Cochofel: aristocrata e poeta das causas dos simples

 Cochofel: aristocrata e poeta das causas dos simples

João José Cochofel no salão da casa de Coimbra. (Direitos reservados)

Era “homem de uma fina sensibilidade”, disse Manuel Alegre, pouco depois da sua morte. Embora discreto, poderia arrogar-se um Visconti, aliando o “gosto do antigo” ao “empenhamento” pela liberdade. A neta Sofia, hoje psicóloga, recorda as surpresas do convívio com João José Cochofel. A velha casa em Coimbra continua a ser um espaço aberto à escrita e à partilha de saberes…

João José Cochofel com as netas Sofia e Leonor, no Senhor da Serra. (Direitos reservados)

Na intenção de recolher “pistas” sobre o homem multifacetado que foi João José Cochofel, personalidade que teria uma “visão utópica” da realidade social portuguesa do século XX, uma das duas netas (a que se junta um irmão) – Sofia Cochofel Quintela – concordou em reavivar memórias da sua infância e, assim, “espelhar” um pouco da intimidade daquele que foi um dos dinamizadores da colectânea literária “Novo Cancioneiro” e um dos escritores da primeira geração do movimento estético neo-realista, com forte expressão nas revistas “Vértice” e “Seara Nova”.

Caricatura de J. J. Cochofel da autoria de Fernando Namora.
(Direitos reservados)

Ao aproveitar uma pausa da sua actividade de psicóloga, no Porto, Sofia – a quem se deveu, em 2010, a organização da antologia “Breve”, com poemas de J. J. Cochofel e prefácio de José Carlos Seabra Pereira – é uma das vozes essenciais para nos dar a conhecer um pouco melhor o filho de uma família aristocrática que, sobretudo em Coimbra, acompanhou uma geração de intelectuais e de artistas, de escritores (Arquimedes da Silva Santos, Joaquim Namorado, Carlos de Oliveira, Fernando Namora e Mário Dionísio, entre outros), de amantes da música e de gente com vontade de dar um novo rumo ao País, então em “rumor de espera”, como diria o académico Seabra Pereira.

O poeta J. J. Cochofel e a sua mulher Maria da Graça Simões de Carvalho Dória, conhecida apenas por “Dolly” (de origem irlandesa e catalã por parte do pai), com as netas Sofia e Leonor. (Direitos reservados)

Convidada a lembrar-se de alguma conversa, brincadeira do avô ou situação que a tivesse influenciado no desejo de mudar o Mundo, Sofia Cochofel Quintela afirma que a sua disposição para transfigurar o quotidiano “passa pela vontade de transformar o modo como as pessoas vêem o seu próprio mundo”, uma vez que é psicóloga. “Talvez esta sensibilidade de me colocar no lugar do outro, a tal empatia, tenha vindo desse avô maravilhoso, generoso, altruísta e bondoso”, observa, confessando que, “de repente”, lhe “surgem diversos episódios” da sua infância.

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Cochofel e a chegada à Lua

“Recordo-me de o encontrar frequentemente na cozinha na casa de Coimbra [actual Casa da Escrita1, na Alta e próxima da Torre de Anto, palacete adaptado a centro cultural e espaço de criação pelo arquitecto João Mendes Ribeiro, concretizando um sonho da filha de Cochofel, Maria Eugénia] a ensinar os empregados (cozinheira, jardineiro…) a ler e a escrever”, continua Sofia.

Casa da Escrita, na Rua João Jacinto, com o nome do bisavô de João José Cochofel. (© VJS – sinalAberto)

“Nesses tempos, era raro irem à escola e uma das grandes preocupações do meu avô foi a partilha do conhecimento, a abertura à luz, ao saber, às letras… E era tão habitual encontrá-lo na cozinha como nos salões!”, acrescenta, lembrando-se “do entusiasmo, da agitação e da excitação” do seu avô, quando – já na residência de Lisboa, em 1969 (tinha ela apenas cinco anos) – chamou “as empregadas para a sala, para que vissem o Homem chegar à Lua!”. “Tal momento foi acompanhado de grande emoção e alegria por todos”, acentua a neta de J. J. Cochofel, após 46 anos2 e ainda fascinada com as imagens televisivas de Neil Armstrong, enquanto descia a escada do módulo da Apollo.

“Nesses tempos, era raro irem à escola e uma das grandes preocupações do meu avô foi a partilha do conhecimento, a abertura à luz, ao saber, às letras…”, expõe Sofia Cochofel Quintela

Outra das memórias de Sofia prende-se com “o amor [de Cochofel] aos animais e à Natureza” e com a circunstância de “um dia” a ter convidado a sair de casa, avisando “baixinho”: “Não digas nada à tua avó!…” Assim, Cochofel e a neta percorreram o pinhal, no Senhor da Serra (concelho de Miranda do Corvo, junto daquele que foi o maior santuário da região Centro, antes de Fátima), “com cuidado, para não fazer barulho”. “E ficámos à espera, até ouvirmos um ruído na caruma e aparecer uma cobra enorme!”, prossegue Sofia, declarando ter então ficado de “boca aberta”. “Durante esse Verão, todos os fins de tarde, íamos ver a cobra, em segredo, para que não a descobrissem e matassem”, conta a psicóloga e amante da fotografia, recentemente premiada.

