas, a nível muito pessoal, quase íntimo, eu agradeço-lhe o serendipitous bonus. A outra dimensão essencial do tempo, para mim, é a da cooperação e empatia. Este ano, pela primeira vez, tive tempo para acompanhar em profundidade, hora a hora, os projetos dos estudantes finalistas. De forma intensa mas lenta, como gosto de fazer, estudei, investiguei e discuti os temas que os próprios estudantes tinham escolhido. Foram longuíssimas horas de trabalho e aprendizagem mútua, sem barreiras. Sim, este ano pudemos avançar até onde quisemos, ou quase. Lançando mão a todos os recursos, informáticos e outros. Artigos científicos descarregados na internet, utilizando a ligação VPN à Universidade, bases de dados institucionais como a PubMed, projetos de código aberto como o LibreOffice, projetos empresariais de acesso livre como o Mendeley… Creio não exagerar ao dizer que se estabeleceu uma forte relação de empatia entre professor e estudantes, como nunca aconteceu no passado. Os estudantes fizeram o que puderam e eu fiz o que pude, com todas as limitações do covid-19 que depressa se tornaram oportunidades. É também possível que se tivesse desenvolvido alguma identidade de grupo típica de indivíduos sujeitos a um infortúnio partilhado, mas nunca o confessámos. (De momento, a comparação entre ‘covidados’ e prisioneiros de guerra é especulativa!) Sinto agora que é tempo do segundo pequeno-almoço da manhã e terei que terminar. Há pois outras perspetivas do SARS-Cov-2, para além da ameaça. Agradeço o ensinamento às pequenas aves do vale, cuja presença anónima tem sido essencial para a vida (a minha e a de todos), sem que alguma vez o tivéssemos intuído.

Festina lente.  

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Luís Martinho Rosário

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