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Na aldeia do Senhor da Serra

Curiosa foi também a decisão de J. J. Cochofel “quando fez obras na garagem e abriu um buraco no tecto para deixar passar uma árvore e não ter de a cortar…”, pelo que Sofia não se esquece de que, na aldeia, diziam “não haver pessoa ‘mais boa’…”

José Gomes Ferreira e João José Cochofel na casa do Senhor da Serra. (Direitos reservados)

É-lhe muito agradável saber “de todos os filhos e sobrinhos de empregados que ele [e, naturalmente, a avó materna de Sofia] levavam para Lisboa para os ajudar a singrar na vida, ficando alguns meses até conseguirem trabalho”, bem como “de todos os amigos (nomeadamente José Gomes Ferreira e Fernando Lopes-Graça) que passaram meses lá em casa [de preferência, na aldeia do Senhor da Serra, na vivenda que agora está abandonada e muito degradada] uns a escrever, outros a compor”.

Curiosa foi a decisão de J. J. Cochofel “quando fez obras na garagem e abriu um buraco no tecto para deixar passar uma árvore e não ter de a cortar…”

Além dos passeios com o avô, quase sempre ao pôr-do-sol, Sofia revive as “histórias” dos que ele “ia levar à fronteira, para fugirem da PIDE”. Episódios que terão contribuído para que, como prefaciou Seabra Pereira, haja “por detrás da poesia de João José Cochofel um encontro com a vida que, sabendo-se munido de dotes herdados e cultivados, se deixa tocar por uma expectativa exigente e lhe sofre as consequências”.

Em Março de 1982, o deputado e poeta Manuel Alegre apresentou na Assembleia da República um voto de pesar pela morte de Cochofel, testemunhando: “[…] em 1964, procurado pela polícia política, quando precisei de auxílio e de solidariedade, João José Cochofel, com a sua discrição de sempre, foi o primeiro a abrir-me as suas portas e, com o risco da sua segurança e da sua liberdade, transportou-me depois para o norte do País para que eu pudesse a seguir atravessar a fronteira e escapar à perseguição pessoal.”

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A “poesia prosaica, nua”, cochofeliana

Atribui-se ao ideólogo russo Nikolai Bukharine a tese de que “a arte é um meio de socialização dos sentimentos”. Na colectânea póstuma “Opiniões com Data” (1990), Cochofel recupera um texto escrito em Agosto de 1954, no Senhor da Serra, em que regista: “A sinceridade, a verdade, a eficiência do depoimento poético dependem visceralmente dos meios que o revelam, meios esses que lhe não são exteriores, mas sim a própria matéria em que tal depoimento se consubstancia”.

(© VJS – sinalAberto)

Por conseguinte, quem anda “à procura da sua própria definição” é “marcado pelos encontros que fez nesse tempo”, admite o pensador Eduardo Lourenço. Para o autor do ensaio “Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista” (2007), “as revoluções poéticas são mais raras do que se supõe e jamais existem sem que a forma mesmo o manifeste”.

Nesse sentido, Eduardo Lourenço escreve que “sem ser propriamente “revolucionário”, o contributo mais original em matéria de forma é o da poesia prosaica, nua, de Cochofel, a prática anti-retórica que ele é, abrindo assim para um objectivismo posterior, uma espécie de ascetismo, que terá mais tarde na poesia de um Echevarria, de um certo Ramos Rosa e de um António Reis expressões brilhantes”.

Ao frequentar o ambiente académico de Coimbra no início dos anos 40 (que “comportaram de facto um interesse vivíssimo pela poesia do passado” e quando o Teatro dos Estudantes – TEUC, sob a direcção de Paulo Quintela, “contribuía para um vicentismo poético” que “deixou traços em Carlos de Oliveira e Cochofel”), Eduardo Lourenço conheceu o então estudante de Ciências Histórico-Filosóficas, mas – como sublinhou, no âmbito deste trabalho jornalístico – não terá estabelecido uma “relação privilegiada com ele”.

Arquimedes da Silva Santos e J. J. Cochofel, no Sabugueiro. (Direitos reservados)

Nessa época, iniciava-se o convívio, a cumplicidade e a “fraterna amizade” do jovem aristocrata coimbrão com Arquimedes da Silva Santos (posteriormente licenciado em Medicina e quem propôs a criação da Formação de Educadores pela Arte) que terá fortalecido a “ponte” com o Grupo Neo-Realista de Vila Franca, o qual experimentou a realidade de um movimento mais popular e mais intervencionista.

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“As coisas são aquilo que são”

“Mas as coisas são aquilo que são. Os homens agem e pensam nas condições reais que lhes coube viver”, anota o investigador António Pedro Pita (docente na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – FLUC e actual3 director científico do Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira), num texto que prefacia uma obra ensaística de Garcez da Silva sobre o neo-realismo português e, especificamente, o de matriz mais real (como o de Alves Redol) em contraponto com o neo-realismo ideal de, por exemplo, Mário Dionísio.

Outra personalidade contactada para nos falar de Cochofel foi o diplomata e escritor José Fernandes Fafe, autor da primeira biografia de Ernesto Che Guevara e tido como o “mentor” da denominada Esquerda Liberal portuguesa. Numa breve conversa telefónica, em Setembro do corrente ano, este autor que expande a sua obra na poesia, no teatro, no romance e no ensaio disse ter chegado a Coimbra em 1945, certamente ainda sob os efeitos da “guerra total” e com a “imaturidade de quem tinha 17 anos”, para cursar Histórico-Filosóficas na FLUC. Por isso, reconhece em João José Cochofel e em Carlos de Oliveira os seus tutores intelectuais.

Carlos de Oliveira e João José Cochofel. (Direitos reservados)

Ao retomarmos a entrevista com Sofia Cochofel Quintela, a filha de Octávio Quintela (que qualifica de “grande colaborador” do seu avô, a par do cunhado de J. J. Cochofel – Ivo Cortesão, como também nos confirma Seabra Pereira, que foi seu aluno no antigo Liceu D. João III –, “principalmente no Grande Dicionário de Literatura Portuguesa”, publicação em fascículos que é interrompida em 1982, ano da morte de Cochofel) pensa que o relativo “esquecimento” acerca deste precursor do neo-realismo “se deve ao facto de ter morrido muito novo, com 62 anos, após seis anos de doença prolongada e invalidante, que o afastou de tudo”.

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Intelectual “incompreendido”

Por outro lado, Sofia repara que a sua mãe (Maria Eugénia) “foi professora de Português a vida toda e sempre constatou não haver referências literárias, em nenhum manual escolar, sobre a obra de Cochofel”. Ainda a esse propósito, alega que, “apesar de, desde muito jovem, ter sido um grande antifascista e de ter colaborado activamente na luta contra o regime – sem qualquer entrave devido às suas origens aristocráticas, antes pelo contrário, servindo-se delas e das possibilidades económicas para ajudar todos os amigos que precisavam de se esconder, de fugir do País ou que não tinham com que sobreviver –, Cochofel abandonou o Partido Comunista após a invasão da Checoslováquia”.

Em conversas quase simultâneas com Seabra Pereira, no bar da FLUC, e com Abílio Hernandez Cardoso (catedrático aposentado da Universidade de Coimbra, onde leccionou Literatura Inglesa e Estética do Cinema), é recorrente a associação de Cochofel às famosas tertúlias do antigo café “A Brasileira”, na Baixa coimbrã, em que também intervieram o combativo Joaquim Namorado e Paulo Quintela (igualmente professor na FLUC e tradutor de Rainer Maria Rilke e de outros importantes autores da literatura alemã); assim como ao cineasta Luchino Visconti, descendente de uma família nobre milanesa e que se aliou ao Partido Comunista Italiano.

O posicionamento de Cochofel “motivou incompreensões e amigos que deixaram de estar presentes”

“A seguir ao 25 de Abril, não aderiu ao gonçalvismo. Fez parte de um governo socialista, enquanto Director Geral do Património Cultural, cargo que não pôde prosseguir devido à doença”, particularizou Sofia, assinalando que este posicionamento do seu avô “motivou incompreensões e amigos que deixaram de estar presentes”. Foi “uma situação que não conseguiu esclarecer ou inverter”, sobretudo pela “doença do foro neurológico que, progressivamente, lhe retirou as capacidades de escrever, andar, falar, apesar de sempre lúcido, o que lhe acarretou um sofrimento imenso”.

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Notas:

(© VJS – sinalAberto)

1 – A Casa do Arco, antiga residência da família do poeta João José Cochofel e até agora (Agosto de 2023) Casa da Escrita, sob a posse da Câmara Municipal de Coimbra, com finalidades culturais e de promoção da literatura, vai ter uma utilização incógnita com a anunciada cedência deste espaço histórico citadino a uma associação privada, passando a designar-se Casa da Cidadania da Língua, a partir de Outubro deste ano.

Parece estranha esta forma de promover a Língua Portuguesa, quando se pretende descontinuar a escrita, sem se esclarecer os contornos da respectiva cedência, decidindo ao arrepio dos cidadãos.

2 – A presente reportagem foi distinguida com Menção Honrosa do Prémio Adriano Lucas 2015 (quinta edição) e publicada nos jornais Diário de Coimbra e Diário de Aveiro, em 11 de Janeiro de 2016.

3 – O catedrático António Pedro Pita era o então director científico do Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, ocupando o lugar deixado vago, em Dezembro de 2013, por David Santos, o qual, desde 2022, volta a assumir as mesmas funções dirigentes.

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24/08/2023

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Vitalino José Santos

Jornalista, cronista e editor. Licenciado em Ciências Sociais (variante de Antropologia) e mestre em Jornalismo e Comunicação. Oestino (de Torres Vedras) que vive em Coimbra.

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